quinta-feira, 27 de novembro de 2014

CHIC POP: Coletivo historiográfico de cultura popular

 

 

MUDAMOS!!!

A partir de agora os novos textos serão postados no site do coletivo Chic Pop. Os textos anteriores do blog aos poucos também serão transferidos para lá. Participe!

 

www.chicpop.com.br

 

Escapar Fedendo (04\2007–11\2014)


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É com aperto no coração, mas também com sensação de dever cumprido, que estou (temporariamente?) encerrando as atividades desse blog. Mas não por algum motivo funesto – mesmo em tempos mais conturbados, o blog sempre se manteve na ativa: o escapar, como o samba, agoniza mas não morre – mas para alçar novos e mais altos vôos. Saímos da blogsfera e migramos para o domínio dos sites, ampliando nosso horizonte de possibilidades. Agora o Escapar Fedendo será definitivamente um projeto do coletivo Chic Pop, um conjunto de colaboradores, pesquisadores e curiosos, com interesse comum pela cultura de massas, em suas diversas manifestações.
CHIC POP – Clique aqui
O Chic Pop pretende também ampliar a interação com seus leitores. Desse modo, o espaço para colaboração será muito maior no novo endereço, assim como a possibilidade de compartilhamento, troca, busca, etc. A ideia é criarmos um espaço de reflexão (e curtição) coletivo, a partir de um modelo mais dinâmico.
Ao longo desses sete (já!!) anos, muita coisa boa aconteceu.
*O Falcão em pessoa, nosso Guru, enviou um email de apoio ao nosso blog, logo em seu início. O conteúdo era o seguinte:
“Olá Acauam,
Vi seu Blog –Escapar Fedendo-, muito bom, supimpa, coisa de alta catilogência!
Quanto ao prefácio para o livro, estou à disposição. Mande-me o bicho pra eu fazer o leriado.
Um abraço,
  Falcão
O prefácio em questão era pro Churrasco Grego, livro de poesia que escrevi com o parceiro\irmão José Virgínio. Acabou não rolando o prefácio,  mas o Falcão adicionou o blog a sua página de favoritos. Incrível!
* Acabamos participando ativamente do processo de “redescobrimento” do Di Melo. Isso porque por muito tempo o Escapar foi a página mais acesssada para download do único álbum do soulman pernambucano.
* Algumas postagens de amigos acabaram ganhando grande visibilidade no blog, aumentando a rede Chic Pop.
*Alguns posts renderam muitas discussões, se tornando grandes “sucessos” que até hoje rendem comentários. Um dos principais é o artigo sobre É o tchan, em que faço uma análise semiótica da canção Segura o Tchan. A polêmica ficou por conta da desconfiança dos leitores de que um produto cultural do “baixo-escalão” da música popular brasileira pudesse fornecer conteúdos para uma análise séria. Ou seja, foi uma espécie de prova-de-fogo de todo argumento sustentado pelo blog, desde o início.
* O artigo sobre Zizek proporcionou excelentes discussões e novas amizades, que se extenderam para além do blog.
As postagens mais acessadas aqui nesses sete anos foram as seguintes:
1) Di Melo (1975): 4293 visualisações (download)
2) História da Literatura Ocidental: 4247 visualizações (download)
3) Um olhar sobre “Segura o Tchan”: 3075 visualizações (análise em 3 partes)
4) Uma crítica à graciosa mala Mafalda: 2586 visualizações (análise)
5) Morre o mito: 2127 visualizações (análise Michael Jackson)
6) O que os trapalhões tem a nos ensinar sobre a estrutura do racismo: 1450 visualizações (análise racismo a partir de um episódio dos trapalhões)
Gente de todo mundo passou por aqui por esses anos: Brasil, Estados Unidos, Alemanha, Bélgica, Rússia, Polônia, Ucrânia. Fiz contatos e amizades virtuais interessantíssimas, que permanecem até hoje, e aprendi muito nesse tempo (é até engraçado comparar as primeiras postagens com as mais recentes). Espero continuar com vocês nessa nova fase.
201305070400000000003983 Vem com a gente!











quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Soulcialist

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O parceiro Breno do coletivo Chic Pop montou uma playlist matadoura em homenagem aos 25 anos da queda do muro de Berlin, segundo ele “uma coletânea de jazz e funk vindo do lado de lá dos muros que separaram – e continuam separando – tantas sociedades. Escolhi fazer uma mixtape de músicas pop, porque acredito que mais do que qualquer razão econômica, política, geográfica ou militar, foi a dificuldade de ser pop a maior responsável pela lenta ruína do socialismo no mundo”. A seleção ficou fantástica, outra jóia de arqueologia musical.

Eu não consegui encontrar todas as músicas e nem todos os grupos da playlist na internet, então fiz ligeiras modificações: minha seleção tem três músicas a menos, e tive de mudar algumas poucas músicas, sempre mantendo vivo o “espírito” da coisa, afinal, é de comunismo que estamos falando, então é bom não ficar de brincadeira. E de quebra, a lista serve de contra-narrativa para o serviço de desinformação capitalista que temos hoje, mostrando que o comunismo foi muito além de Cuba, Vietnan e URSS e não era tão inimiga da criatividade e liberdade estética, ao menos não de forma tão chapada quanto a mídia corporativista faz supor. Pode tirar a bandeira vermelha do armário que aqui nós adoramos uma boa ditadura feminazi gayzista bolivariana. Segura essa pedrada (vermelha):

01 – Big Band Katowice – Madrox (Polônia)
02 – Theo Schuman Combo – Derby (RDA)
03 – Los 5-U-4 – Baila, Ven y Baila (Cuba)
04 – Phương Tâm – Đêm Huyền Diệu (Vietnã)
05 – Aura Urziceanu – Jacul Tambalelor (Romênia)
06 – Prague Big Band – Portrait (Checoslováquia)
07 – Krzyszstof Sadowski – Ten Nasz (Polônia)
08 – Zalatnay Sarolta – Hadd Mondjam El (Hungria)
09 – Orchestre Poly-Rythmo de Cotonou – Djanfa Magni (Benin)
10 – Grupo Los Yoyi – El Fino (Cuba)
11 – Гая - Аман яр (Geórgia)
12 – Tian Niu - 恬妞(China)
13 – Modo – Delvitais Vilnis (Letônia)
14 – Miša Blam – Gorila (Yugoslávia)
15 – Carol Kim - Nỗi Buồn Con Gái (Vietnã)
16 -
Irakere – Aguaniele Bonco (Cuba)
17 –
Walter Kubiczeck – Heiße Spur (RDA)
18 – Ансамбль Мелодия под руководством Георгия Гараняна – Ленкорань (URSS)
19 – Bonga – Ghinawa (Angola)
20 – Collage –  Mets Neidude Vahel (Estônia)
21 – Vagif Mustafazadeh – Yollar (Arzebaijão)

22 – Johnny Raducanu – Balada (Romênia)

