sábado, 26 de dezembro de 2009

UM OLHAR SOBRE “SEGURA O TCHAN”, DO GRUPO É O TCHAN (1 de 3).

Para Ricardo Tamashiro, que comprou a idéia num certo templo budista

Peço licença pra galera que acompanha o blog pra fazer aqui uma experiência, publicando um texto mais analítico e, por isso, mais chato de se acompanhar. Na verdade, trata-se de uma experiência com certo instrumental de análise (o método semiótico de análise de canções) que tenho descoberto aos poucos, e para o qual eu ainda estou procurando a linguagem ideal. Mas como eu queria muito publicar umas reflexões sobre o axé, tanto para demonstrar do meu jeito sua qualidade quanto pra realizar uma reflexão teórica sobre um objeto cultural marginalizado nos meios mais elitizados (apesar de o consumirem avidamente), vai assim mesmo. O texto pode ser lido como uma espécie de treinamento ou direcionamento de perspectiva, que espero resultar em algo a ser apropriado em minhas leituras e audições. Espero que os vídeos com a festa do grupo, e a maravilhosa Sheila Carvalho consigam quebrar um pouco a aridez do texto.

A idéia principal aqui é se contrapor àqueles que sustentam que a canção “Segura o tchan” é ruim, ou mal realizada, a partir de uma análise que pretende considerar a relação de complementariedade dinâmica que se estabelece entre letra e melodia, mostrando como ela consegue manter um equilíbrio bem realizado formalmente entre diversos elementos em tensão. A idéia é mostrar também como a canção consegue construir um refrão de grande força estética, além de discutir rapidamente algumas questões sobre cultura de massa, sociedade brasileira e forma estética.



AS CRÍTICAS
O objetivo desse texto é tentar compreender os mecanismos de construção da canção “Segura o tchan”, demonstrando que, apesar de apresentar alguns elementos estruturalmente frágeis, estes não comprometem a força estética da canção, pois esta consegue encontrar um tipo de resolução bem acabada em seu projeto mais geral, cujo ponto máximo de inflexão é a força de seu refrão, um verdadeiro achado estrutural de grande potencial.

Comecemos então nosso percurso fazendo o caminho oposto, qual seja, retomando as principais críticas feitas tanto à canção quanto ao grupo de um modo geral, começando das menos interessantes até chegarmos naquela que permitirá adotarmos nosso próprio ponto de vista.

Pobreza rítmica: para essa crítica encontramos apenas duas explicações; ou se trata de uma brincadeira qualquer, ou parte de incompreensão profunda, pois o grande trunfo de “Segura o tchan” e de todo o axé, em torno do qual essas canções se organizam estruturalmente é a complexidade rítmica. Qualquer melodia canhestra de Axé é ritmicamente mais interessante do que uma sinfonia.

Pobreza harmônica: a harmonização dessas canções, ao contrário do que se passa na música erudita, segue uma lógica rítmica rigorosa. Nesse sentido, o padrão harmônico do Tchan segue os princípios da música popular tradicional – o samba de roda, a chula – com centralidade para o cavaquinho, por si um instrumento harmônico de forte caráter percussivo. A harmonização “dura” é pois perfeitamente adequada as necessidades estruturais da canção, e a idéia de pobreza não se aplica nesse caso, ao menos não sem prejuízo de compreensão.

Inferioridade dos arranjos: também não procede. O arranjo é absolutamente adequado ao estilo da composição, centrando-se nos aspectos percussivos, com predominância harmônica do cavaquinho. Os demais elementos – teclado, metais – apenas reforçam informações com todo cuidado para não negligenciar o mais importante (como tanto ocorre nos arranjos carregados dos anos 80, ou dos anos 30). Seria de fato possível criar um arranjo mais bem elaborado, o que não quer dizer que esse que se apresenta não se sustenta.

Interpretação ruim: Embora apresente alguns elementos de convenção de gênero que acabam por se tornar redundantes, pouco contribuindo para o resultado final da canção, pode-se dizer que Beto Jamaica é um bom intérprete de axé, com um estilo contagiante sem sair muito do comum, mas que consegue transmitir bem a mensagem e não se compromete tentando realizar estripulias das quais não se sairia bem, como ocorre muitas vezes com os intérpretes de pagode. Um exemplo de interpretação inadequada seria colocar Chico Buarque em cima de um trio elétrico. Um exemplo de interpretação ruim é o da vocalista do Djavu. Se é verdade que a qualidade vocal não é o grande atrativo do grupo (as mulheres vocalistas de axé se saem melhor nesse aspecto), pode-se dizer também que ele dá conta do recado, e segura a balada. E quando não, tem ali por perto o Cumpadi Washington (um típico exemplar do malandro em tempos já atuais: quase não cantava, limitando-se a soltar de quando em quando frases de efeito, e ganhando muito dinheiro com isso; pegou a mulher mais cobiçada do país na época, e ainda – dizem por aí - descia o cacete nela).

