sábado, 26 de dezembro de 2009

Segura o tchan - diagrama

Esse é o diagrama de transcrição melódica e textual que serve de base para a análise que se segue. Ele foi desenvolvido por Luis Tatit e permite visualizar o desenvolvimento melódico da canção sem a necessidade de saber ler partitura, além de permitir o acompanhamento também da letra.
1.

1→ Pau que nasce___________Nunca se endi-
2 ______________ torto________________
3_ ____________________________________reita
4___________________________________
5___________________________________
6___________________________________
7___________________________________
8___________________________________

2.
1_____________________________________pega na ca
2____________________________________________
3 Menina_______________________________________ -beça
4 _______ que____ que-___________ que____________
5 ___________ re-______________________________
6__________________bra____ mãe________________
7____________________________________________
8____________________________________________

3.
1________________________________Vai
2___________________________________
3 →Domingo_____e-_____________________ Vai
4__________________la_______vai________
5 _____________________ não____________
6____________________________________
7____________________________________
8____________________________________

4.
1________________________________Vai _____ Vai
2_____________________________________
3 Domingo____ e- ________________________Vai
4 ______________ la ________vai__________
5 __________________ não _______________
6 ___________________________ não_______
7_____________________________________
8_____________________________________


5.
1 →Tudo que é per- _________________ pega pelo____
2 _________________ feito a gente _______________
3 __________________________________________ braço
4__________________________________________
5__________________________________________
6__________________________________________
7__________________________________________
8__________________________________________


6.
1________________________________________________
2________________________________________________
3______________________________________________bai-
4_______________ meio mete em_________ mete em______
5
joga lá no________________________________________xo
6 ________________________________________________
7_________________________________________________
8______________________________cima________________

6a
1______________________________________________
2______________________________________________
3 ___________________________________________ta-_
4 ________________ meses voce___________ resul-______
5 Depois de nove____________________________________do
6 ______________________________________________
7______________________________________________
8 ____________________________vê__ o_____________


7.
1_______________________________________________
2_______________________________________________
3_____________________________________________da-
4________________samba arreben-________no pe-________
5 → Esse é o gera____________________________________-ço
6_______________________________________________
7_______________________________________________
8____________________________tando_______________


8.
1________________________________________________
2________________________________________________
3___________________________________________bai-__
4____________meio mete em__________mete em_______
5 joga lá no_______________________________________xo
6________________________________________________
7________________________________________________
8__________________________cima___________________


Refrão
1 → Se gu ra o__________amarra o________
2____________tchan___________________
3______________________________tchan
4___________________________________
5___________________________________
6___________________________________
7___________________________________
8___________________________________


1 Segura o__________________tchan__tchan___
2__________tchan____tchan________________
3_______________________________________tchan
4_______________________________________
5_______________________________________
6_______________________________________
7_______________________________________
8_______________________________________

UM OLHAR SOBRE “SEGURA O TCHAN”, DO GRUPO É O TCHAN (1 de 3).

Para Ricardo Tamashiro, que comprou a idéia num certo templo budista

Peço licença pra galera que acompanha o blog pra fazer aqui uma experiência, publicando um texto mais analítico e, por isso, mais chato de se acompanhar. Na verdade, trata-se de uma experiência com certo instrumental de análise (o método semiótico de análise de canções) que tenho descoberto aos poucos, e para o qual eu ainda estou procurando a linguagem ideal. Mas como eu queria muito publicar umas reflexões sobre o axé, tanto para demonstrar do meu jeito sua qualidade quanto pra realizar uma reflexão teórica sobre um objeto cultural marginalizado nos meios mais elitizados (apesar de o consumirem avidamente), vai assim mesmo. O texto pode ser lido como uma espécie de treinamento ou direcionamento de perspectiva, que espero resultar em algo a ser apropriado em minhas leituras e audições. Espero que os vídeos com a festa do grupo, e a maravilhosa Sheila Carvalho consigam quebrar um pouco a aridez do texto.

A idéia principal aqui é se contrapor àqueles que sustentam que a canção “Segura o tchan” é ruim, ou mal realizada, a partir de uma análise que pretende considerar a relação de complementariedade dinâmica que se estabelece entre letra e melodia, mostrando como ela consegue manter um equilíbrio bem realizado formalmente entre diversos elementos em tensão. A idéia é mostrar também como a canção consegue construir um refrão de grande força estética, além de discutir rapidamente algumas questões sobre cultura de massa, sociedade brasileira e forma estética.



AS CRÍTICAS
O objetivo desse texto é tentar compreender os mecanismos de construção da canção “Segura o tchan”, demonstrando que, apesar de apresentar alguns elementos estruturalmente frágeis, estes não comprometem a força estética da canção, pois esta consegue encontrar um tipo de resolução bem acabada em seu projeto mais geral, cujo ponto máximo de inflexão é a força de seu refrão, um verdadeiro achado estrutural de grande potencial.

Comecemos então nosso percurso fazendo o caminho oposto, qual seja, retomando as principais críticas feitas tanto à canção quanto ao grupo de um modo geral, começando das menos interessantes até chegarmos naquela que permitirá adotarmos nosso próprio ponto de vista.

Pobreza rítmica: para essa crítica encontramos apenas duas explicações; ou se trata de uma brincadeira qualquer, ou parte de incompreensão profunda, pois o grande trunfo de “Segura o tchan” e de todo o axé, em torno do qual essas canções se organizam estruturalmente é a complexidade rítmica. Qualquer melodia canhestra de Axé é ritmicamente mais interessante do que uma sinfonia.

Pobreza harmônica: a harmonização dessas canções, ao contrário do que se passa na música erudita, segue uma lógica rítmica rigorosa. Nesse sentido, o padrão harmônico do Tchan segue os princípios da música popular tradicional – o samba de roda, a chula – com centralidade para o cavaquinho, por si um instrumento harmônico de forte caráter percussivo. A harmonização “dura” é pois perfeitamente adequada as necessidades estruturais da canção, e a idéia de pobreza não se aplica nesse caso, ao menos não sem prejuízo de compreensão.

Inferioridade dos arranjos: também não procede. O arranjo é absolutamente adequado ao estilo da composição, centrando-se nos aspectos percussivos, com predominância harmônica do cavaquinho. Os demais elementos – teclado, metais – apenas reforçam informações com todo cuidado para não negligenciar o mais importante (como tanto ocorre nos arranjos carregados dos anos 80, ou dos anos 30). Seria de fato possível criar um arranjo mais bem elaborado, o que não quer dizer que esse que se apresenta não se sustenta.

Interpretação ruim: Embora apresente alguns elementos de convenção de gênero que acabam por se tornar redundantes, pouco contribuindo para o resultado final da canção, pode-se dizer que Beto Jamaica é um bom intérprete de axé, com um estilo contagiante sem sair muito do comum, mas que consegue transmitir bem a mensagem e não se compromete tentando realizar estripulias das quais não se sairia bem, como ocorre muitas vezes com os intérpretes de pagode. Um exemplo de interpretação inadequada seria colocar Chico Buarque em cima de um trio elétrico. Um exemplo de interpretação ruim é o da vocalista do Djavu. Se é verdade que a qualidade vocal não é o grande atrativo do grupo (as mulheres vocalistas de axé se saem melhor nesse aspecto), pode-se dizer também que ele dá conta do recado, e segura a balada. E quando não, tem ali por perto o Cumpadi Washington (um típico exemplar do malandro em tempos já atuais: quase não cantava, limitando-se a soltar de quando em quando frases de efeito, e ganhando muito dinheiro com isso; pegou a mulher mais cobiçada do país na época, e ainda – dizem por aí - descia o cacete nela).

Restam assim duas críticas a nosso ver mais interessantes. Apesar de não concordarmos inteiramente com seu prognóstico negativo, ela permite que nos concentremos em aspectos que possibilitam uma abordagem analítica mais produtiva, ao se fixar efetivamente no aspecto mais artesanal da canção. Trata-se da crítica que se refere a “pobreza” das letras do grupo e de suas linhas melódicas, que seriam “todas iguais”.

Uma primeira ressalva que já podemos adiantar é que essas duas críticas só perdem em alcance ao serem consideradas em separado - o que não significa dizer que elas não tenham sua razão de ser. De fato, existe algo nessas canções que pode ser difusamente classificado como um sentimento geral de “pobreza”, ou carência – a qual procuraremos definir – e que se apresenta mais explicitamente na letra (na melodia, veremos, o diagnóstico revela-se mais complicado, apesar de ser indicativo de algo importante). Mas ao contrário do sinal negativo dessa crítica - no geral antipática ao gênero como um todo -defenderemos aqui que a conjunção dessas duas pobrezas (melódica e lingüística) se convertem em riqueza a partir da relação que estabelecem. O pressuposto para essa guinada valorativa está em que a análise de qualquer canção deve partir da noção de que letra e melodia formam uma estrutura complexa, que perde muito ao ser tomada isoladamente.