terça-feira, 18 de novembro de 2014

A visão demoníaca de Salieri


amadeussalieriNos momentos iniciais de Amadeus (Milos Forman, 1984), acompanhamos o maestro Antonio Salieri instaurado em um manicômio para onde foi levado após uma tentativa frustrada de suicídio. Nele, conversa com um jovem padre que pretende absolvê-lo de seus pecados. Em dado momento, o maestro toca para o padre algumas melodias de sua autoria, mas o jovem rapaz, apiedado, não reconhece nenhuma. A última peça entoada por Salieri, no entanto, é alegremente reconhecida. É de Mozart.
É bastante evidente que o foco principal do filme não é a tragetória do garoto prodígio Mozart, mas o próprio olhar devoto de Antonio Salieri, o anjo caído. A perversidade aqui, e que gera o potencial dramático da narração, é que o primado do ponto de vista não é um privilégio, e sim parte de sua danação, pois Salieri está condenado a existir exclusivamente a partir da sombra do gênio, de quem era o principal admirador. Como Judas, Salieri é o Outro que só existe a partir daquilo que “negou”, ou antes, sua negação participa ativamente da construção positiva do mito. O filme é antes de tudo a própria constituição da punição de Salieri -  cujo olhar atormentado terá grande poder narrativo – como se o verdadeiro castigo do Cão fosse a obrigação de perpetuar a história e a glória de Cristo. Pode-se dizer que, em linhas gerais, Amadeus é uma história sobre Deus narrada do ponto de vista do Diabo em pessoa. Ou ainda, um filme sobre Cristo narrado da perspectiva de Judas. Sua força depende do grau de radicalidade desse tabu, um dos maiores do reino cristão, o mais polêmico evangelho apócrifo.
Mas no que essa associação entre Salieri e '”aquele-que-não-se-ri” se sustenta, em termos narrativos? A referência óbvia fica por conta do próprio Salieri, que desde o início associa Mozart ao todo-poderoso, para explicitamente o recusar. A verossimilhança desse reconhecimento (porque apenas Salieri é capaz de compreender a centelha divina em Mozart?) é construída cinematograficamente por um bem estruturado conjunto de “deslocamentos” e simetrias. Salieri é um músico devotado – tal qual Mozart -  que entrega a si e a sua arte (em verdade, um só) completamente a Deus; por isso mesmo, torna-se dotado do privilégio\maldição de reconhecer o trabalho do criador na terra, ou melhor, na música, seu campo de devoção. Além disso, tal qual Mozart, o maestro italiano também está deslocado em relação a seu contexto, sem pertencer aquela classe ou aquele país. Salieri é um elemento de transição entre dois mundos, que sai do “inferno” da vida burguesa medíocre para o “paraíso” da aristocracia vazia. Até seu encontro traumático com a “Coisa” divina, seu sucesso mundano (como compositor da corte) confirma a presença de Deus em si e preenche sua vida de significado – como deve ser, aliás, em uma sociedade hierarquizada e estamental. Contudo, a emergência de Mozart o força ao reconhecimento de um paradoxo: a inadequação entre a aparência (sua vida de contenção) e a realidade (o desregramento milagroso de Mozart) de Deus.
O que confirma a transformação demoníaca de Salieri, a configuração de sua imagem de anjo caído, é a saída que ele encontra para esse “paradoxo” divino. A solução, “celestial” do dilema, uma saída burguesa-cristã, seria a recusa da falsidade do mundo, assumindo que a verdade divina está em oposição a norma aritocrática, ao qual ele dedicou sua vida. Nesse caso, Salieri se colocaria ao lado de Mozart contra a estreiteza de visão de sua época, aceitando que, no limite, a morte de seu pai foi em vão – pois suas palavras “não serás músico” não eram uma proibição, e sim uma simples constatação. Um ato de pura devoção, contra sua própria vida. A solução “aristocrática-ateista”, por sua vez, (representada pelos demais membros da corte) seria a de ignorar o divino em Mozart e tratá-lo como um jovem arrogante presunçoso, que constrói obras com “notas demais”, etc. Uma solução bem mais “realista” e pobre em termos narrativos. Salieri, ao contrário dos provincianos da corte, sabe que a quantidade de notas é perfeita e que aquele é um milagre de Deus, como ele até então acreditava ser. Por isso sua solução é “demoníaca”: ele reconhece Deus, reconhece que aquilo que o havia tomado não era o divino, mas um artesanato muito mais mundano (para o qual é preciso ter talento, sem dúvida, mas pré sujeito moderno, comprometido com o mais prosaico) e deliberadamente se propõe a colocar-se contra o ponto de vista que ele ama e julga verdadeiro. Um gesto de amor profundo, e não de desprezo – e o filme retrata muito bem o caráter destrutivo desse amor\ódio. Salieri ama tão profundamente a Deus que não suporta a ideia de estar afastado dele. Por isso, torna-se deliberadamente um representante do Inferno. Atacar o seu amor é sua forma de mostrar a mais profunda devoção: já que Deus não participa efetivamente de seu ser, Salieri se dedica a fazer com que ele o preencha negativamente, tornando-se Lucifer.
(é claro que existe aquela inveja bem mundana por um moleque qualquer que é mais genial do que ele próprio que abdicou de todas as paixões em nome de uma só Verdade. Mas o conteúdo desse sentimento é muito mais trágico que mesquinho -  e a trilha sonora reforça essa tragicidade muito bem – porque ligado a pulsões muito mais profundas, que o acabam por consumir. Salieri associou sua auto-realização à morte do pai, pela qual sente-se responsável (ele pediu um milagre a Deus para poder tornar-se músico, e seu pai, que era contra, engasga-se no almoço), substituindo-o por um Pai mais adequado e coincidente com seus desejos, no caso Deus. Contudo, quando o encontro com Mozart re-encena a frustração original (não ser O músico, não portar a verdade da música em si), a sua solução é repor exatamente a mesma fixação não resolvida: matar o Pai, no caso, Deus. O trágico é que se a primeira morte paterna colocou-o para si ao lado da verdade (a música) que o permite construir sua vida, essa segunda deliberadamente o afasta e paralisa – ele “morre” junto com Mozart, pois sua existência se paralisa ao assumir para si a condição de sombra, ou de “Santo patrono da mediocridade”. Como se houvesse um “retorno” da primeira interdição paterna, que o impede de ser verdadeiramente músico e participar da divindade. O pai funciona aqui como sintoma dessa interdição fundamental do desejo: “eu não posso ser músico” se converte em “meu pai não permite que eu seja músico”. Desse modo, a morte do pai funciona como o mecanismo que o permite superar essa insuficiência originária. Entretanto, o Real dessa incapacidade retorna (a verdade da música está ao lado de Mozart, não dele), tornando a segunda morte um ato desesperado – inevitável passage à l'acte - de impotência. Para fugir do confronto com seu próprio vazio, Salieri substitui seu pai real pelo próprio Deus. Revelado o truque, decide matar Deus, o que o devolve para o vazio inicial).   
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As relações de simetria entre as personagens também são perceptíveis em outros pontos. Mozart não consegue se livrar do fantasma do pai e, por isso, não pode crescer (a infantilização faz parte de sua genialidade). Salieri, por sua vez, perdeu o pai logo cedo, acreditando ser resultado de um acordo feito com Deus por oração -  a morte do pai como garantia da presença de Deus em si. Assim como a perdição de Mozart é nunca ser capaz de livrar-se do pai – incapaz de superar a castração – a de Salieri consiste em assassinar continuamente o próprio pai. Mozart submete-se ao pai, e por isso não se submete as normas sociais - só reconhece o poder paterno (o Real que retorna como trauma aqui é que a sociedade não aceita essa condição secundária, que para Mozart é natural). Salieri mata o pai para melhor se submeter as normas sociais. A aparição de Mozart funciona para ele como o confronto com aquilo que em si escapa da adequação social que ele almejava  - ou seja, com a verdade expressa na proibição do pai (“não serás músico”). O que ele enfim reconhece no espelho do Outro é que Deus está justamente naquilo que por ele foi sacrificado, pois ao passo que ele é a encarnação perfeita da norma, Mozart é o próprio Acontecimento que ressignifica o todo e instaura uma outra normatividade. Ao sacrificar sua vida em nome de sua paixão (devoção), Salieri sacrificou a própria verdade de sua paixão.
O que lhe resta então é dedicar sua vida a esse vazio, dando existência a Deus em si a partir de seu enfrentamento. Sua “salvação” é fazer de Deus um fantasma, e tornar esse espectro a razão negativa de sua existência. A perversidade aqui é que sua única forma de aproximar-se de Deus (negativamente) é também sua maior punição – o reconhecimento de que ele jamais irá encontrar-se com Deus. Não por acaso, o grande filme sobre a vida de Salieri é um filme sobre Mozart. Só conhecemos Salieri porque ele participa, em negativo, da existência de Mozart. Essa é sua punição: só existir a partir daquele que ofuscou sua existência para sempre. A forma narrativa dá consistência estética ao tormento da personagem, secundário mesmo quando é um narrador em primeira pessoa.
Por isso a crítica padrão ao filme  - a de que ele é ruim porque coloca em termos individuais (o “gênio”) aquilo que seria uma questão social (norma aristocrática x subjetividade burguesa emergente) - não é suficiente para quebrar seu encanto. Primeiro porque o aspecto social é, sim, explorado no filme em diversos níveis –o dinheiro é a grande perdição de Mozart. Sua força, entretanto, consiste em não ceder à facilidade do tema da mera mesquinharia de Salieri, optanto por mostrar que no fim das contas ele estaria tentando tirar da jogada um concorrente muito mais talentoso, que prejudicaria sua carreira, etc. Para o elemento trágico funcionar, precisamos acreditar na verdade de sua devoção, ou seja, acreditar na fantasia de que ele está confrontando não um “colega” de profissão, mas o próprio Deus, aquilo que ele mais ama no mundo, e que dá sentido para sua existência. Que dizer, a força estética do ponto de vista está no caráter alegórico das personagens. Acompanhamos nada mais, nada menos, que uma disputa entre Deus e o Canhoto em pessoa, ou entre um santo e um satanista, contado da perspectiva de Satanás, que perdeu a batalha. A história de Cristo da perspectiva atormentada de Lucifer, que destrói sua obra como um gesto de amor e devoção.  Não que o filme endosse a perspectiva demoníaca: como vimos, a grande perversidade da história é que a narrativa que acompanhamos é a forma mesmo da derrota do Demo, sua punição - não por acaso, sugerida por um padre. O que talvez o torne mais herético do que se imagina, tal como o evangelho de Judas Iscariotes, ao sugerir que a traição de Judas foi um gesto, talvez o mais radical, do mais puro amor.
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quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Titanic ou o desastre como estratégia divina para Rose não se tornar uma dona de casa pobre

 