Restam assim duas críticas a nosso ver mais interessantes. Apesar de não concordarmos inteiramente com seu prognóstico negativo, ela permite que nos concentremos em aspectos que possibilitam uma abordagem analítica mais produtiva, ao se fixar efetivamente no aspecto mais artesanal da canção. Trata-se da crítica que se refere a “pobreza” das letras do grupo e de suas linhas melódicas, que seriam “todas iguais”.

Uma primeira ressalva que já podemos adiantar é que essas duas críticas só perdem em alcance ao serem consideradas em separado - o que não significa dizer que elas não tenham sua razão de ser. De fato, existe algo nessas canções que pode ser difusamente classificado como um sentimento geral de “pobreza”, ou carência – a qual procuraremos definir – e que se apresenta mais explicitamente na letra (na melodia, veremos, o diagnóstico revela-se mais complicado, apesar de ser indicativo de algo importante). Mas ao contrário do sinal negativo dessa crítica - no geral antipática ao gênero como um todo -defenderemos aqui que a conjunção dessas duas pobrezas (melódica e lingüística) se convertem em riqueza a partir da relação que estabelecem. O pressuposto para essa guinada valorativa está em que a análise de qualquer canção deve partir da noção de que letra e melodia formam uma estrutura complexa, que perde muito ao ser tomada isoladamente.



Exemplo de interpretação ruim: Djavu


ATONIZAÇÃO TEMÁTICA

Diagrama 1 – “Pau que nasce torto \ Nunca se endireita”

Para começar, já de início é possível reconhecer dois dos três processos principais da arquitetura de uma canção. A melodia tem início no tom mais alto da tessitura da canção, o que revela de início um forte investimento passional por parte do intérprete. Não se trata, no entanto, de uma canção passional (usaremos aqui as categorias semióticas desenvolvidas por Luis Tatit. Para saber mais, veja “O Cancionista”, ou “Análise Semiótica da Canção”), que seria, para simplificar, uma canção que trata de disjunção, perda do objeto para o sujeito. A passionalização – nome desse processo – no caso, que se caracteriza melodicamente por grandes saltos intervalares (salto de uma oitava, por exemplo, típico nas canções românticas VEJA EXEMPLO) e prolongamentos das vogais, está a serviço da celebração, o clima de festa que conduz a uma excitação tão grande que se transfere para a melodia.

Nesse ponto, tal processo liga-se a outro, que nesse caso é o principal. Notamos desde o início uma mesma figura melódica que irá se repor todo o tempo, cuja repetição é uma forma de antecipar o refrão, transpondo seu sentido para toda composição ( Figura ------- __ ). No caso dos fragmentos 1 e 2, apenas a descendência do início do segundo (“menina que requebra”) altera a reiteração desse tema, e com a nítida função de preparar seu retorno em “pega na cabeça”. Esse tipo de canção, com melodia que reitera pequenos temas ao longo de sua estrutura, é chamada por Tatit de canção temática e, no geral, apresentam letras com caráter celebratório, ritualístico, de forte apelo somático, corporal. Seu procedimento é a tematização. Um tipo de canção que bota pra dançar, celebrando algum tipo de conjunção entre sujeito e objeto.

“Pau que nasce torto nunca se endireita” tem um tom assertivo, que indica uma certeza. Nota-se que no plano melódico, a descendência final – endi-reita e ca-beça – confirma o tom de afirmação expressa pela letra. Esse é um comportamento típico da música urbana brasileira, que recupera em sua estrutura melódica padrões entoativos da língua falada. A conseqüência principal desse aspecto é que uma análise apenas musical da melodia não consegue dar conta de sua estrutura, posto que ela também e subordina a leis lingüísticas.

Tentando uma “tradução” do que se expressa nesse trecho, seria algo do tipo quem nasce vaca vai morrer vaca, está no sangue. A utilização do ditado popular nesse trecho abre o sentido do verso para além de si mesmo, em direção a indeterminação da cultura popular de domínio público. Aqui é já possível matizar a acusação de empobrecimento da letra, revelando sua parcialidade pois, mudando-se a direção do olhar, pode-se dizer que a letra é enriquecida com uma multiplicidade de sentidos em cada verso. Ou seja, a atonização (conceito que substitui o de pobreza sem a conotação negativa deste) da coerência textual em nome da coerência temática (expressa por letra e melodia) é equilibrado por uma polissemia (multiplicidade) de significados dos versos. Cada um deles quer dizer coisas para além de si, comportando dois ou mais sentidos. A atonização da letra conduz a um ganho polissêmico que se apresenta a cada verso, recolocando a coerência inicialmente perdida (em nome de uma organicidade maior) em outro plano, uma coerência de segunda ordem, devido à abertura de significados que não se dispersam por conta da forte organicidade melódica, que além disso será integralmente recuperado pela força do refrão.