Exemplo de interpretação ruim: Djavu


ATONIZAÇÃO TEMÁTICA

Diagrama 1 – “Pau que nasce torto \ Nunca se endireita”

Para começar, já de início é possível reconhecer dois dos três processos principais da arquitetura de uma canção. A melodia tem início no tom mais alto da tessitura da canção, o que revela de início um forte investimento passional por parte do intérprete. Não se trata, no entanto, de uma canção passional (usaremos aqui as categorias semióticas desenvolvidas por Luis Tatit. Para saber mais, veja “O Cancionista”, ou “Análise Semiótica da Canção”), que seria, para simplificar, uma canção que trata de disjunção, perda do objeto para o sujeito. A passionalização – nome desse processo – no caso, que se caracteriza melodicamente por grandes saltos intervalares (salto de uma oitava, por exemplo, típico nas canções românticas VEJA EXEMPLO) e prolongamentos das vogais, está a serviço da celebração, o clima de festa que conduz a uma excitação tão grande que se transfere para a melodia.

Nesse ponto, tal processo liga-se a outro, que nesse caso é o principal. Notamos desde o início uma mesma figura melódica que irá se repor todo o tempo, cuja repetição é uma forma de antecipar o refrão, transpondo seu sentido para toda composição ( Figura ------- __ ). No caso dos fragmentos 1 e 2, apenas a descendência do início do segundo (“menina que requebra”) altera a reiteração desse tema, e com a nítida função de preparar seu retorno em “pega na cabeça”. Esse tipo de canção, com melodia que reitera pequenos temas ao longo de sua estrutura, é chamada por Tatit de canção temática e, no geral, apresentam letras com caráter celebratório, ritualístico, de forte apelo somático, corporal. Seu procedimento é a tematização. Um tipo de canção que bota pra dançar, celebrando algum tipo de conjunção entre sujeito e objeto.

“Pau que nasce torto nunca se endireita” tem um tom assertivo, que indica uma certeza. Nota-se que no plano melódico, a descendência final – endi-reita e ca-beça – confirma o tom de afirmação expressa pela letra. Esse é um comportamento típico da música urbana brasileira, que recupera em sua estrutura melódica padrões entoativos da língua falada. A conseqüência principal desse aspecto é que uma análise apenas musical da melodia não consegue dar conta de sua estrutura, posto que ela também e subordina a leis lingüísticas.

Tentando uma “tradução” do que se expressa nesse trecho, seria algo do tipo quem nasce vaca vai morrer vaca, está no sangue. A utilização do ditado popular nesse trecho abre o sentido do verso para além de si mesmo, em direção a indeterminação da cultura popular de domínio público. Aqui é já possível matizar a acusação de empobrecimento da letra, revelando sua parcialidade pois, mudando-se a direção do olhar, pode-se dizer que a letra é enriquecida com uma multiplicidade de sentidos em cada verso. Ou seja, a atonização (conceito que substitui o de pobreza sem a conotação negativa deste) da coerência textual em nome da coerência temática (expressa por letra e melodia) é equilibrado por uma polissemia (multiplicidade) de significados dos versos. Cada um deles quer dizer coisas para além de si, comportando dois ou mais sentidos. A atonização da letra conduz a um ganho polissêmico que se apresenta a cada verso, recolocando a coerência inicialmente perdida (em nome de uma organicidade maior) em outro plano, uma coerência de segunda ordem, devido à abertura de significados que não se dispersam por conta da forte organicidade melódica, que além disso será integralmente recuperado pela força do refrão.

Digamos pois que o aspecto fragmentário da letra – que contém nesse caso, como veremos, algo de mal acabamento – é contrabalanceado pelo forte caráter reiterativo da canção, como se uma letra mais tônica marcasse uma espécie de exagero que prejudicaria o conjunto. Todo o esforço dessa canção consiste em equilibrar os múltiplos sentidos dispersos ao longo de sua estrutura. A raiz de sue procedimento aponta para a abertura, sendo pois aquilo que as críticas tratam no geral como insuficiência exatamente o ponto de força da forma, levado por uma necessidade de ordem interna. A crítica não deve, portanto, simplesmente apontar para a polissemia – o equivalente literário seria mostrar que um poema é escrito em versos - ou heterogeneidade, mas atentar para em qual ponto e de quais modos se opera sua re-estruturação.

Na verdade, as canções temáticas – de apelo somático - no geral apresentam certa atonização da letra, em maior ou menor grau, que “compensam” a reiteração melódica. Pois uma das leis gerais da canção é a busca do equilíbrio – realizar as operações mais complexas como se fossem assim desde sempre – e uma letra por demais tônica (lembrando que, em canção, tudo pode ser feito. Estamos simplesmente apontando tendências de procedimento) poderia prejudicar esse equilíbrio. Como exemplo, lembremos, a cifragem de “Meia-lua inteira”, composta por fragmentos, ou a enumeração descritiva ao longo de um mesmo tema, e que se contrapõe a certa lógica narrativa em “Águas de Março”. Ou ainda, as letras de Chico Science, que exigem certa cumplicidade regional do público para completar seu sentido. Nem todas as canções temáticas são assim, mas dentre todas as três (temáticas, passionais e figurativas, de que trataremos adiante) estas são particularmente propícias a esse movimento, pois, na relação que estabelece com a letra, acaba equilibrando o conjunto. Atonização lingüística em nome de tonificação temática. Pensemos por exemplo na dificuldade e “incoerência” que teria uma canção desse tipo em manter toda coerência do significado de um rap. É por isso que a vertente temática do rap (que é figurativo, ou seja, que fixa na estrutura melódica a instabilidade da fala), o funk, passa da denúncia para a celebração. De um ponto de vista estrutural, está perfeitamente adequado.

Meia Lua Inteira sopapo
Na cara do fraco
Estrangeiro gozador
Cocar de coqueiro baixo
Quando engano se enganou...

São dim, dão, dão
São Bento
Grande homem de movimento
Martelo do tribunal
Sumiu na mata adentro
Foi pego sem documento
No terreiro regional...

Uera rá rá rá
Uera rá rá rá
Terça-Feira
Capoeira rá rá rá
Tô no pé de onde der
Rá rá rá rá
Verdadeiro rá rá rá
Derradeiro rá rá rá
Não me impede de cantar
Rá rá rá rá
Tô no pé de onde der
Rá rá rá rá...

Bimba birimba a mim que diga
Taco de arame, cabaça, barriga
São dim, dão, dão
São Bento
Grande homem de movimento
Nunca foi um marginal
Sumiu na praça a tempo
Caminhando contra o vento
Sobre a prata capital...



Meia lua inteira com um arranjo excelente.

Ouvir uma canção desse tipo, torcer o nariz e dizer “Mas que porcaria de letra” acaba por identificar um processo (como perceber que um soneto é composto por dois quartetos e dois tercetos), mas o juízo de valor negativo acaba interrompendo o possível potencial crítico do achado (“Mas que droga, um soneto com dois quartetos e dois tercetos!”), cobrando do objeto justamente aquilo que ele não poderia ser, com o risco, aí sim, de tornar-se mal realizado. No caso, ocorre uma abertura no plano do significado (“riqueza” polissêmica do signo), diretamente determinada pela relação que se estabelece com o fechamento melódico em pequenos temas. Desse modo é que as duas “pobrezas” parciais convertem-se em um ganho em termos mais gerais.

UM OLHAR SOBRE “SEGURA O TCHAN”, DO GRUPO É O TCHAN (2 de 3).

MERCADO E TRADIÇÃO


Diagrama 2 - “Menina que requebra \ mãe que pega na cabeça”

Esses versos carregam forte conteúdo reiterativo, pela presença em grande quantidade de rimas internas e reiterações fonéticas (Me ni na | que re que | bra mã que pé | requebra – pega). Num verso que é mais figurativo que o anterior (num mesmo contorno melódico encaixam-se versos maiores) a coerência é mantida reiterando-se elementos no plano fonético. Seu conteúdo remete ao mesmo tempo para a dança e para o sexo, que complementa o verso anterior dirigindo-lhe o sentido. A abertura para a dança reforça o caráter polissêmico da canção, que abre sua estrutura radicalmente para o externo, tanto para a performance, especialmente o trio miscigenado Sheila – Jacaré (o falo, afro, como não poderia deixar de ser) – Sheila, quanto para o local enunciativo, a celebração do aqui e agora. Carnaval. “Segura o tchan” é uma canção que se fixa no presente, tanto no eterno retorno de um mesmo tema melódico quanto pela letra que marca em seu interior a sua relação com um momento de celebração coletiva.