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"Não considero Titanic nem uma história de amor. Jack está morrendo congelado, e o que a Rose faz? Ela grita: eu nunca vou deixar você! E enquanto isso, ela está empurrando o cara pro fundo do mar. E as últimas palavras de Jack não são as de um amante, mas as de uma padre, um conselheiro moral. "Seja honesta, faça isso e aquilo". É só uma história reacionária sobre uma menina rica e mimada em crise de identidade adolescente que, como uma vampira, explora um rapaz de classe baixa para restaurar o seu ego. Assim que ele cumpre seu papel, pode morrer congelado. É o mito colonialista. Nós somos o Ocidente desenvolvido e moderno, mas que, infelizmente, se esqueceu dos valores verdadeiros que estão nos outros, pobres ou bárbaros. Nós sugamos o sangue delas e depois, tchau. O Iceberg nesse contexto surge para salvar o mito ideológico de amor que ela cria, que evidentemente seria destruído na primeira semana de casados". (ZIZEK)

Revendo Titanic dá pra entender porque Zizek considera James Cameron um dos maiores ideólogos de Hollywood hoje. Vejamos o caminho de seus argumentos. De fato, num primeiro momento parece que o filme traça um painel realista - quase marxista - de denúncia da crueldade das classes abastadas, posicionando-se contra o egoísmo dos ricos e a favor da vitalidade dos mais pobre. Mas é precisamente esse o grande salto ideológico do filme: ele não é, de forma alguma, “realista”, seu foco não é recontar a história tal e qual ela verdadeiramente aconteceu. Na verdade, os fatos estão a serviço de uma grande fábula conservadora, cuja moral é que por mais que os ricos sejam cruéis, desalmados, egoístas, etc., romper com essa desigualdade é atentar contra a própria ordem da natureza, o que será devidamente punido com um grande e fálico Iceberg. Todos sabem disso, sobretudo Jack, que se deixa morrer, e Rose, que deixa ele afundar pra não virar dona de casa. O deus de Cameron é o oposto do Deus dos Racionais - tem simpatia pela miséria, mas protege os poderosos a todo custo. Assim como qualquer filme-catástrofe hollywodiano, todo poder devastador da natureza tem por função reestabelecer o equilíbrio conservador da sociedade, seja o casal heterosexual branco de classe média, ou as classes poderosas com seus líderes, pelos quais o povo deve se sacrificar. A grande obscenidade do filme não está no egoísmo dos mais ricos, e sim no fato de que a própria natureza o legitima. É a mesmíssima lógica presente nos romances de formação pró colonizador, como Iracema, de José de Alencar. A simpatia pela pureza e beleza natural da índia só se justifica na medida em que ela “se deixa” colonizar, ou melhor, na medida em que essa colonização já aconteceu, e o Outro não oferece risco algum. Caso surja algum indício de resistência, os mais fracos se convertem em bárbaros selvagens, terroristas, bandidos, etc. A imagem positiva e não conflituosa dos pobres funciona como um aprisionamento na fantasia dos ricos, e o que legitima o seu “sacrifício”.

Não devemos nos iludir: todos os mecanismos “realistas” do filme estão a serviço dessa fábula conservadora. Um dos mais sintomáticos é o seu final, quando Jack não consegue subir na tábua em que Rose estava. James Cameron deixa claro que ele não sobe porque o peso não aguentaria os dois, ou seja, a justificativa é realista. Mas o não-dito fantasioso desse realismo consiste na tranquilidade com que Rose aceita o sacrifício de seu grande amor, inclusive dando uma mãozinha e empurrando-o para baixo. Fica claro que a razão do sacrifício dela ao amor não ter ido até as últimas consequências (ter morrido com Jack, ou tentado ajudá-lo até a morte) é outra. Ela precisa que Jack morra. Só a morte dele vai fazer com que aquele casinho inconsequente de verão se transforme no grande mito do Amor Eterno, que justifica a tragédia (afinal, os ricos também perderam algo importante ali, também sofreram). O romance dos dois serve como metonímia para o que acontece com todos os ricos no filme. São todos indivíduos soberbos, que levam uma vida vazia e sem sentido, ocupados com a satisfação imediata, etc. O desastre divino, contudo, não vem para puní-los, e sim para que eles, ao menos uma vez na vida, tenham algum tipo de “experiência”. Nada melhor para isso do que uma verdadeira tragédia em que aconteçam milhares de mortes – dos mais pobres, humildes e sem pecado, de preferência. O tempo todo os pobres são manipulados no filme para dar "sentido" ao vazio das elites, e Rose é a pior de todas, por ser bem intencionada. É nesse momento que a crítica à soberba dos ricos (que de fato existe nos filmes do James Cameron, e é um impulso - ainda que ligeiro - de solidariedade com os de baixo) é pervertida por um mecanismo de produção de satisfação para as elites apoiado na descartabilidade dos de baixo.

(Diga-se de passagem, Avatar tem um mecanismo ideológico parecido. La fidelidad de Avatar a la vieja fórmula para formar una pareja, su plena confianza en la fantasía, y su historia del hombre blanco desposando a la princesa aborigen y así convirtiéndose en rey, hacen de ella una película ideológicamente conservadora, de vieja escuela. El brillo técnico sirve para maquillar este conservadurismo básico. Entre sus temas políticamente correctos (el hombre blanco honesto acompañando a los aborígenes en su lucha contra el "complejo militar-industrial" del invasor imperialista) podemos encontrar fácilmente una serie de motivos brutalmente racistas: un paria parapléjico de la tierra es suficiente para tomar la mano de la hermosa princesa local, y ayudar a los nativos a ganar su batalla decisiva. La película nos enseña que la única opción que tienen los aborígenes es elegir entre ser víctimas de la realidad imperialista, o desempeñar su papel asignado en las fantasías del hombre blanco. […] El film nos permite practicar una típica división ideológica: simpatizar con los aborígenes idealizados mientras se desestima su lucha real” (ZIZEK)).

Nesse sentido, o Iceberg é um símbolo fálico muito bem construído, porque catalisa os dois movimentos. A princípio, ele aparece enquanto punição divina da soberba dos ricos, que pressionam para chegar mais depressa em casa, limitam a quantidade de pessoas nos botes apenas pra poder ter mais espaço livre, zombam de deus, etc. O Iceberg funciona para dar uma lição de humildade a esses homens. Entretanto, todos (ou quase) os sobreviventes são ricos: o castigo recai sobre os pobres, que não tem nada com a soberba e representava até então o pólo positivo da narrativa. Porque acontece essa passagem? Apenas a primeira camada ideológica serve de acusação dos ricos (“a soberba dos ricos destróem o mundo”). Contudo, o Iceberg funciona também em um instrumento de realização dos impulsos sádicos obscenos dos ricos, e que é matriz de sua soberba - o desejo semi confessado de que todos os pobres morram. E de quebra, a vida dos ricos deixa de ser pura vacuidade, pois agora eles não são mais meros proprietários imbecis, mas os sobreviventes de uma das maiores tragédias da humanidade ou - o que é ainda pior - aquela que viveu seu único Grande Amor. O interessante do filme é notar como que a escolha da perspectiva de colocar os pobres como o pólo positivo não tem forças para se sustentar até o fim, convertendo-se no oposto. Os pobres são o que de melhor existe no mundo e, por isso mesmo, são sacrificados em nome da manutenção da ordem - o mesmo princípio do sacrifício da virgem. O mais perverso é que nossa perspectiva é a mesma da Rose, que ama aquele belo rapaz e que, portanto, não pode estar implicada em sua morte.

Ao final, as duas falas mais significativas do filme são "eu sou o rei do mundo", pois toda a "vida" do filme se deve, de fato, a Jack, e "no final eu sempre venço", que o noivo-vilão da Rose fala pro Jack em certo momento. Ele é um dos sobreviventes do Titanic. Jack é daqueles que não existem...  O mundo faz sentido porque os pobres são descartáveis, o que é uma pena, afinal é tudo tão alegre e puro. Mas é melhor que seja assim.

Vertigo, ou a fantasia da realidade

 
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Em Um Corpo que Cai (Vertigo), o mestre Hitchcock está em sua melhor forma. Acredito que seu maior talento consiste em multiplicar camadas de significados sem que nenhuma delas rompa completamente umas com as outras, truncando o fluxo da narrativa. Vertigo é tudo o que Cristopher Nolan queria fazer em seu ambicioso A Origem, mas que foi perdido em um formalismo exibicionista. Aliás, revendo Metrópolis, de Fritz Lang, percebi que A Origem cai num problema similar ao proposto por aquele filme: como multiplicar camadas de significado sem fazer com que o público se perca completamente nas associações? A solução de ambos foi apelar para o didatismo, o que não tira a força de Metrópolis, especialmente por seu caráter alegórico que sempre direciona o sentido para outro lugar, mas empobrece muito a narrativa de Nolan, prendendo o espectador à forma e ao brilhantismo egocêntrico do diretor. Foi o preço pago pela inovação – as camadas de significado vão sendo inseridas bruscamente ao longo do filme por meio de cortes radicais que inserem novas camadas narrativas, e não uma multiplicidade de sentidos presentes desde o início. É o que Leonardo Di Caprio deixa bem claro, uma ideia bem simples (no fundo, uma questão de cunho comercial) que precisa se tornar um grande aparato hollywoodiano, o filme que assistimos. No frigir dos ovos, entretanto, a forma se sobressai e atoniza o conteúdo.