Digamos pois que o aspecto fragmentário da letra – que contém nesse caso, como veremos, algo de mal acabamento – é contrabalanceado pelo forte caráter reiterativo da canção, como se uma letra mais tônica marcasse uma espécie de exagero que prejudicaria o conjunto. Todo o esforço dessa canção consiste em equilibrar os múltiplos sentidos dispersos ao longo de sua estrutura. A raiz de sue procedimento aponta para a abertura, sendo pois aquilo que as críticas tratam no geral como insuficiência exatamente o ponto de força da forma, levado por uma necessidade de ordem interna. A crítica não deve, portanto, simplesmente apontar para a polissemia – o equivalente literário seria mostrar que um poema é escrito em versos - ou heterogeneidade, mas atentar para em qual ponto e de quais modos se opera sua re-estruturação.

Na verdade, as canções temáticas – de apelo somático - no geral apresentam certa atonização da letra, em maior ou menor grau, que “compensam” a reiteração melódica. Pois uma das leis gerais da canção é a busca do equilíbrio – realizar as operações mais complexas como se fossem assim desde sempre – e uma letra por demais tônica (lembrando que, em canção, tudo pode ser feito. Estamos simplesmente apontando tendências de procedimento) poderia prejudicar esse equilíbrio. Como exemplo, lembremos, a cifragem de “Meia-lua inteira”, composta por fragmentos, ou a enumeração descritiva ao longo de um mesmo tema, e que se contrapõe a certa lógica narrativa em “Águas de Março”. Ou ainda, as letras de Chico Science, que exigem certa cumplicidade regional do público para completar seu sentido. Nem todas as canções temáticas são assim, mas dentre todas as três (temáticas, passionais e figurativas, de que trataremos adiante) estas são particularmente propícias a esse movimento, pois, na relação que estabelece com a letra, acaba equilibrando o conjunto. Atonização lingüística em nome de tonificação temática. Pensemos por exemplo na dificuldade e “incoerência” que teria uma canção desse tipo em manter toda coerência do significado de um rap. É por isso que a vertente temática do rap (que é figurativo, ou seja, que fixa na estrutura melódica a instabilidade da fala), o funk, passa da denúncia para a celebração. De um ponto de vista estrutural, está perfeitamente adequado.

Meia Lua Inteira sopapo
Na cara do fraco
Estrangeiro gozador
Cocar de coqueiro baixo
Quando engano se enganou...

São dim, dão, dão
São Bento
Grande homem de movimento
Martelo do tribunal
Sumiu na mata adentro
Foi pego sem documento
No terreiro regional...

Uera rá rá rá
Uera rá rá rá
Terça-Feira
Capoeira rá rá rá
Tô no pé de onde der
Rá rá rá rá
Verdadeiro rá rá rá
Derradeiro rá rá rá
Não me impede de cantar
Rá rá rá rá
Tô no pé de onde der
Rá rá rá rá...

Bimba birimba a mim que diga
Taco de arame, cabaça, barriga
São dim, dão, dão
São Bento
Grande homem de movimento
Nunca foi um marginal
Sumiu na praça a tempo
Caminhando contra o vento
Sobre a prata capital...



Meia lua inteira com um arranjo excelente.

Ouvir uma canção desse tipo, torcer o nariz e dizer “Mas que porcaria de letra” acaba por identificar um processo (como perceber que um soneto é composto por dois quartetos e dois tercetos), mas o juízo de valor negativo acaba interrompendo o possível potencial crítico do achado (“Mas que droga, um soneto com dois quartetos e dois tercetos!”), cobrando do objeto justamente aquilo que ele não poderia ser, com o risco, aí sim, de tornar-se mal realizado. No caso, ocorre uma abertura no plano do significado (“riqueza” polissêmica do signo), diretamente determinada pela relação que se estabelece com o fechamento melódico em pequenos temas. Desse modo é que as duas “pobrezas” parciais convertem-se em um ganho em termos mais gerais.

5 comentários:

  1. pois é, voce disse tudo isso e a sheila que é bom, nada.
    Naquele clipe Sheila Carvalho ainda não tinha sido eleita pelo domingão do faustão a nova morena do Tchan. Que aparece no vídeo é Débora e Carla. De dançarina você não entende nada.