Em músicas posteriores do grupo, essa fixação pelo agora se tornará ainda mais presente, o que obedece a um duplo direcionamento. O primeiro, bastante comentado, é o que marca essas canções como produtos de consumo imediato, responsável tanto por seu sucesso quanto pelo fim do grupo, pois que trabalha com formas estéticas que só adquirem pleno sentido no momento de sua execução, com a celebração acontecendo efetivamente. No caso, a celebração do produto e do rito enquanto produto.

Letra de Dança do Bumbum, com vídeo do Ralando o Tchan


Conheci uma menina que veio do sul
Pra dançar o tchan e a dança do tchu tchu
Deu em cima, deu em baixo,
na dança do tchaco
E na garrafinha deu uma raladinha
Agora o Gera Samba mostra pra vocês
A dança do bumbum que pegou de uma vez
Bota a mão no joelho
E da uma baixadinha
Vai mexendo gostoso,
Balancando a bundinha

Agora mexe vai, Mexe, mexe mainha
Agora mexe, Mexe, mexe lourinha
Agora mexe, Mexe, mexe neguinha
Agora mexe Balancando a poupancinha
Mexe, mexe, pro lado
Mede, mexe, pro outro
Vai mexendo embaixo
Vai mexendo gostoso
Vai no sapatinho, vai
Remexendo gostosinho, vai



Canções como “Dança do bumbum” e “Ralando o Tchan”, serão responsáveis pelo sucesso e pelo fim do grupo, pois o interesse da composição se liga de forma intensa com o imediato. O refrão é o momento de conjunção por excelência, o momento máximo de celebração. A canção popular tem início (histórico e estrutural) com um bom refrão. Em muitos exemplos de canção sem refrão, por exemplo (“Detalhes”, do rei, e “Oração ao Tempo”, de Caetano), algo de sua força de concentração é transferido para o conjunto da canção de tal forma que, apesar de não possuir refrão em si, toda composição acaba funcionando como um refrão extenso - o refrão é, por natureza, tensivamente concentrado na segunda parte. Como a canção é o equilíbrio de múltiplas forças em relação, um bom refrão depende da tensão dialética que estabelece com a chamada segunda parte, que tem sua razão de ser no refrão, que por sua vez depende da preparação de sentido operada por seu desdobramento. Parodiando Antonio Candido, pode-se dizer que o estudo de uma canção consiste na análise de suas tensões. No caso dessas peças do É o Tchan, o que se observa não é exatamente o esquema refrão – segunda parte, mas uma justaposição de vários refrãos, todos a repor o mesmo significado. Perde-se tanto a polissemia dos signos quanto a sutil e complexa relação entre concentração – expansão das partes. São inferiores estruturalmente a “Segura o Tchan” por serem em tudo iguais a si próprias, embora funcionassem perfeitamente bem na época de seu interesse, mantendo ainda algo de sua força libidinal para aqueles que lembram da coreografia. E para sermos justos, “Ralando o Tchan” tem ainda sacadas fonéticas bem interessantes (RRRálando, Baba Ali, Baba, com referência a uma suposta prosódia árabe) que remetem a sagacidade das melhores marchinhas. Mas acreditamos que “Segura o tchan”, apesar de trazer os mesmos elementos de fugacidade, vai além em termos de composição, apesar de não ser a melhor composição do Axé (algumas gravações de Daniela Mercury, Margareth Menezes, Ivete Sangalo – “Levada Louca” é uma canção extraordinária, especialmente quando executada na velocidade da luz - as inovações de Olodum e Timbalada – que já são outra coisa, e por aí vai, seriam melhor exemplo do que de mais interessante se produz nesse terreno).

Um dos aspectos que marcam composições desse tipo, que compram de forma mais direta o apelo mercadológico à reiteração do momento presente, é que o interesse pela composição vai depender do interesse pelo grupo, e não o contrário. O interesse desta estará diretamente vinculado a sua acessória de markenting, o que acontece, evidentemente, com todos os estilos e gêneros, mas nesse caso sem maiores mediações, e com prejuízo para forma. É preciso querer dançar com o grupo pra canção funcionar, uma vez que todos os seus aspectos tratam do momento presente, abolindo inclusive qualquer narratividade. Nesse caso os versos são também polissêmicos (dança, sexo, carnaval), mas todos se prestam a traduzir uma mesma idéia mestra. O resultado são canções com aparência de terem sido feitas em série (sempre tendo em conta que a consciência da canção como um produto comercial, destinado a um público consumidor, é fundamental para determinar a sua qualidade estética), como colagens de qualquer coisa em qualquer ordem, sem obedecer a uma maior necessidade estrutural. São produtos, assim como qualquer canção, mas que não são nenhuma Brastemp. A canção que segue nesses moldes apresenta certa “rigidez” que prejudica sua desenvoltura (que no caso do “É o Tchan” tentará ser recuperada a partir de elementos exteriores, como as intervenções do cumpadre Washington, ou o carisma de seus dançarinos). Certo tom forçado na insistência em um só aspecto, em tudo contrastando com a imagem de espontaneidade que garante a sobrevivência mesma do grupo. Ao mesmo tempo que o mercado exige a padronização, ele não perdoa a perda da autenticidade, borrando os limites entre ambos. O resultado são canções que não sobrevivem ao interesse por uma moda – mesmo que esse possa vir a ser posteriormente recuperado.

Esse dado mercadológico une-se pois a uma dimensão popular, mais antiga que o conceito de mercado, da qual se apropria. Ou seja, ao mesmo tempo que possui uma evidente conotação mercadológica, esse aspecto do imediatismo não é criada exatamente pelo mercado, por ser uma reposição (pós moderna?) de elementos anteriores à industrialização, e que garantem inclusive sua eficácia junto ao público. É nesse jogo entre eficácia (produto) e encanto (arte) que se constitui a canção. Pois a ênfase no aqui agora do rito é uma característica do samba de roda, e que se re-apresenta em composições do É o tchan, decerto que cooptada mercadologicamente. Por outro lado, essa incorporação não pode ser absoluta, com o risco de se perder em força estética. É importante também observar que, no caso de “Segura o tchan”, é estabelecida uma relação de complementariedade dialética entre refrão concentrado e segunda parte fragmentária que faz dela uma composição melhor que outros grandes sucessos do grupo, que parecem muitas vezes ser mera justaposição – bem planejada - de refrões diversos.



Levada Louca - Axé de primeira linha


POLISSEMIA DE SIGNIFICADO E CONCENTRAÇÃO MELÓDICA

Diagrama 3 e 4 – “Domingo ela não vai \ Vai Vai \ Domingo ela não vai, não \ Vai, vai, vai

Melódica e harmonicamente o seguimento é muito bem construído como elemento de passagem. O fragmento três “Domingo ela não vai” do diagrama tem o mesmo contorno melódico de “Menina que requebra” (fragmento 2), que por sua vez também serve como elementos de passagem que rompe e retorna para a reiteração quase absoluta da primeira estrofe. Já a parte coral “Vai Vai” irá ligar-se melodicamente ao refrão de mesmo contorno. Longe de apontar para pobreza ou insuficiência estética, o segmento cria uma articulação muito bem resolvida entre a parte inicial e o refrão.


Por outro lado, a letra apresenta um sentido cifrado, em aparente incoerência com o restante da canção. Afinal, domingo ela não vai aonde? O sentido cifrado do trecho aponta para certa defasagem, que se reflete nas críticas negativas no que se refere as letras. Entretanto, como já vimos, essa abertura que se dá em um primeiro momento no vazio, irá adquirir sentido no 
interior de um conjunto de relações criados pelo conjunto letra-melodia-performance. Pois se em um primeiro momento essa cifragem do conteúdo aponta para uma insuficiência (dado que a letra não se pauta por um hermetismo) por assim dizer para dentro, por outro lado ela se liga imediatamente ao projeto de construir uma canção voltada para fora, para o momento presente da experiência (carnaval, trio elétrico, apresentações televisivas). Exige-se assim uma participação mais próxima e efetiva do ouvinte, interlocutor-agente que é colocado em cena também por outros aspectos, como seu forte apelo somático, visando à dança, sua ligação com a estrutura do samba de roda, a ênfase das letras no aqui e agora do encontro festivo, etc. Essa canção exige outro tipo de escuta que não aquela contemplativa, própria da cultura ocidental, pois é estruturalmente voltada para fora, o que é mais um problema para determinado conceito de arte e de sujeito como um todo orgânico do que para si ou para o axé. Dito isso, é também verdade que existem canções que se colocam os mesmos desafios e que conseguem articular essa heterogeneidade de forma mais equilibrada, sem essas arestas involuntárias, sendo pois uma exigência que pode ser feita. Mas que não é suficiente para eliminar o brilho e as qualidades de “Segura o Tchan”. Para concluir a análise desse trecho, devemos dizer que, apesar desse referente inicial perder-se no interior da canção, dada a força da tematização nessa passagem –no caso, os versos do diagrama 3 e 4 repetem quase que inalteradamente os mesmos significantes, somente operando uma mudança melódica que cumpre evidente função rítmica (“não vai vai vai”, 4, em oposição a “vai vai”, 3) – o sentido de dança, o próprio ritmo, é tonificado, tomando a frente na significação e ligando-se em segundo plano com a estrofe anterior.