Desde a tomada inicial de Vertigo, Hitchcock deixa claro que seu assunto vai para além de (porém sem deixar também de ser) um simples caso de mistério. Ainda nos créditos iniciais a câmera focaliza o belo rosto de Kin Novak, para na sequência fechar em close primeiro na boca, e depois nos olhos da atriz. Está dado o mote da discussão que permeia todo o filme. Áudio-visual, o próprio cinema, o processo de (re)constituição da história para o espectador. O crítico Ismail Xavier costuma enfatizar bastante essa dimensão do cinema de Hitchcock, a genialidade com que o cineasta coloca em cena um terceiro elemento, o próprio expectador, ou melhor, seu olhar – outro clássico nessa linha é Janela Indiscreta, em que o cineasta coloca como protagonista (de novo James Stewart, espécie de Ivo Holanda inglês, aquele sujeito absolutamente comum) um detetive temporariamente impossibilitado de andar, e que por isso reconstrói um crime a partir de pistas tiradas do processo de observação das janelas dos apartamentos vizinhos. Dessa forma, seus filmes acabam por ser também discussões sobre seu próprio processo de constituição, requisito que os torna exemplares (ou quase) do cinema moderno, suscitando a admiração declarada de cineastas como Truffault.

No caso de Um corpo que cai, é clara a relação entre o detetive vivido por James Stewart e o espectador. O que acompanhamos no filme é a construção de uma fantasia, uma ficção feita para apanhar\cativar o detetive\espectador. No encontro inicial entre o detetive e o suposto marido, este constrói uma história que é uma total farsa, completamente absurda e inverossímil, que tornaria o filme mais próximo de um terror lado B mal feito. O detetive, como o espectador, a princípio não cai na lorota, mas por fim aceita a proposta que vai ser sua perdição: ao invés de negar completamente desde o início, aceita dar uma observada de leve na moça (igual aqueles filmes em que a gente diz, vou assistir só um pedacinho. Aberta essa concessão, tudo está perdido, e lá se vão hora e meia, no mínimo). No momento em que ele aceita o contrato, tudo se perde, e acompanharemos com ele a transformação daquela ficção inverossímil em verdade cinematográfica, com direito a história de amor romântica com macho protetor e fêmea inocente perdida. A genialidade do filme consiste, entre outras coisas, em não abrir mão por nenhum momento de seu caráter de história absurda - que fica ainda mais evidente pelo contraste com a rudeza da segunda parte, em que a moça é uma descarada (a típica mulher moderna para o cineasta, um tipo que ele detesta e sempre faz questão de desmascarar ou matar – veja Os Pássaros, Psicose, etc.) e o homem é um ser completamente em frangalhos. Acompanhamos a moça por cenários fantásticos típicos, como cemitérios, igrejas abandonadas, museus antigos, etc. A mensagem transmitida é bastante clara: vou construir para o detetive\espectador um cenário de novela romântica do século passado, só que deixando bem claro que não estamos no século passado, e fazer com que ambos embarquem completamente nessa fantasia e a sintam como realidade. Melhor ainda, vou nitidamente construir essa realidade na frente de seus olhos, e ainda assim você vai cair como um patinho. Alguém aí duvidou da morte da moça? Tanto o filme é sobre a construção desse olhar que o primeiro contato efetivo entre o detetive e a esposa só se dá depois de um longo tempo. Antes acompanhamos diversas sequências sem diálogo, em que a história é construída pelo diretor\marido para o detetive\expectador, até atingir seu clímax, quando Madeleine se atira ao rio, e seu salvador pronta e pateticamente corre para salvá-la. Sim, Hitchcock está nos tirando e manipulando o tempo todo nesse filme, desde o início.

Uma das cenas do filme é bastante paradigmática nesse sentido, sendo um dos marcos da história do cinema (Cristopher Nolan deveria ter mesmo feito um intensivão Hitchcock, e estudar essa cena por meses antes de se arriscar com A Origem, toda a idéia de multiplicação de camadas narrativas está contida nessa única cena), por conta da multiplicidade quase infinita de camadas de representação ali condensadas. É aquela em que o detetive segue Madeleine até o museu, e encontra a moça a olhar fixamente para um quadro, cujo figurino é bem próximo daquele que ela está usando no momento. Caso nos detivermos com atenção sobre aquilo que está sendo representado, é absolutamente impressionante a quantidade de multiplicação de olhares presentes na constituição daquela fantasia: nós espectadores estamos observando o detetive que está observando uma mulher que finge (representa) ser Madeleine que pensa ser uma mulher do século passado que observa um quadro de si que por sua vez já é uma representação de alguém. Ao fim dessa quantidade absurda de mediações, o que temos não é a verdade, mas outra representação, o quadro, onde tudo começa\termina, nos devolvendo o olhar e (re)começando o jogo infinito de espelhamentos. O cinema e a vida como processo de mediações infinitas é a raiz do mistério encenado pelo mestre do suspense e do cinema.

Mas o filme ainda vai além – estamos apenas na metade da história – colocando outras questões, como se não bastasse a reflexão feita sobre o olhar cinematográfico em uma nada convencional história de suspense. Além de acompanhamos a exposição do processo de construção dessa história estapafúrdia, fantasiosa, na qual embarcamos na maior boa vontade junto com o pobre detetive, o filme coloca em discussão ainda um segundo aspecto: o que acontece quando essa ficção claramente construída (ou seja, visivelmente artificial) nos é tirada abruptamente? A resposta é dada por aquela cena que mais parece uma viagem de ácido - outra ousadia técnica do filme, que utiliza inclusive animação – depois do julgamento do reino masculino do qual o detetive é banido por incapacidade (o desmoronamento da ficção do macho romântico protetor). É a perda da fantasia – e isso é fundamental - e não a perda da realidade, que causa o Trauma na personagem. O trauma é o fim abrupto da fantasia, a emergência do Real. A mensagem do filme não é, portanto, o lugar comum de que o cinema é uma ilusão onde o espectador é levado a um simples processo de fuga da realidade, etc. Muito mais complexo que isso, a ideia que se sobressai é a de que essa fantasia (incluindo a cinematográfica) é uma componente estrutural fundamental de nossa realidade, que configura e dá forma a nossos desejos. A rigor não existe realidade sem o suporte da fantasia. O oposto da fantasia não é a realidade, e sim o Real, traumático.

Na sequência do filme, pós-trauma, acompanhamos o distúrbio psicológico do detetive, que teve sua vida arrasada, ficando por um longo período internado. Mas mesmo após receber alta, percebemos que ele não consegue se recuperar completamente, vivendo sempre a procura de tudo que possa lembrar Madeleine, sem conseguir dar um rumo para sua própria vida, e muito menos descobrir alguma verdade por detrás dos acontecimentos passados. Acompanhamos uma subjetividade estraçalhada, não um homem preso num mundo de fantasias, mas (o que é muito pior) um homem sem fantasias. É aí que Hitchcock opera uma inversão genial no gênero policial - em seus grandes filmes ele sempre insere um elemento que rompe com o gênero em algum nível – ao fazer com que o protagonista descubra a verdade e se recupere do trauma não indo atrás de vestígios e buscando pistas que permitirão a dedução lógica da verdade (modelo policial clássico), mas fazendo o caminho inverso, mergulhando outra vez na fantasia, reconstruindo-a como ela foi, enquanto farsa. É só quando ele consegue reconstruir Madeleine tal qual ela era para seu imaginário - o que implica em um processo de violência masculina e de submissão da mulher a esse imaginário, pois o olhar que se constrói no filme é masculino, e culmina com a negação mais absoluta da mulher, sua morte, no momento em que encarna por completo o papel que a nega e constitui - é que pode finalmente superar seu trauma, conseguindo desvendar a verdade, com resultados também trágicos, diga-se de passagem, especialmente para a mulher. O filme trata do processo de construção da fantasia, e da fantasia cinematográfica pelo olhar, mas trata também do grau de realidade dessa fantasia, seu caráter de estruturação simbólica do mundo. Como mostra a cena do museu, nada existe para além da multiplicação infinita dos olhares e das representações, sendo a verdade a própria constituição desse processo. A realidade enquanto construção ficcional, ideológica, e o grau de realidade dessa ficção. O cinema e a Indústria Cultural não como máquinas produtoras de fantasias, e sim de realidades.

É pela complexidade das questões que suscita, sem perder seu caráter de entretenimento dos bons, que Vertigo é considerado um dos melhores filmes da história.