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  2. Rindo até não poder mais14 de janeiro de 2010 às 17:11

    Não pode ser um texto sério, meu Deus:

    "A atonização da letra conduz a um ganho polissêmico que se apresenta a cada verso, recolocando a coerência inicialmente perdida (em nome de uma organicidade maior) em outro plano, uma coerência de segunda ordem, devido à abertura de significados que não se dispersam por conta da forte organicidade melódica, que além disso será integralmente recuperado pela força do refrão" (Como se refutar um treco desses????????)

    "Pobreza rítmica: para essa crítica encontramos apenas duas explicações; ou se trata de uma brincadeira qualquer, ou parte de incompreensão profunda, pois o grande trunfo de “Segura o tchan” e de todo o axé, em torno do qual essas canções se organizam estruturalmente é a complexidade rítmica. Qualquer melodia canhestra de Axé é ritmicamente mais interessante do que uma sinfonia."

    Interessante MESMO é não notar que o refrão "Segura o tchan, amarra o tchan", é ritmicamente idêntico à abertura da 5ª Sinfonia de Beethoven: "tchan-tchan-tchan-TCHAN - tchan-tchan-tchan-TCHAN", simplesmente acelerada. Não dá para acreditar que alguém ache que "O Tchan" é ritmicamente mais complexa que qualquer sinfonia quando não nota que há duzentos anos, pelo menos, esse ritmo já deixou de ser novidade... Além do mais, obviamente desconhece totalmente a música do século XX e suas complexidades rítmicas...

    "(...) defenderemos aqui que a conjunção dessas duas pobrezas (melódica e lingüística) se convertem em riqueza a partir da relação que estabelecem. O pressuposto para essa guinada valorativa está em que a análise de qualquer canção deve partir da noção de que letra e melodia formam uma estrutura complexa, que perde muito ao ser tomada isoladamente."

    Essa constatação de que a análise deve tomar letra e melodia conjuntamente é pelo menos tão velha (na música ocidental) quanto o Canto Gregoriano, e ,obviamente, se se tomar por "riqueza" apenas a suposta adequação (segundo o blogueiro) de duas pobrezas que se complementam, talvez eu esteja prestes a realizar uma das maiores obras de arte de todos os tempos: uma tela em branco com o título "Não quero expressar nada"... quer uma complementaridade mais perfeita entre forma e conteúdo?????

    Enfim, não dá para perder tempo tentando refutar um texto desse... É mais ou menos como refutar o criacionismo, ao se discutir com alguém que acredita nisso...

    A "tese" desse bisonho-médio me parece Calviniana (relativo ao Calvin de "Calvin and Hobbes", é claro) demais para merecer mais que algumas risadas...

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  3. Muito interessante, a análise. De fato é preciso combater certo ponto de vista esquerdóide que vê nas gravações de Tereza Cristina e Mônica Salmaso manifestações "autênticas" e chama de "degradação" ou "barbárie" músicas como "segure o Tchan". Você já tinha escrito sobre isso e agora o provou de modo analítico. A polêmica a análise levanta denuncia o quanto o argumento esquerdóide de que falei vem carregado de preconceito elitista. Vide o caso do nosso amigo aí embaixo, que transcreve trechos do seu texto e confessa sua própria cegueira. Enfim, concordo em quase tudo. Minha crítica é que às vezes você compara a situação atual com situações anteriores, dizendo que o funk é rechaçado hoje do mesmo modo que o samba do morro era na década de 30. Nesse ponto acho que você se equivoca pois, salvo engano (não é finta, realmente posso estar equivocado), assume uma postura "tropicalista" tardia. Quer dizer, se a utopia sexual evocada por "É o tchan" é muito mais autêntica e popular do que os trinados esterelizados de mônica Salmaso (embora ele não use trinados, você entende o que quero dizer), essa apropriação mercadológica é muito mais terrível no segundo caso, não concorda? A não ser que a proposta seja resgatar utopias desse tipo. Se o caso for esse, mesmo achando que se trata de um projeto fadado ao fracasso, não quero perder a festa de jeito nenhum!

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  4. Muito interessante o que você fez, usando a semiótica da canção pra analisar esse material mais popular, não pertencente a "MPB erudita" dos grandes medalhões da música brasileira. Vibrei de alegria por ler o seu artigo, visto que fiz o mesmo na minha conclusão de curso de jornalismo, só que o objeto de análise era a música sertaneja de Chitãozinho e Xororó. Depois se quiser te mando o texto.
    Aproveito pra dizer que coloquei seu blog na minha lista de indicação de leitura no www.etcjazz.blogspot.com. Abraço.

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  5. É o Tchan é um samba de roda irado!
    Pega as músicas não-comerciais. Tem uma pegada massa, ng fica parado e conta um pouco da cultura de rya.
    Chora

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