Existem pois alguns aspectos formais importantes em operação que fazem com que esse aspecto menos feliz da composição (por caminhar em sentido contrário ao que ela mesma se propõe, e não porque vai contra expectativas e padrões advindos de outro lugar) não sejam suficientes para que se julgue “Segura o Tchan” como uma canção de má qualidade – a menos que qualidade esteja se referindo aqui a outra coisa, conceitualmente mais próxima de uma significação em expressões do tipo “sujeitinho mais sem qualidade”, um julgamento mais moral que estético. Ou antes, digamos que esta “incoerência” que se percebe em dado aspecto da estrutura (e que encontraremos ainda em outros momentos) não se generaliza em falência formal. É preciso, como já vimos, considerar-se que estamos diante de uma canção temática, em que a letra dinamiza sua coerência interna de modo a ganhar uma polissemia de significados que possibilita a conexão com a totalidade da estrutura em outros planos. Desse modo evita-se uma construção excessivamente carregada. Digamos que o alto teor de concentração temática – em que todos os elementos melódicos aparecem ligados a um mesmo objetivo, realizar o refrão – próprio de uma canção feita para dançar, compensa o caráter polissêmico da letra, fechando seus sentidos a partir de outro lugar. Também o procedimento de figurativização - que é quando a força da fala se insinua na linha melódica, e o comportamento lingüístico se sobrepõe ao estritamente musical - cumpre aqui importante papel, sendo perfeitamente adequado a uma canção que pretende transmitir uma idéia de maior oralidade, de improviso espontâneo, que por assim dizer “justifica” certa incoerência descontraída da letra ao reinseri-la num contexto de festa, onde se improvisa ao redor de um tema, com todos os problemas que essa concepção pós-moderna de forma apresenta.

Mas talvez o mais importante desses elementos de coesão, de que trataremos ao final, é o poder de concentração do refrão, de incontestável força, em que todos os elementos que aparecem dispersos ao longo das estrofes são recuperados em um único termo, cujo sentido é inteiramente construído pela canção. Um verdadeiro achado melódico, poético e lingüístico, para fazer inveja a qualquer cancionista.

UM OLHAR SOBRE “SEGURA O TCHAN”, DO GRUPO É O TCHAN (3 de 3).



LICENCIOSIDADE CONSERVADORA

Diagrama 5: “Tudo que é perfeito a gente pega pelo braço”

Diagrama 6: “Joga lá no meio mete em cima mete em baixo”

No diagrama 5 percebe-se que o segmento se une melodicamente ao início do trecho inicial (diagrama 1), recuperando e marcando um re-início depois do refrão. Continua-se a falar da moça e a condená-la, agora de uma forma em que violência e sensualidade se mesclam de forma mais explícita. Traduzindo para uma linguagem mais funk, teríamos algo do tipo: já que ela não segura o tchan e se atreve a exibir sensualidade e desejo feminino, o que nós, macho, faremos, é pegá-la pelo braço e mandar ver. Uma combinação bem própria das músicas carnavalescas, e bastante reveladora do modo de ser do país, pautada por certa licenciosidade conservadora, própria da cordialidade - justamente um borramento de fronteiras que indica violência (negação da autonomia do outro por quem pode mais) e afetividade (negação da formalidade nas relações interpessoais). Uma mistura bastante característica que permite o surgimento de espaços de efetiva democratização (o samba, o futebol) em uma sociedade que em tudo nega o democrático. No caso, constrói-se uma canção com alto valor libidinal (mete em cima e embaixo, que além da conotação sexual explícita traz uma indicação inequívoca da coreografia – lembra dela? - apontando mais uma vez para a riqueza polissêmica inscrita na “pobreza” textual) em que se condena a mulher que deseja\é desejada. O refrão novamente é o ponto máximo dessa contradição: na canção que é praticamente um marco do axé, altamente sensual, exorta-se a mulher não a liberar, mas a segurar o tchan – razão de ser da canção. Essa inversão, ou melhor, contradição, que longe de atrapalhar contribui ainda mais para festa, está expressa de forma bem mais sutil na inversão melódica dos termos “cima” e “baixo” (diagrama 6), que por assim dizer trocam de lugar. “Cima” vai ocupar o ponto mais baixo da tessitura melódica do verso, e “baixo” vai ocupar o ponto mais alto. Sacada que acrescenta mais interesse na relação da letra com a melodia e com a coreografia. A relação do axé e do carnaval com o Brasil profundo dá muito pano pra manga, mas não da pra puxar mais esse fio do novelo, com o risco de nos embaraçarmos para sempre. Vamos segurar o tchan, e o país que se exploda.

Depois de nove meses voce vê o resultado...


Surge uma diferença significativa no diagrama 5 com relação ao trecho inicial, pois que agora no mesmo segmento melódico concentra-se um trecho muito maior de texto, acrescendo mais figurativização no interior do segmento temático que se repete. Essa ligeira alteração de sentido desemboca no procedimento mais intenso no verso seguinte (diagrama 6), que rompe pela primeira vez com o padrão temático seguido até aqui. Ainda assim, o trecho mantém uma forte concentração graças à força de suas rimas internas (meio mete em | mete em), já que a tematização é uma forma de fixação pela repetição, fundamental em canções com apelo rítmico marcante. Mas pode-se dizer que essa alteração de sentido conduz a um desdobramento melódico importante com relação a primeira parte, pois a estrofe seguinte (diagrama 6) será uma reposição na íntegra dessa última parte.

Diagrama 6a: “Depois de nove meses você vê o resultado”

Em termos de conteúdo essa estrofe explicita ainda mais o sentido sexual contido no trecho anterior, de caráter violento - se não segurar o tchan, você vai ver o resultado, enquanto eu, provavelmente, estarei longe - que reforça a condenação moral expressa em forma de ditado popular do trecho inicial (fragmento 1) da canção. Com relação à melodia, a mudança de sentido mantém certa coerência interna ao repetir integralmente o fragmento 6, mas revela algo como certa forçada de barra - reforçada pela idéia de que a canção é na verdade um pout-porrit - transmitindo uma sensação de mal acabamento, mesmo porque agora, ao invés de se criar um ponto de passagem como na segunda estrofe (diagrama 2), simplesmente repete-se a fórmula anterior antes de retornar ao refrão. A solução será repetida ainda na estrofe final.

Diagrama 7: “Esse é o Gera Samba arrebentando no pedaço”

Diagrama 8: “Joga lá no meio mete em cima mete embaixo”

Aqui observa-se ainda maior “economia” porque abole-se a segunda parte da estrofe, optando-se por repetir duas vezes os mesmos versos, sem o desdobramento do anterior. Além disso, o verso final é a repetição idêntica do diagrama 6. Tudo isso funciona como elementos que aceleram a canção, de modo que ela chegue mais rapidamente ao refrão, que nesse momento já se impôs com força por toda a estrutura – concebida em nome da conjunção que este representa – e não pode esperar. O caráter frágil desse trecho é ainda reforçado pela aparente ausência de necessidade para sua presença ali, funcionando tão somente como propaganda da banda (“esse é o Gera Samba”), um elemento a mais jogado em uma canção feita de colagem de fragmentos, cujo senso de unidade já vimos ser conquistado no plano melódico. De fato, dada a fragilidade desse segmento, a última estrofe não se limita a construir rimas internas e a repetir integralmente o sentido melódico da passagem anterior, mas se apresenta como uma reprodução idêntica do diagrama 6. Ainda, uma vez mais, o equilíbrio.

SEGURANDO O TCHAN: O segredo da canção

O "Tchan": razão de ser do grupo.