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Volta ao mundo em 23 Grooves

O parceiro Breno, verdadeiro arqueólogo musical, montou uma playlist sensacional com groove, funk, aforbeat e outras pegadas matadoras pelo mundo afora. São 23 os países contemplados. É só ligar o som e aproveitar o resultado da pesquisa. Com o corpo. Free your mind and your ass will follow 
Volta ao Mundo em 23 Grooves by Setlist on Grooveshark
1 - Alemanha – Ambros Seelos – Mabusso
2 – Brasil – Banda Copa 7 no Samba
3 – Cuba – Irakere – Bacalao con Pan















4 – Dinamarca – Max Leth – Taboo
5 – Etiópia – Mulatu Astatke – Yegelle Tezeta
6 – Finlândia – Carita Holmström – Näät Vain Silmin













7 – Gana – Oscar Sulley – Olufeme
8 – Hungria – Kovács Kati – Add már Uram az esőt
9 – Irã – Mohammad Nouri – Biya Bar-e Safar Bandim














10 – Japão – Minoru Muraoka – Bamboo
11 – Lituânia – Mirdza Zivere – Zozefino
12 – Mali – Doumbia Moussa – Keleya














13 – Noruega – Dyp Av Nade – That’s Why
14 – Otomana – Apaşlar – Gilgamis
15 – Polônia – ABC – You Want Too Much















16 – Quênia - Mombasa - African Hustle
17 – Rússia – Кругозор – 1978
18 – Suécia – EGBA Takdroop



 









19 – Tailândia – The Petch Pin Thong Band – Soul Lam Plearn
20 – Uruguai – Rubén Rada – Negro
21 – Vietnã – Kim Sun – Cai Tram Em Cai
22 – Xhosa – Miriam Makeba – Samba
23 - Zâmbia – Rikki Ililong – The Hole

sábado, 11 de outubro de 2014

Os Novos Navios Negreiros

Por André Godinho
Como historiador e professor, sempre achei importante enfatizar a distinção entre trabalho assalariado e escravidão quando ouço ou leio pessoas tratando como a mesma coisa. Tipo “nada mudou com a Lei Áurea, a exploração continua a mesma!”. A isto, costumo responder: você faz ideia do que é a escravidão que existiu até 1888? Do que é uma pessoa ter seus filhos vendidos em leilões para quem pagar mais e você não poder sequer saber onde eles estão? Do que é uma pessoa viver trancada e acorrentada, do que é trabalhar sob a ameaça de armas, de troncos, chicotes e torturas como o pau-de-arara, usado na ditadura, mas cuja origem é escravista? Do que é seu patrão ter o direito legalmente garantido de fazer o que quiser com você (incluindo o estupro cotidiano, que era norma no Brasil), pois você não existe para o sistema jurídico a não ser como mercadoria?

Enfim, sempre achei muito perigoso o apagamento dessas distinções na crítica ao trabalho assalariado. Por que perigoso? Porque a escravidão, tal como existia em 1888 pode sim voltar. Isso parece absurdo pra quem acredita que a humanidade está “evoluindo” para formas mais “civilizadas” de exploração, mas essa crença é que é absurda.

Quer ver como este retorno de algo próximo do escravismo é possível? Assista um documentário chamado “Quanto mais presos, maior o lucro”. Tem só uns 15 minutos, é coisa rápida… É a distopia do retorno da escravidão, com elementos os mais perversos. Primeiro, sucateia-se o sistema penitenciário, que sempre foi desgraceira no Brasil e se estabelecem políticas deliberadas de aumento da violência e do pânico a respeito dela. Em seguida, se massifica as prisões, quase exclusivamente de cidadãos pretos, pobres e periféricos, se privatizam os presídios e se estabelece o trabalho neles, a princípio como forma de progressão de pena. Este trabalho consiste em produzir coturnos, uniformes, coletes a prova de balas, sirenes e outros artigos de uso militar, que servirão para a ampliação do sistema penitenciário semi-escravista. Quanto mais presos, maior o lucro.

O lucro está (como todo lucro) na exploração do trabalho, mas também no corte de gastos com os detentos e no mercado consumidor representado pela população carcerária e que é abastecida por monopolistas. São superlucros, tanto maiores quanto mais pessoas estiverem escravizadas, digo, detidas. Nos acordos efetuados entre Estado e empresas no Brasil, o Estado se compromete a manter pelo menos 90% das vagas ocupadas. Ou seja, se não há criminosos suficientes para encher as cadeias, é preciso “inventar” criminosos para cumprir os contratos. E isso, em parte, já acontece. Por exemplo, com a “guerra às drogas”, maior fábrica de escravos, digo, presidiários do Brasil.
O modelo tem avançado muito nos EUA, juntamente com a militarização da segurança, que faz com que, por exemplo, cidadezinhas pacatas tenham tanques blindados fazendo sua “segurança”. No Brasil ainda está em fase experimental, mas tende a se ampliar, principalmente agora que existe uma perspectiva real de um de seus defensores mais decididos chegar à presidência. Aqui não é preciso militarizar a política de segurança, dado que ela já é totalmente militarizada desde a ditadura.

Caso se massifique, este sistema pode se tornar uma forma de escravidão moderna que aprimora o que ocorreu no Brasil até 1888, bem como o que ocorreu nos campos de concentração nazistas (na entrada do principal desses campos, Aushwitz, estava o letreiro com seu lema “Arbeit Macht Frei”, ou seja, “O trabalho liberta”). A comparação vale inclusive quanto à relação de tudo isso com o racismo. Qualquer estudo sério sobre sistema prisional no Brasil chega à mesma conclusão e é preciso ser estúpido (ou, mais provavelmente, um privilegiado cínico) pra negar essa realidade: quem tá na cadeia no Brasil não é quem comete crimes graves, é quem é pobre, preto e periférico, independente da gravidade de seus crimes e em muitos casos independente até de terem ou não cometido crimes, dado que em grande parte eles não foram julgados.

Da tragédia que foi a escravidão até o século XIX só estaríamos livres de seu caráter hereditário e da possibilidade de venda de seres humanos no mercado. Ainda assim, esses pontos são um pouco relativos. A redução da maioridade penal taí, como grande pauta eleitoral, e pode cair ainda mais no futuro. Ela não tornaria a exploração hereditária, mas normalizaria a exploração de trabalhadores cada vez mais jovens. Quanto ao mercado de escravos, a custódia sobre os presos mais próprios para o trabalho está sendo negociada. No presídio privado de Minas, que é uma experiência padrão no Brasil, são negados aqueles que não servem aos lucros. Fala-se abertamente que o objetivo é ter apenas escravos, digo, detentos, aptos e dispostos ao trabalho. O resto é jogado nas masmorras de sempre, para apodrecerem e morrerem. E em breve a pauta da pena de morte deve retornar para dar um destino a eles – como em Auschwitz, afinal…



Também se poderia objetar que o preso segue sendo um sujeito do direito, diferente do escravo. Porém, o trabalho de desumanização da população carcerária (e dos periféricos em geral) aos olhos do restante da população está a todo vapor e as empresas que administram essas novas senzalas, digo, cadeias, pretendem ser responsáveis também pela parte jurídica da coisa. Em outras palavras, eles serão responsáveis por defender nos julgamentos os presos que geram lucros pra eles. Eles vão querer que um inocente seja inocentado, quando este inocente trabalha para gerar lucro? Se um preso é torturado e decide contar isso ao advogado para que a tortura acabe e seu advogado trabalha pra quem o torturou, esse advogado vai de fato trabalhar para que a tortura acabe?

Veja bem, a população carcerária cresceu 380% desde os anos 90 e a insegurança só aumentou de lá pra cá. O objetivo dos encarceramentos massivos não é a diminuição da violência, até porque a maioria dos encarcerados não cometeu crimes violentos. Num sentido ainda mais forte e mais perverso do anterior, de quando as cadeias eram apenas masmorras, torna-se cada vez mais realidade a frase “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”. Antes as famílias, os povos, as culturas destroçadas na África para produzir lucros no Brasil a serem remetidos à Europa. Hoje as famílias, os povos, as culturas de origem africana destroçadas nas periferias brasileiras. A articulação entre racismo, violência estatal, militarização e neoliberalismo leva à criação de imensos campos de trabalhos forçados, como aquele para 10 mil pessoas que o Alckmin está fazendo em São Paulo para entregar à iniciativa privada.


Ocorre que são trabalhos forçados vigiados por câmeras, biometria e armamentos de alta tecnologia e não por feitores e capitães do mato, que só contavam com arcabuzes, chicotes, correntes… A tecnologia dificulta a resistência, e é de se perguntar: Palmares seria possível num sistema desses?

terça-feira, 7 de outubro de 2014

A HEGEMONIA DO PICOLÉ DE CHUCHU COM PIMENTA

Contrariando a sabedoria pragmática de José Dirceu “é hora de campanha, não de avaliação", decidi entrar na campanha ferrenha escrachada anti Aécio Never e, ao mesmo tempo, fazer uma avaliação pessoal do que aconteceu em Sampa. Por tópicos, porque assim é mais gostoso.
Não é preciso ficar de luto quando não existe um cadáver a ser velado
Alguns dias atrás, no maravilhoso reino azul facebookiano de discussão política, parecia um absurdo a vitória do Alckmin. Ninguém parecia acreditar que diante de problemas tão críticos como má administração, corrupção, falta crônica de água e uma polícia absolutamente incapaz, o picolé de chuchu fosse se reeleger. As pesquisas só podiam estar sendo manipuladas. Mas a vitória veio, e de forma contundente. Humilhante. E no meu facebook, que parece um velório com o direito a foto de luto e tudo o mais, o que mais se compartilha é certa sensação de absurdo, de incompreensão profunda. Afinal, é LOGICAMENTE impossível acontecer o que aconteceu. Contudo, creio que só poderia existir um velório se realmente houvesse um corpo a ser velado, ou seja, se tivesse alguma coisa viva antes e que morreu com a vitória do careca. Mas passado esse momento de apego imaginário ao fantasma, acho que é hora de assumir que, se o digníssimo senhor governador só perdeu em UMA única cidade do estado, é sinal de que a incompreensão e a falta de lógica estão muito mais do nosso lado do que nas obscuras intenções do eleitorado paulistano. Classificar como absurdo o que é de uma evidência esmagadora (novamente, apenas UMA cidade não optou por Alckmin) é um grande sinal de miopia e impotência. Portanto, não pode haver um velório, pois o que foi dado como morto desde há muito é algo imaterial e fantasmagórico.
(Eu imagino o picolé de chuchu dando uma sacada no facebook da oposição, só por diversão, antes das eleições e com a torneira totalmente aberta: “kkkkk... eles REALMENTE acreditam que não faz sentido a minha vitória. Vou mijar na Cantareira pra comemorar”. Se a oposição só consegue representar sua vitória esmagadora enquanto absurdo incompreensível, é evidente que ela será absolutamente incapaz de articular uma forma contundente de reação de modo a atender\subverter o desejo perverso do eleitorado. Pois é justamente do núcleo desse desejo do eleitor que ela se afasta – repetindo a incapacidade de “compreender” os sentidos das manifestações de Junho).
Em certo sentido, essa incompreensão é a marca maior da vitória do PSDB em São Paulo, que corre o risco de se transformar em vitória federal, se não agora, nos próximos quatro anos. A questão não é de VER, pois o que se disputa não é o Real, mas seus sentidos, que são simbólicos e estão sendo colonizados pela mídia vampiresca, que adora o sangue, pela gestão política do terror e pelo fundamentalismo legitimador do ódio. O que todas essas esferas conservadoras têm em comum é que nenhuma delas esconde a miséria em que vivemos. Ao contrário, se alimentam dela. É um erro achar que eles escondem essa realidade - e que, portanto, a solução é mostrar como as coisas estão, de fato, ruins. Pois as coisas estarem ruins é seu ponto de partida. Não se trata de uma disputa pela realidade, e sim pela gestão do imaginário - é nesse ponto que a esquerda (no campo da imaginação, cada vez mais burocrática – daí o clamor de Badiou por uma “hipótese” comunista) vem sendo sistematicamente deslegitimada. Esquematicamente, podemos dizer que o fato da aprovação refletida nas urnas do governo Alckmin retornar para a oposição enquanto enigma, sendo ela tão contundente, é sintomático da distância que separa a entidade “o povo” dessa mesma oposição que os diz representar.
O fetiche liquido
A água se tornou o grande fetiche da frente opositora. Foco privilegiado dos ataques, na verdade revela-se mais enquanto um sintoma da incapacidade de se enfrentar o bicho de frente, qual seja, a identificação perversa de TODO eleitorado – pobres e ricos - com a política linha dura do governador. (Aqui cabe um parêntesis, porque afirmar que todo mundo optou pelo Alckmin é desconsiderar um aspecto importante, de que 40% do eleitorado paulista, entre brancos, nulos e indecisos, não votou. Talvez seja esse o ponto, inscrito no interior de uma política partidária que mostra sinais de esgotamento, que concentra o verdadeiro sentido político dessas eleições, para o qual ainda não se encontrou modelos alternativos efetivos). A mesma linha tênue e complexa que une mídia vampiresca viciada em sangue (Datena), fundamentalismo violento neopentecostal, para quem o ódio é uma virtude (Silas Malafaia) e a boa e velha política do medo. Ao invés de atacar o cerne dessa identificação, com medo de assustar o eleitor, a oposição tentou um desvio de foco para uma questão importante, porém periférica - (bem diferente da estratégia do PSDB em associar o PT à corrupção, pois ser o lugar da ética fazia parte da auto-representação do PT enquanto esquerda. Ou seja, era um ponto estruturante de sua imagem). Aí fica fácil, pois é só Alckimin dizer que o problema é de São Pedro, e não de administração, porque a administração dele funciona maravilhosamente bem no que ela se propõe: tratar pobreza como crime ou, em seus termos, ser duro com os vândalos e marginais. Não é outra coisa que se espera dele, e não é por outra razão que ele é eleito. Ora, matar pobre é especialidade do PSDB, e escolher competir com eles nessa área é burrice. Nem Skaf nem Padilha propunham nada de diferente nesse sentido, e se a direção buscada por todos, ricos, pobres, “esquerda” e direita é o de eliminar o marginal, melhor mesmo ficar com o PSDB, que faz direito e sem falso remorso de ex-militante. Focar na água não deixa de ser um fetiche líquido que permite escapar ao essencial, na linha, aliás, do Hadadd tranquilão, que anda de bike, mas não tem peito para enfrentar o PSDB em sua política de extermínio. Inclusive na época das manifestações, quando podia ter se afastado do governador para afirmar sua autonomia, preferiu manter-se ao lado deste. O PSDB não ganhou do PT, foi muito mais uma vitória por W.O.
A lição NÃO aprendida de Capitão Nascimento
Devemos voltar a 2007, o ano em que o cinema nos deu uma lição que a esquerda se recusa a compreender. Tropa de Elite I não é um pesadelo reacionário, ou um filme facista, mas uma expressão das mais bem acabadas do cenário brasileiro contemporâneo. É o que nos define, o que define o Brasil em plena euforia lulista, e cujo nó ainda não foi desvendado. Nem mesmo o próprio diretor teve coragem para enfrentar o bicho, recuando no segundo filme para sua zona de conforto (petista, como afirmou Reinaldo Azevedo, acertadamente) em defesa de pautas generalizantes como o “fim da corrupção”, ou o “fim da polícia”. Recusando-se, assim, a entender o fenômeno descoberto pelo primeiro filme (sem querer, é bom lembrar, pois o cap. Nascimento cresceu com o filme, que seria sobre Matias), cujo resultado prático -  aguardando interpretação - estamos acompanhando nas urnas agora. Eu e o César Takemoto chamamos esse movimento na época de “recuo conservador à esquerda”, e os efeitos desse movimento na atuação política no estado de São Paulo são evidentes.
Existe uma linha tortuosa que vai de Tropa de Elite I até as manifestações de Junho, assim como uma evolução da figura de Cap. Nascimento para a de Silas Malafaia. Cap. Nascimento “retira o lixo” de maneira absolutamente eficiente – leia-se toda sorte de marginais, professores, intelectuais esquerdopatas, maconheiros, dependentes químicos – mas os custos psicossomáticos da guerra são muitos. Silas Malafaia, por sua vez, é tão eficiente quanto, e os custos psicossomáticos são atenuados por conta do passaporte para o céu a benção direta do Pai maior. Há um avanço considerável em termos de barbárie quando você transforma “marginais” em “infiéis”. A glorificação neo-pentecostal do sucesso tem uma contraparte perversa cujos efeitos podem ser devastadores se a moda pega. Nesse caso, os fracassados não estão simplesmente condenados ao inferno, e sim são os próprios portadores do demônio e, como tal, tem todo direito de ser hostilizados, discriminados e até fisicamente agredidos – não é esse o tratamento que Malafaia sugere que seja dado aos homossexuais? Nesse sentido, o fundamentalismo evangélico corrige o recuo de “Tropa de Elite II”, fruto de fraqueza politicamente correta. Pois o fundamentalista não corre o risco de descobrir que seu empregador tem falhas, ou que é corrupto. Afinal, trata-se do próprio Deus em pessoa.