Mas, conforme já adiantamos, o segredo de “Segura o tchan” está na força de seu refrão, que se impõe por si e nem precisaria ser explicitado, dado sua força de evidência. Pra começar, como não poderia deixar de ser, é uma retomada da linha temática principal (------ __) em torno da qual toda a canção se constrói. Agora, porém, com maior ênfase, dada a autonomia de cada um dos segmentos: verbo (segura, amarra) e complemento (tchan), sendo este o centro do refrão, tanto por ser a razão de ser do verbo quanto por recair sempre no ponto mais forte do tempo binário do compasso. Tendo assumido esse compromisso melódico-textual, com acento recaindo sempre no mesmo lugar, o intérprete pode inclusive jogar com o campo de liberdade rítmica permitido pela melodia. Note-se como Beto Jamaica joga com essa possibilidade de variação, retardando o primeiro Se – Gu – Ra e adiantando o “amarra” e o “segura” seguintes, sincopando o refrão: desde que o tchan fique em seu devido lugar, o tempo forte do compasso, pode-se jogar tranquilamente com as possibilidades infinitas de variação rítmica. Tudo nesse refrão é construído para desembocar no Tchan, a tal ponto que no verso final (diagrama 10) este irá se tornar absoluto, ocupando praticamente todo o segmento. O tema melódico por sua vez é verbalizado, e a letra canta a própria melodia (artifício técnico bastante caro a certo represente de outra vertente da nossa canção, João Gilberto, veja Bim Bom), cuja razão de ser por sua vez é rítmica. O tchan é a razão de ser de tudo o que se fez até aqui.

Do ponto de vista mais “musical”, no plano do significante, o tchan tem pois um poder de concentração impressionante, não muito comum de se alcançar na música popular urbana, ao menos não com esse grau de acerto. E do ponto de vista do significado linguistico, ele tem a incrível capacidade de retomar todos os termos que ficaram em aberto ao longo da canção, conferindo-lhes uma unidade na celebração. O termo “tchan” é assim um autêntico signo polissêmico, um significante quase vazio que tem todos seus múltiplos sentidos construídos pelo texto cancional. Senão, vejamos:

1 – O significado mais explícito é sua metáfora para o órgão sexual, ao qual a mulher precisa segurar para que o macho não se veja “forçado” a liberar o seu. Retoma o aspecto sexual disperso por toda canção.
2 – O termo tem também uma função coreográfica, funcionando como indicação para aqueles que irão dançar (segura o tchan em cima, amarra o tchan em baixo, etc). Retoma o sentido coreográfico disperso por toda canção.
3 – Tchan é também, como vimos, a figuração do próprio ritmo a que se está celebrando, pois o termo reforça a acentuação típica de samba (compasso binário, com acento na segunda). Retoma o caráter de celebração, via samba, do aqui e agora.
4 – Também tem um sentido que foi adquirido posteriormente, mas que podemos acrescentar aqui. Dado a força que o refrão carrega, e a problemas de contrato que forçaram a separação do grupo, Tchan acabou se tornando o próprio nome do grupo que viria a ser o maior representante do chamado axé music. Nesse sentido o termo recupera também o sentido daquele verso disperso que fazia propaganda do Gera Samba, pois o refrão, dado sua potencia, converte a si mesmo em propaganda a posteriori.
5 – O único sentido que não é construído pelo próprio texto, mas que é por ele retomado, é o que equivale tchan a algo do tipo um “que” a mais, uma qualidade x que torna algo especial. Esse sentido também se faz presente, ainda que em grau bem menor que os demais.

Tem mais gente por aqui que usa artifícios do É o tchan


Temos assim um refrão que coloca toda sua ênfase em um termo (tchan) de extrema complexidade, que concentra em si todos os significados dispersos ao longo dessa canção que, como vimos, oscila em torno de uma abertura polissêmica dos signos. Em certos momentos estes parecem que não irão se fechar, mas graças ao bom desenvolvimento temático da melodia e ao intenso poder de concentração do refrão, as coisas são finalmente recolocadas em seus devidos eixos. Nesse sentido o refrão funciona como uma representação metonímica de todos os movimentos realizados até então, o que revela sua força, capaz de sobreviver para além do próprio gênero. Pois o tchan é ao mesmo tempo o máximo de abertura de significado no máximo de fechamento de significante, a tal ponto que a última parte do refrão só consegue espalhar tchans para todos os lados.

Por fim, não queremos aqui dizer que “Segura o tchan” é uma canção que não apresenta falhas. Ao contrário, procuramos levantar suas incoerências, sem nunca deixar de acreditar que existem inúmeras outras canções mais bem realizadas, mesmo dentro do grupo, e que existem apostas dentro do movimento do axé baiano até mais interessantes – como os casos do Olodum, ou Timbalada. O que nos propusemos foi questionar certa premissa, baseada exclusivamente em preconceitos, de que esta ou qualquer outra canção dita “comercial”, possa ser descartada como lixo mercadológico, antes de se lançar sobre ela um olhar mais cuidadoso. Em se tratando de uma arte industrial, toda canção popular urbana é mercadológica, o que coloca um problema (sem eliminar) para conceitos como indústria cultural, quando tomados unicamente sob um viés negativo. Pois se é certo que o sucesso comercial junto ao grande público não quer dizer que a canção tenha o mesmo sucesso enquanto realização estética, acreditar no contrário, que canções compostas visando o sucesso junto as massas não possuem, a priori, qualidades formais, participa da mesma ingenuidade crítica, com o agravante de carregar um olhar mais elitista, bem peculiar a esfera da alta cultura brasileira.

Van Damme, que não pegou bem o espírito da coisa


E como não poderia deixar de ser:

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Razões estruturais para o insucesso de Ed Motta - Continuando a Pendenga

Pois é macacada, seguindo em frente com a pendenga, mandei um mail respondendo algumas questões que o cara colocou, ratificando algumas coisas que eu tinha colocado no post. Por enquanto é só, mas quando aparecerem mais questões a gente vai dando notícia.

Salve mano!

Eu acho que tem tudo a ver o que você falou, mas o padrão de música americana que eu acho que não pegou aqui foi a da black music, e não o pop rock. Esse pegou, e ce tem razão quando fala que o Lulu tem pouco a ver com o samba. E eu acho que o pop entrou de vez por aqui com o Roberto Carlos, que tem muito de Beatles e de música brega italiana. É mais esse o caminho do Lulu. Mas o black do Ed cria um canto-fala-improvisado que é estranho por aqui. Até tem uns calouros do Raul Gil que fazem, mas não ficam. Podem até vir a ficar, mas por enquanto não cola. Talvez porque a música mais negra aqui tenha raiz própria, diferente do pop. Ou é só questão de tempo mesmo, sei lá. Até o funk virou outra coisa aqui. Mas acho que pro pop essa idéia de "local" não faz mesmo muito sentido. O pop tem a vocação para universalidade. Apesar de que o pop do Roberto Carlos é muito brasileiro, e segue inclusive certa tradição de samba canção, que já é samba com uma porrada de outras coisas – bolero, tango...

O Ed até que tem reconhecimento, e Manuel de fato estourou, mas não chega nem perto dos outros que eu falei, como Tim maia, ou mais recentes, como Seu Jorge. E mais longe ainda de Ivete Sangalo e afins. Mas ele tem reconhecimento de certo setor, é verdade, tipo Simoninha ou Max de Castro. Mas não o sucesso que o pop dele pressupunha - público de massa. De novo pensando a partir do Tim Maia, e da black music local. E, principalmente, os "avanços" que ele criou não geraram "frutos". Segundo o Tatit, seguem sendo metalinguagem, e não constituiram uma linguagem, com novos desdobramentos, mesmo que de massa, como os "avanços" de Gil, Caetano, Robertão, Daniela Mercury, Raça Negra...

Eu acho que o Djavan tem um toque samba forte, especialmente na linha melódica, e é o que o difere positivamente do Vercilão e afins, fazendo dele melhor. É o que vai fazer as canções dele permanecerem, e as do Vercilo sumirem. Não porque tem algo de nacional, ou local, mas porque tem mais elementos formando uma relação mais rica e complexa. Não que não possa haver caras que façam um som totalmente americanizado e que façam sucesso, e permaneçam sendo bons, mas no caso do Ed eu acho que a explicação (porque, sendo tão bom, não virou o Tim Maia?) passa por aí, e não só por uma questão de momento. O Lulu mesmo tem menos de samba do que o Lobão - eu sabia que “Me Chama” era um pagode antes do João Gilberto - e Renato Russo, embora eu acho que eles seguem uma linha de música passional brasileira que é mais internacional, mas também é bem antiga, pouco valorizada e nada estudada. E principalmente, tem uma prosódia brasileira (nenhum deles iria trocar o acento das palavras tão radicalmente quanto o Ed Motta. Só o João Bosco, mas em nome de uma estética mais afro-brasileira que tem aceitação local maior) de que não abrem mão.


A raiz do pop brasileiro é Beatles, e não Ray Charles, Marvin Gaye ou James Brown, a raiz de que bebe o Ed Motta. Sim, o rock tem também uma raiz negra, mas essa se ramifica em estilos bem distantes - Sarah Vaughan e Madonna, Beatles e James Brown. Acho que faltou esclarecer melhor o estilo americano a que eu me referia.

Muito interessante o lance da Bossa ter possibilitado a abertura do padrão brasileiro de trato melódico. Desse modo, foi a Bossa que possibilitou o ieieie... rs. Vou adotar o raciocínio.

Pode ser mesmo uma questão de timming do Ed, mas a meu ver não se canta com padrão black americano no Brasil até hoje, e acredito que por uma razão histórica. Não temos nada parecido com Amy Whinehouse, nem com Michael Jackson – a não ser o Michael Jackson da Xurupita. Tivemos muito bel-canto italiano, que se misturou ao pop Beatles e formou nossa linhagem romântica moderna – brasileira sem vir do samba. O Ed Motta seguiu outro caminho, e patinou. Mas a linhagem Roberto Carlos é tão "local" quanto a linhagem Noel Rosa, seguindo caminhos bem distintos. Pensando bem, na verdade tem até relação com o samba sim, mas um samba já bem diverso da linha Noel e da turma do Estácio, já na linhagem do samba canção.
O "manual" é bom pra caralho, eu também acho. Não queria que o texto passasse uma impressão de que eu acho o cara ruim. Só quero especular sobre razões pro trampo do cara não ter colado sendo bom, para além daquele papo de músico mané falando que o povo não entende música sofisticada. Porra, mais sofisticado que Jorge Ben?
Eu também não estranho a guinada do cara. E também acho que ele mudou porque seu pop não colou - pelo menos não a ponto de fazer escola, de ser um manual prático para bailes. O baile que colou foi outro, proibidão - que também não segue padrão samba, mas está se aproximando. Mas ele de fato pegou com esse público "nova MPB", que é na verdade um pop cult, para um público restrito (tipo o mercado gospel, que faz as mesmas coisas que o mercado do demo, só que com alterações temáticas). Vou mudar o nome do artigo para "Razões estruturais do insucesso popular de Ed Motta".


O baile que pegou por aqui.

Essas questões são bem complexas, né? Eu concordo com você quando fala que melodias descaracterizadas são a tendência atual. E digo mais, a música popular urbana, por se tratar de uma arte industrial, tem essa descaracterização em sua raiz, daí a incongruência (pra mim) de falar em um gênero tipicamente brasileiro. Porra, o maxixe não é decodificação da polca européia? Por outro lado, tem algumas coisas e, dentre elas, segundo o Tatit - e que eu acredito, por enquanto - certa prosódia, absolutamente aberta (pode ser Itamar ou Francisco Alves), mas ainda assim presente, e outros elementos locais dos quais não se pode escapar sem correr certos riscos, pro bem e pro mal. Pra mim, seria ótimo que o projeto Ed Motta tivesse dado certo, (porque o som é uma maravilha), mas a adequação histórica é cobrada de um jeito ou de outro. De novo, os Smiths e o The Cure tiveram que dar uma caída pra passionalização via Robertão pra criar um pop de bom nível aqui no Brasil, com o Legião Urbana. Até o Sepultura teve que ir pro meio dos xavantes - se bem que eles não fazem exatamente música brazuca. Pro mal e pro bem, porque o país não é lá essas coisas. Por isso eu acho que o problema não é essa arte dizer respeito à vida profunda do país (esse conceito ainda serve?), porque o capital se universaliza se particularizando e ela vai dizer respeito a isso de um jeito ou de outro, sendo boa ou má. Mas, nessas condições, o que é ser boa ou má? Sei lá, mas eu não sou tão pessimista e acho que continua se fazendo grandes canções locais, em quantidade maior do que antes, inclusive.

Abraços

Razões estruturais para o insucesso de Ed Motta - Resposta

Eita que o texto do Ed Motta tá rendendo discussão. Assim que é bom! Primeiro foi o nosso amigo Boni, nos comentários, dizendo que a análise até que era boa, mas não no caso do Ed Motta, porque o cara não faz sucesso por uma razão simples... o som é chato. Não deixa de ser verdade, mas eu queria outras explicações...

Na sequência, recebi um email muito bom de um amigo que sabe tudo, fazendo outros questionamentos bem interessantes. Tanto que eu tive que escrever uma resposta, e pedi pra ele deixar eu publicar nosso "debate". Acho que ficou bem bacana, e que levanta alguns problemas interessantes. Segue então a resposta do camarada, e na sequencia eu mando a minha.



Pô, mano. Como sempre, impecável seu texto. Muito boa a interpretação formal da estrutura da melodia do Ed Motta. Faz todo sentido.

Só acho que discordo quanto às consequências que vc tira do teu achado analítico.

Vou tentar explicar.

O principal é que eu acho que o processo histórico-formal da MPB desde a bossa até agora levou a "melodia americana" a se tornar, aos poucos, algo sentido como natural por aqui, o que permitira, muito bem, a um Ed Motta, ser compositor reconhecido como nosso (brasileiro), só que hoje em dia, não na década de 80.

Ainda assim, de certa forma o Ed Motta emplacou, sim."Manuel", "Fora da lei" são músicas que fazem sucesso na balada e nas rodinhas de violão. Acontece que esse reconhecimento não é a mesma coisa que o sentimento de que o cara diz algo sobre a vida por aqui. E sim, um reconhecimento de que ele criou uma forma "diferente" de fazer música no Brasil. Ou seja, o de que fez "avanços", mercadologicamente, na vida musical no país.

Seguindo. O que ele fazia na década de 80 sobrevivia, naquela época, apenas nos guetos musicais (como aconetceu com o rock, o Black etc), mas hoje em dia algo dessa curva apericana da melodia é, sim, reconhecida como nossa. E, além disso, forma a base da canção pop brasileira. Pensa nesses jorgevercilões da vida... os caras emplacam porque fazem uma espécie de mistura de harmona djavan (bossa retornando ao jazz, quase nada de samba) com um vocal de melodias de Jazz/blues. O Ed Motta seria uma espécie de precursor disso, num campo de estilo mais coeso, mais coerente, menos fruta-cor do que o da "moderna MPB" (quando ainda havia, alguns dizem saudosos, verdadeiro "rock brasileiro", verdadeiro "black brasileiro", etc rs).

Uma hipótese de como isso pode ter acontecido: começou com a bossa nova. Foi ela que tornou familiares notas de repouso da melodia que não eram aceitaveis antes, a partir dos desenvolvimentos harmônicos que construiu. Quer dizer, se a bossa não cantava melodia americana ainda, ela, com a harmona, criava condições para tanto. Daí porque eu tenho a impressão de que o problema do Ed Motta, menos que estrutural, é de timming, saca? Ele tentou fazer música com melodia americana antes que essa prática já tivesse deixado de ser uma possibilidade ancorada no material harmônico, ou espaço de guetos, para ser disseminada, aos poucos, como padrão geral melódico.

Inclusive, gente como o próprio Lulu Santos trilhou esse caminho.

Essa música, aliás, que vc colocou no final do post, a do Lulu Santos, está construída inteirinha sobre uma cadência que não existe para o samba. Além disso, a primeira repetição da frase principal da melodia, no refrão, se resolve na sétima maior.

"Fica muito bem cinema,
romance do romance re- AL"

(essa nota, "-AL", o samba só admite como uma nota de passagem, nunca como um repouso)


Também não acho que tenha estranheza na guinada que o Ed Motta deu em sua carreira. O que ele disse pra si mesmo foi... "quando eu queria fazer pop no Brasil não colou. Tudo bem. Agora, além de eu fazer um tipo de música muito mais complexa e aceita internacionalmente do que isso, eu já faço sucesso aqui também". E lá está ele no programa do Ronnie Von, lançando "Colombina" (a música menos de carnaval que além já teve coragem de fazer falando de um baile de carnaval, rs).

Sei lá, como esses diferentes momentos na carreira dele (o fracasso nacional, o projeto internacional e, na minha opinião, a aceitação agora que ele é representante de uma maneira de fazer música que tem a ver com a dominante na MPB moderna) puderam acontecer?

Bom, a impressão que eu tenho é que as tendências musicais se dissolvem em milhares de direções diferentes. Tem um mercado que responde ao desejo que temos de ouvir samba à antiga (surgem Fabiana Cozza, Tereza Cristina, etc, suprindo essa demanda). Tem um mercado produzindo rock, black, jazz, blues brasileira. Mas essas direções tão díspares não têm nada de incoerentes. São elas que criam uma paridade entre os critérios de boa música popular aqui e no mundo, já que essa é a direção em que a arte tem que ir para se tornar rentável. E, tecnicamente, a melodia descaracterizada, bebendo ora do Jazz, ora do Blues, ora da música oriental, etc é o meio de se fazer isso, por dentro do material.