Apertem os cintos, o PT sumiu
Na colocação excelente de Douglas Anfra, a reeleição do picolé de chuchu tem dois pontos de força distintos a ser considerados. No interior, reduto histórico do PSDB, é “fácil” entender o que aconteceu, pois a imagem do eleitor coxinha e elitista cai como uma luva. O PSDB manda e desmanda por ali, inaugura obras o tempo todo, enquanto o PT só aparece elogiando o governo federal e pouco faz de imediatamente visível. O PSDB é a imagem na qual o eleitorado paulistano gosta de se reconhecer – e democracia representativa se trata exatamente disso, de escolha da auto-imagem, que as vezes coincide com a realidade, mas cujo foco é o imaginário –inclusive em suas dimensões negativas. A velha história de comer mortadela e arrotar caviar, o que se “justifica” ainda mais se a mortadela efetivamente for mais bem temperada que no resto do país. A narrativa ali está bem consolidada e cai como uma luva, assim como a associação das elites paulistanas torcedoras do São Paulo com o PSDB. O recorte de classe ajusta-se perfeitamente nos dois casos, e a imagem da oposição popular é rapidamente acionada. Entretanto, a vitória foi esmagadora, e não é possível esconder que quem elegeu o Alckmin foi a massa corintiana, moradora dos bairros populares, zona Sul de mano Brown e zona Leste inclusos. E mais, a massa corintiana, fundamentalista, morta de sede – ou seja, uma imagem do “povo” bem pouco domesticada e muito mais ameaçadora para esquerda. Sem dúvida não era essa “massa corinthiana” que o PT tinha em mente ao buscar uma associação simbólica: Corinthians time do povo, PT partido do povo, com um presidente boa praça e corinthiano roxo (Aliança, aliás, que extrapola o campo simbólico, pois o partido apostou (mal) suas fichas na candidatura do Andrés Sanches). A primeira saída para o paradoxo “conceitual” – pobres que votam, em massa, no partido “dos ricos” – é a boa velha teoria da alienação das massas, os pobres cooptados pelos discursos da elite paulista, a mais antipopular do Brasil (Veja e Folha de São Paulo). Ou a teoria dos pobres que querem pagar de elite, na mesma lógica do funk ostentação. Não cabe aqui analisar os fundamentos das duas hipóteses, mas haja vista o caráter imediato das duas como resposta para derrota esmagadora do PT, salta a vista que seu principal objetivo é a manutenção de seu conceito – primeiro passo para continuar na derrota - sustentando a imagem tanto do povo quanto do partido que o representa: um pobre que vota no PSDB só pode estar “traindo” a sua classe, assim como um pobre torcedor do São Paulo, ou do Fluminense. Com isso, a questão decisiva fica colocada em segundo plano. Afinal, de que maneira o PT cumpriu essa função de partido popular no estado de São Paulo, a ponto de vencer apenas em uma única cidade?
(Aliás, a linearidade da narrativa que pinta São Paulo como essencialmente conservadora desde os bandeirantes tem lá seu fundamento, mas não dá conta de explicar a vitória do Hadadd – ou da Marta e da Erundina. Nem explica como os movimentos de resistência periférica têm em São Paulo uma grande representatividade. E o que é mais importante, “esquece” que o PT surge em São Paulo, em sua faceta mais progressista e radical de esquerda. Se não é necessariamente “falsa” a tese do conservadorismo congênito de Sampa, ela precisa ser muito melhor compreendida e, sobretudo, não serve como explicação última e suficiente para explicar a derrota esmagadora do PT. Inclusive poderíamos sustentar uma outra interpretação, tão frágil quanto a primeira: se o PT surge em São Paulo vinculado a lutas históricas dos trabalhadores, não seria esse o lugar ideal para se perceber que aquele projeto radical de base foi traído?)
Ao aceitarmos a análise lúcida de Laura Capriglione em “A necessária renovação do PT e o vexame no Estado de São Paulo” [http://bit.ly/1t0yxzx], podemos concluir que não foi lá muita coisa o que o PT fez no estado nesses últimos tempos, pra dizer o mínimo. O PT não fez uma oposição rigorosa ao PSDB, quase não denunciou, desvinculou-se de suas bases populares. Fez uma campanha “coxinha” em Sampa, com medo de afastar eventuais eleitores tucanos. Em linhas gerais,  optou pela governabilidade em detrimento de apoiar suas bases sociais históricas. Nesse cenário, a opção colocada ao eleitor paulistano não era entre a continuidade e a renovação (PT como renovação?), e sim escolher entre aquele que vem sistematicamente se omitindo e o outro que aparece fazendo alguma coisa, independente do que seja. Pois em termos de consolidação da barbárie é inegável que o tucanato trabalha muitíssimo bem, da forma mais clean possível: Alckmin venceu não porque tem condições (ou vontade) de impedir outro massacre do Carandiru, mas para poder repeti-lo de forma mais eficiente, ou seja, sem fazer da morte de marginais pretos um escândalo, e gastando o mínimo possível. Capitão Nascimento foi saldado como um verdadeiro herói pelo grosso da população brasileira. Ora, se o projeto defendido é esse, e o PT não apresenta uma alternativa real, para que mudar? O PT perdeu sim, mas não porque o eleitor escolheu o conservadorismo de direita em oposição a uma opção de esquerda. Novamente, o PT perdeu de W.O. ao aceitar que a direita sequestrasse sua pauta. E se o governo federal seguir nessa aproximação com a direita vai perder as eleições, se não esta, a próxima, cujo resultado não vai ser uma direita mais social, como adverte o professor Boaventura dos Santos, e sim uma direita mais miséra do que nunca.
Do pastor-marginal ao pastor-policial
Em 1998, os Racionais lançavam o clássico disco Sobrevivendo no Inferno. A estrutura do álbum lembrava uma espécie de culto profano (pra quem não lembra, começa com uma oração de fechamento do corpo do guerreiro, depois a passagem do Gênesis e o discurso do pastor – cap. IV, v. III – seguido de testemunhos de irmãos) em que o pastor era um ladrão que não abaixa a cabeça diante da injustiça social, protegido por Deus e pelos Orixás. Muitos acusaram o disco de fazer apologia ao Crime, ainda que em todas as músicas o caminho do crime fosse recusado, não por ser eticamente condenável (a fome que é), mas porque seu resultado inevitável, sem a organização política da periferia, é a morte do preto pobre. O resultado, esteticamente extraordinário, era de uma arte comprometida com a sobrevivência de todos os seus irmãos da periferia, inclusive os criminosos, que não compactuava com o crime em nenhuma instância, pois era óbvio que o principal criminoso era o Estado carniceiro. Uma ética implacável e radical, explosiva em termos sociais, em que os marginais são vistos como os únicos capazes de civilizar o país.
Como toda obra de relevância estética profunda (obra de arte), o disco antevia que a disputa política essencial de nossa época se daria em termo de luta pela salvação da alma. Entretanto, a esquerda no poder, preocupada com a governabilidade, não engrossou a disputa, e o poder político do movimento cultural de periferia não conseguiu a emancipação plena de seus trutas de batalha. Como resultado, a consciência periférica do rap deu com os burros n’agua (ou na mediania de mercado), transmutando-se em funk ostentação (que ao invés de procurar formas de criar um poder real contenta-se com a espetacularização soberba de sua própria impotência), enquanto o pastor-marginal “evoluiu” para o pastor-policial, defensor da ordem pela força. O pastor-marginal do rap tentava forjar a centelha divina em seus irmãos de modo a evitar um novo massacre do Carandiru. O pastor-policial fundamentalista justifica o massacre ao considerar os presos como infiéis portadores do demônio. Na disputa pela alma da periferia, que se faz com verdadeira política, a direita saiu na frente e dominou a cena. O barato é loko.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