Corroborando esse julgamento específico, dá pra pensar em um mais geral, que sugere que, quando o influxo do processo histórico deixa de ser interno, a arte corre o risco de se descaracterizar. Não por desgarrar-se das formas antigas e sentidas como nossas, mas no sentido de atulhar-se com coisas que dissolvem o campo de criação em sentidos não totalizaveis pela experiência (ou dificilmente apropriaveis pra fazer arte de relevância estética naquele sentido que já conhecemos, Schwarz, etc). Tem e ainda vai ter muita Black music, vai ter pop, vai ter jazz, vai ter mpb, dos mais variados níveis de qualidade técnica. Mas que ainda dizem respeito à vida profunda do país? Essa é a dúvida.

O Ed Motta perdeu o bonde de transformar estruturalmente a canção brasileira? Não. O que estava passando não era o bonde, era um trator que diluiu a música sentida como brasileira em "um estilo qualquer" e pôs coisas agradáveis (bonitas, às vezes, no máximo) no lugar.

Tudo isso pra dizer que o "Manual" é um dos discos que eu mais gosto desde moloque (mas a gente quer mais que isso, é claro).

abraço,

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Razões estruturais para o insucesso de Ed Motta


Primeiro, deixemos claros que estamos tratando daquele Ed Motta mais pop, que vai até os anos 2000, e não daquele que se propõe a fazer discos mais difíceis, de forte influência jazzística. Aquele que opera com ritmos dançantes, grandes melodias de forte apelo somático, e que tem um cuidado no arranjo que raramente se vê na música pop nacional, seguindo de perto o padrão Montown, e que canta absurdamente bem. Ed Motta é sem dúvida um grande autor, e que não tem aquele ranço brasileiro idiota de trabalhar com a cultura de massa – a que, no fundo, melhor nos representa. Ele se propôs, como o tio Tim, a fazer música pop. E de excelente qualidade. Fica então a pergunta, sendo tão talentoso e com um grande nome de família, guardando semelhanças físicas e vocais mas sem se tornar uma cópia mal feita por encontrar um estilo próprio (o que não aconteceu ainda com a Maria Rita, por exemplo), apesar de fazer Black music de qualidade, porque não se tornou um sucesso? Porque o baixo retorno do público, que desiludiu o compositor a ponto dele abandonar seu lado pop em nome de uma obra mais hermética?

Ao invés de nos concentrar em fatores “externos” também importantes (mercadológicas, industriais, gosto), vamos partir de um dado interno de sua prática cancional, a enunciação, que comporta não apenas a interpretação, mas também a criação das linhas melódicas (já que ele é o compositor de suas canções) em relação com as letras. O momento em que tudo isso se conjuga na forma canto. Acreditamos que um das causas mais importantes para o insucesso de Ed Motta, a despeito da alta qualidade de seu trabalho (e descartamos por enquanto o juízo preconceituoso de que o brasileiro não sabe apreciar um trabalho bem feito, o que é uma besteira sem tamanho mas que guarda um momento de verdade com relação à música pop, que não segue no país uma tradição de elaboração industrial como nos estados unidos, em parte por não termos os mesmos recursos tecnológicos, em parte porque nossos recursos efetivamente “toscos” não interessam em um mundo voltado para o grande capital, do qual fazemos parte na condição de primos pobres, em parte porque nossa atenção se volta para aspectos mais artesanais da canção, esses sim, de grande complexidade. Em suma, aspectos da nossa famosa incapacidade criativa de copiar) esteja no tipo de tratamento melódico que ele confere a suas composições.

Ed Motta cria típicas melodias de linhagem americana (mas com incrível senso de musicalidade do português, é importante dizer, pois cria grandes canções e não pastiches de músicas importadas) em que os torneios vocálicos importam tanto quanto a mensagem do texto, por vezes, inclusive, perdendo-se a mensagem em nome da voz. A voz que canta se sobrepõe à voz que fala. Entre parêntesis lembro de um quadro do Casseta e Planeta que se chamava “música para quem não fala nada”, e os dois modelos eram justamente o Ed Motta e o João Bosco, cantando Papel Marche, por conta dos improvisos melódicos que estes conferem à suas composições. Esse padrão segue sentido oposto ao padrão enunciativo da canção brasileira, que nunca perde de vista aquilo que se diz, a mensagem dita por alguém no interior de uma melodia. Nossos maiores intérpretes não são os que realizam maiores marabalismos vocálicos, mas os que conseguem dizer com precisão o sentido que a melodia\texto quer transmitir. Mesmo Tim Maia – paradigma local de black music - jamais perdeu o texto em suas canções. A vocação da canção brasileira é voltar a ser fala – seu lugar de origem – e dessa zona intermediária em que não se torna música mas deixa de ser mera fala é que, com exceções, retira sua força.

Por mais que tenhamos grandes cantoras, jamais teremos uma Sarah Vaughan, ou uma Ella Fitzgerald, cantoras que tratam a voz como um instrumento, e que podem cumprir a função de um sax, ou de um trompete, quando a música assim o pedir. As melodias das canções negras americanas pedem o improviso, são complementadas pelos floreios vocálicos, perdem significação caso não o tenha – como as composições de Ed Motta, que não tem sentido na voz de outro intérprete menos “potente”. O potencial vocálico das cantoras nacionais é “constrangido” pela linha melódica que tem vocação para fixar-se, e seu talento consiste em procurar a interpretação definitiva, pouco propensa ao improviso que a descaracterize. Não se trata de juízo de valor: a qualidade é que está em outro lugar, em encontrar a versão definitiva (“Águas de março”, na versão Elis, “Carcará” na versão Bethania, “Malandragem” na versão Cassia Eller) para a canção. Torná-la uma peça única, apesar de sua vocação coletiva, comum aos gêneros populares. Encontrar o jeito mais adequado de cantar aquele texto, adequando a voz ao texto, ao invés de transfigurá-lo pela voz.


O padrão canto/improviso instrumental negro americano.

Temos também exemplos de cantoras com voz-instrumento, mas todas acabam por se adaptar à estrutura cancional brasileira, com risco de não “pegar” no país (como o caso de Leny Andrade). Lembremos as sambistas Alcione e Elza Soares. Mesmo na tradição da música romântica, em que no geral o sujeito da enunciação precisa aparecer tanto quanto ou mais do que o próprio texto, ainda assim este não se descaracteriza – a não ser em parte de certa tradição operística – Vicente Celestino - que anda bem em baixa (embora não tenha desaparecido de todo, basta acompanharmos o programa Raul Gil). Ainda assim, a tendência aqui é que a voz reforce as indicações passionais indicadas pelo texto (melódico e linguístico), ao invés de se sobrepor a este. No caso dos cantores da era do rádio, que cantavam sambas com timbre operístico, muitas vezes deformando o sentido melódico, ao poucos foram adaptando seu timbre ao sentido indicado pela canção, criando um modelo nacional de interpretação, a ponto de um Orlando Silva já conseguir transmitir as gingas melódicas perfeitamente bem, mesmo na tradição do bel-canto. E mesmo a tradição romântica moderna, pós Roberto Carlos, já adequa muito mais tranquilamente as expansões sentimentais no interior da curva enunciativa.

Voltando podemos dizer que o “problema” de Ed Motta – e que por uma lado é a razão de sua força estética – é que ele americaniza a linguagem cancional brasileira, enquanto seu tio (tomando lições com Roberto Carlos e com o samba) abrasileirava o padrão americano. Poucas canções de Ed Motta poderiam se tornar bem sucedidos pagodes (como no caso de “Você”) ou axés (“Não quero dinheiro”, com Ivete Sangalo), embora muitas poderiam ir para as pistas, como o “Descobridor dos Sete Mares”. A impressão que temos ao ouvirmos seus discos é que, por sua acentuação e divisão rítmica, as melodias são americanas, apesar de que, por se tratar de um sujeito extremamente talentoso e com ouvido privilegiado, as letras em português não soem desconjuntadas – como acontece em muito Black brasileiro dos anos 70 – como se fossem adaptações forçadas. As letras são cantadas em português adequadamente, mas soando em uma estrutura americana, um processo de transfiguração altamente complexo que atesta a qualidade de seu autor, e contribui para seu isolamento, pois são poucos os que possuem esse talento, que exige no mínimo um ouvido primoroso e um senso rítmico e melódico acima da média. Por ora, lembro de Gilberto Gil, um de nossos maiores gênios. Ou seja, as canções de Ed Motta tem encanto mas pecam em eficácia, as duas dimensões fundamentais para uma arte de tipo industrial como é a canção popular urbana, segundo Luis Tatit.


A música do tio famoso, agitando o Maracanã.

A Black music que pega no Brasil é a que se converte em outra coisa, assim como o rock, o reggae, o blues, o jazz... Ou passa por uma transfiguração radical que o converte em um outro, como Jorge Ben, ou sofre uma ressiginificação profunda de modo a que se faça música brasileira com jeitão black, como Tim Maia. Ed Motta tentou trilhar outro caminho, fazendo black music em português, o que aliás, realizou de forma muito bem feita. Só que não pegou, ou seja, não se mostrou eficaz e não frutificou, e nem poderia, por caminhar em sentido contrário à necessidades históricas internas do país. Uma forma bem acabada esteticamente mas que gira em falso por não se ancorar em um significado estrutural nacional – nossa linguagem cancional, sempre em transformação e com infinitas variedades a serem criadas, mas com presença e força incontornáveis, tanto para as músicas boas quanto para as ruins. E que o público brasileiro rigorosamente exige. O que não significa que não existam músicas nada a ver, pastiches ruins (quase todas as versões de Beatles em português, por exemplo) que façam sucesso. Mas no geral, são grupos de um só sucesso, ou então que fazem isso mas criam (ou recriam) também outras composições mais adequadas e melhores, como é o caso de Chitãozinho e Xororó.

O resultado final é que a linguagem de Ed Motta é pop, mas um pop difícil, sofisticado, jazzístico, que os americanos estão acostumados, mas o Brasil não – inclusive pelo caráter elitista da cultura no Brasil, que despreza a cultura de massa, além de outras razões que levantamos acima, e que nada tem a ver com a ignorância e mal gosto do pobre. Parece que, no fim das contas, Ed Motta sofre da mesma síndrome de Manuel, o personagem de seu primeiro grande sucesso: “se eu fosse americano minha vida não seria assim”.


O fenomenal pop sofisticado de Ed Motta.

Como presente, um disco em que Ed promete nos ensinar algumas lições de como fazer um grande baile. Um disco excelente, cheio de swing e com produção esmerada, que não deve nada aos grande mestres pop americanos, como o saudoso Michael. O único equívoco de Ed é não ter assimilado (ou ter optado por não considerar, porque ele foi progressivamente transformando sua linguagem em direção ao pop-jazz internacional) que a estrutura dos bailes e festas brasileiras é outra, e que toda transformação que almeje vingar por aqui precisa partir de dentro, para o bem e para o mal. Porque, ao contrario do que se diz, a música tem pouco de universal.


DOWNLOAD: Manual prático para festas, bailes e afins

Como contraponto, um disco de um mestre do pop nacional com estrutura similar a esse projeto do Ed Motta, (com a grande diferença de ser pop rock dançante, mais tosco, e não um disco Black), e que fez grande sucesso, recolocando o autor no topo. Lulu Santos é um dos grandes criadores da reformulação por que passou a canção romântica brasileira nos anos 80, no fim, a contribuição mais importante (produtiva) dada pelo rock Br.


DOWNLOAD: Lulu Santos – Assim Caminha a Humanidade


Menos "sofisticado", mas parece que o que bota o povão pra
dançar por aqui é outra coisa.

sábado, 12 de dezembro de 2009

É o amor - Zezé de Camargo e Maria Bethânia

Eai? Melhorou? Piorou? A música já era boa? Só ficou boa por conta da Bethânia? Ficou pior porque quis dar um clima cult? Ficou melhor com arranjos mais sisudos da MPB? Se foram os arranjos que melhoraram a canção, quer dizer que a diferença da canção romantica sertaneja para a canção romântica MPB é apenas uma questão de substituir o teclado por cordas? Ou ela continua uma bosta, mas a Bethânia é foda? Ou a Bethânia é brega e não tem jeito? Ou Zezé de Camargo é, de fato, um grande compositor romântico? É ruim porque parece que o Zezé vai morrer de tanto forçar a voz? É boa por isso, ao colocar um investimento passional que se perde na Bethânia? Ou ela investe no lugar certo, a la João Gilberto?

Ronaldo!




sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Consciência Negra, modo de usar, por Nei Lopes


Quando te disserem que você quer dividir o Brasil em “pretos” e “brancos”, mostre que essa divisão sempre existiu. Se insistirem na acusação, mostre que, neste país, 121 anos após a Abolição, em todas as instâncias, o Poder é sempre branco. E que até mesmo como técnicos de futebol ou carnavalescos de escolas de samba, os negros só aparecem como exceção.

Quando, ainda batendo nessa tecla, te disserem que o Brasil é um país
mestiço, concorde. Mas ressalve que essa mestiçagem só ocorre, com
naturalidade, na base da pirâmide social, e nunca nas altas esferas do
Poder. E que o argumento da “mestiçagem brasileira” tem legitimado a
expropriação de muitas das criações do povo negro, do samba ao candomblé.

Quando te jogarem na cara a afirmação de que a África também teve
escravidão, ensine a eles a diferença entre “servidão” e “cativeiro”. Mostre que a escravidão tradicional africana tinha as mesmas características da instituição em outras partes do mundo, principalmente numa época em que essa era a forma usual de exploração da força de trabalho. Lembre que, no escravismo tradicional africano, que separava os mais poderosos dos que nasciam sem poder, o bom escravo podia casar na família do seu senhor, e até tornar-se herdeiro. E assim, se, por exemplo, no século XVII, Zumbi dos Palmares teve escravos, como parece certo, foi exatamente dentro desse contexto histórico e social.

Diga, mais, a eles que, na África, foram primeiro levantinos e, depois, europeus que transformaram a escravidão em um negócio de altas proporções. Chegando, os europeus, ao ponto de fomentarem guerras para, com isso, fazerem mais cativos e lu crarem com a venda de armas e seres humanos.

Diga, ainda, na cara deles que, embora africanos também tenham vendido africanos como escravos, a África não ganhou nada com o escravismo, muito pelo contrário. Mas a Europa, esta sim, deu o seu grande salto, assumindo o protagonismo mundial, graças ao capital que acumulou coma escravidão africana. Da mesma que forma que a Ásia Menor, com o tráfico pelo Oceano Índico, desde tempos remotos.

Quando te enervarem dizendo que “movimento negro” é imitação de americano, esclareça que já em 1833, no Rio, o negro Francisco de Paula Brito (cujo bicentenário estamos comemorando) liderava a publicação de um jornal chamado O Homem de Cor, veiculando, mesmo com as limitações de sua época, reivindicações do povo negro. Que daí, em diante, a mobilização dos negros em busca de seus direitos, nunca deixou de existir. E isto, na publicação de jornais e revistas, na criação de clubes e associações, nas irmandades católicas, nas casas de candomblé... Etc.etc.etc.

Aí, pergunte a eles se já ouviram falar no clube Floresta Aurora, fundado em 1872 em Porto Alegre e ativo até hoje; se têm idéia do que foi a Frente
Negra Brasileira, a partir de 1931, e o Teatro Experimental do Negro, de 1944. Mostre a eles que movimento negro não é um modismo brasileiro. Que a insatisfação contra a exclusão é geral. Desde a fundação do “Partido Independiente de Color”, em Cuba, 1908, passando pelo movimento “Nuestra Tercera Raíz” dos afro-mexicanos, em 1991; pela eleição do afro-venezuelano Aristúbolo Isturiz como prefeito de Caracas, em 1993; pelo esforço de se incluírem conteúdos afro-originados no currículo escolar oficial colombiano no final dos 1990; e chegando à atual mobilização dos afrodescendentes nas províncias argentinas de Corrientes, Entre Rios e Missiones, para só ficar nesses exemplos.

Quando, de dedo em riste, te jogarem na cara que os negros do Brasil não são africanos e, sim, brasileiros; e que muitos brasileiros pretos (como a
atleta Fulana de Tal, a atriz Beltrana, e o sambista Sicraninho da Escola
Tal) têm em seu DNA mais genes europeus do que africanos, concorde. Mas diga a eles que a Biologia não é uma ciência humana; e, assim, ela não explica o porquê de os afrobrasileiros notórios serem quase que
invariavelmente, e apenas, profissionais da área esportiva e do entretenimento. E depois lembre que a Constituição Brasileira protege os
bens imateriais portadores de referência à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira e suas respectivas formas de expressão. E que a Consciência Negra é um desses bens intangíveis.

Consciência Negra – repita bem alto pra eles, parafraseando Leopold Senghor – não é racismo ou complexo de inferioridade e, sim, um anseio legitimo de expansão e crescimento. Não é separatismo, segregacionismo,
ressentimento, ódio ou desprezo pelos outros grupos que constituem a Nação brasileira.

Consciência Negra somos nós, em nossa real dimensão de seres humanos, sabendo claramente o que somos, de onde viemos e para onde vamos, interagindo, de igual pra igual, com todos os outros seres humanos, em busca de um futuro de força, paz, estabilidade e desenvolvimento.


Nei Lopes
Meu Lote - www.neilopes.blogger.com.br