O velho tarado e o velho hipocondríaco: Wood Allen e Bukowiski

Nunca tinha lido direito o velho Bukowski, até que meu anfitrião Hermes num gesto de pura bondade me atirou um exemplar dele em mãos, na hora certa, ou melhor, na hora mais errada possível. Ou seja, na hora perfeita. Não sei bem porque -  acho que é porque andei conversando sobre ele por aqui – eu comecei a pirar em possíveis conecções entre o velho tarado e o velho hipocondríaco Wood Allen. Mas desconfio que seja porque nesse livro que estou lendo – Mulheres – as críticas são direcionadas ao mesmo círculo social dos filmes do Wood Allen – a elite bem pensante americana, com suas manias, chiliques  e vacuidade. Contudo, mesmo nos filmes em que Allen assume a persona de um escritor, como Bukowski, a distância entre as perspectivas é quilométrica. Wood Allen critica o tempo todo esse mundo, o rídiculo de seus gestos e rituais, ironizando-o com muito mais sutileza e minúcia do que o Bukowski. Mas o faz como quem ama: Allen é apaixonado por esse mundo, por isso, sua ironia como que deseja a aprovação de seus pares. É fácil encontrar esse tipo de personalidade em romances realistas, ou nos bares cults universitários – o cara que critica todos os hábitos, personagens e contradições do meio artísitco\universitário, sem abrir mão de citar uma bibliografia irrepreensível, com pronuncia impecável inclusive para os do leste europeu (aqueles que nem no próprio país existe consenso), fazendo uma pausa dramática para encontrar a citação exata. Tudo isso, evidentemente, em uma mesa de bar – o lugar mais adequado, diga-se de passagem. Em comum com o velho tarado, somente o fato de que também nesse caso os homens se utilizam disso só pra comer mulher (Allen deixa isso claro). Mas suas críticas sempre revelam uma dimensão última de encantamento, sublimação, que escapa completamente do velho autodestrutivo Buck.
Para dar conta da distância, basta dizer que esse universo intelectual\artístico\cult cumpre em Wood Allen a mesma função que para o protagonista de “Mulheres” é ocupado pela cerveja, que claramente prefere beber a foder, e sempre trepa como quem está bêbado pra cacete, mesmo nas raras vezes em que está sóbrio.
“Fiquei só de cueca e deitei na cama. Nada estava em sintonia, nunca. As pessoas vão se agarrando às cegas a tudo que existe: comunismo, comida natural, zen, surf, balé, hipnotismo, encontros grupais, orgias, ciclismo, ervas, catolicismo, halterofilismo, viagens, retiros, vegetarianismo, Índia, pintura, literatura, escultura, música, carros, mochila, ioga, cópula, jogo, bebida, andar por aí, iogurte congelado, Beethoven, Bach, Buda, Cristo, heroina, suco de cenoura, suicídio, roupas feito a mão, voos a jato. Nova York, e aí tudo se evapora, se rompe em pedações. As pessoas têm que achar o que fazer enquanto esperam a morte. Acho legal ter uma escolha.
Eu tinha feito minha escolha. Ergui a garrafa de vodka e dei um vasto gole. Alguma coisa aqueles russos sabiam”.
Daí inclusive a riqueza e a minúcia do olhar de Allen para as sutilezas, as pequenas paixões, que não poucas vezes nos encantam. A sua ironia capta detalhes como só um amante apaixonado é capaz, e quanto mais ele ironiza mais complexo e encantador aquele mundo se revela. É preciso reconhecer que ele explora muitíssimo bem as limitações de seu olhar – reconhecendo até onde é capaz de ir (afinal, cada filme seu é uma longa sessão de análise) para a partir daí captar beleza e fragilidade. Quando acerta a mão, a fórmula tem grande rendimento estético: em uma cena magistral de Annie Hall, um professor arrogante está na mesma fila do cinema que Allen, “explicando” a obra de Marshall Mcluhan para impressionar uma garota. A personagem de Allen então se irrita e, como vingança, convoca o próprio Mcluhan – e o personagem é vivido pelo próprio intelectual, que faz uma ponta no filme – para desqualificar os argumentos do professor pedante. Qual frequentador de círculos cults nunca sonhou em fazer isso? É uma cena genial que, contudo, não deixa de revelar algo sobre esse “desencantamento apaixonado”. Caso fosse, digamos, o Machado de Assis a compor a mesma cena, é bem provável que aparecesse o intelectual errado para deslegitimar o professor. O Bukowski então nem estaria naquela fila, mas se por um improvável acaso ele estivesse, o máximo que poderíamos esperar é que ele tentasse trepar com a mulher do professor. Não ouviríamos o argumento do cara, e muito menos qualquer intelectual apareceia enquanto figura de autoridade (mesmo que ironica). Para seus personagens, aquele universo só vale alguma coisa porque as mulheres são mais gostosas, e porque daquele jeito ele não precisa pegar no pesado pra viver. É claro que há algo de encenação, e ele também está representando para se dar bem naquele meio, como o Allen. Mas aqui não há nenhuma admiração. As mulheres são gostosas, o trampo é sussa, e ponto. Ele está naquele mundo como alguém que trabalhou no matadouro, nos correios, e ainda pira em lutas e apostas. A admiração – masculina - que ele procura é a dos caras que tramparam com ele. E não porque ele é um escritor de sucesso, mas porque com esse trampo ele consegue comer várias menininhas.
Em outra cena do mesmo filme, a personagem de Allen acaba trepando com uma poser ultra afetada, que no fim da foda termina dizendo que a transa tinha sido kafkiana – no que ele responde na lata, impecável: isso é bom ou ruim? É óbvio que nesse caso a sacada importa mais do que a trepada, e é óbvio que esse comentário desvela o quão poser é aquela mulher, e o quanto que nós (Allen e nós espectadores) sacamos do universo kafkiano. Já com o Bukowski, cada uma das suas centenas de trepadas – eis o grande mistério: como ele consegue fazer com que tanta mulher queira trepar com ele, não a primeira vez, que é compreensível, mas as outras vezes.. porque, afinal, elas voltam, como quem volta para a morte – é um universo feminino insano e maravilhoso que se abre. A impressão e o desejo é que cada uma delas teria um  livro maravilhoso para ser escrito a partir de sua perspectiva. Mas como ele mesmo faz questão de afirmar enquanto trepa, ele é a morte. Nada pode brotar dali: essa escrita feminina, naquele contexto, não é possível.
Ao final dos filmes de Allen – creio que não todos – aquele universo termina, de alguma forma, redimido. Não é o melhor dos mundos – afinal, é frequentado por quase as mesmas personagens dos livros de Bukowiski – mas.. puta, que delícia. Já para o velho tarado, toda aquela porra não vale uma cerveja quente.
“Quando acordei, ouvi-a no banheiro. Será que eu deveria ter forçado a barra? Como saber o que fazer? Em geral, pensava eu, é melhor esperar, se você tem algum sentimento pela pessoa. Se você a detesta logo de cara, o melhor é já ir trepando; senão, era melhor esperar, depois trepar e deixar para detestá-la mais tarde”.       
Esse é o universo do velho pervertido.

terça-feira, 13 de maio de 2014

Sobre macacos, bananas e coxinhas.

I
O gesto de Daniel Alves de comer a banana atirada em campo por um torcedor europeu racista foi genial em sua pureza plástica e simplicidade. Sua riqueza, no entanto, é fundamentalmente estética, devendo sua “radicalidade” ser apreendida nesses termos. Dessa perspectiva, tornam-se injustas as acusações de falta de gravidade, ou “seriedade” de seu gesto – para Douglas Belchior, por exemplo, em artigo para Carta Capital, Daniel Alves só pôde “ignorar” a banana devido a sua posição de classe, não podendo seu gesto servir de base ética para o combate ao racismo que cotidianamente atinge pretos pobres das periferias de todo mundo. Contudo, se é verdade que o gesto não pode ser transposto imediatamente para o campo político sem converter-se em mera ideologia, é verdade também que o jogador fez mais do que simplesmente “ignorar” o racismo. De fato, o impacto de sua atitude consiste precisamente no contrário, no fato dele (ou a agencia de publicidade, eis a questão) ter proposto uma reação ativa a uma atitude que pretende colocar a vítima em posição de subordinação e passividade.
Da mesma forma são apressados os argumentos que sugerem que o gesto de Daniel só gerou grande repercussão porque o jogador é famoso (contudo, é verdade que toda repercussão deve-se em grande parte ao agenciamento do gesto pela campanha publicitária). Balotelli é ainda mais famoso que Daniel Alves, mas seu choro não gerou nenhuma mobilização em massa. Com todo o respeito devido a sua dor, o choro negro do atacante do Milan faz parte do roteiro normatizado concedido cotidianamente aos humilhados, onde aquele que se “solidariza” da dor do Outro goza duas vezes, tanto com a humilhação que confirma sua superioridade quanto com seu altruísmo, que alivia a consciência. É a linha por excelência dos programas que “realizam os sonhos” dos mais pobres, como os do Luciano Huck, e de filmes hollywoodianos que focam no sofrimento das minorias. O gesto de Daniel, ao contrário, bloqueia o gozo e expõe o vazio do desejo do Outro, deslocando a banana do roteiro imaginário racista, deixando-a pairar enquanto fundamentação absurda. Lembra-nos radicalmente que o conceito de raça não existe para além dessa ridícula banana. Ao expor brilhantemente o que de fato é uma banana, o gesto escancara a fratura que se inscreve em toda estrutura ideológica, revelando a fragilidade profunda do sistema racista, sustentado pela Coisa absurda e sem sentido.
Daí o equívoco de considerar que Daniel Alves não tenha tratado com a devida seriedade o absolutamente grave tema do racismo: como bem nos demonstra as fábulas kafkianas, os quadrinhos de Alan Moore e alguns filmes de Glauber Rocha, o mais trágico do poder é ser ele fundamentalmente ridículo, estruturando-se não raramente enquanto uma piada de mal gosto. A forma de seu conteúdo trágico é cômica e farsesca, e sua força decorre precisamente daí – basta nos recordarmos da infame inscrição pendurada na entrada de Auschwitz, “o trabalho liberta”, talvez a suprema piada – o ideal de Rafael Bastos e Danilo Gentili – que torna impossível todo humor. Não é apenas a interpretação crítica do sintoma que possibilita a criação de gestos de resistência e superação: as vezes o necessário é exatamente o oposto, e essa é a aposta da marcha das vadias, por exemplo, que com sua alteridade radical preenche o lugar que para o opressor deve permanecer fundamentalmente vazio. Assim como o agressor machista “sabe” que a mulher não é uma vadia, o agressor racista “sabe” que o negro não é um primata. É o distanciamento desse saber que põe em movimento a dinâmica da agressão, a subordinação socialmente condicionada a um falso papel, sem fundamentação que não o imaginário do opressor. Ao se confrontar esse lugar do saber deslocando seu papel determinado na rede significante – não com um “eu não sou isso que você diz”, que já é incorporado de saída pelo gesto opressor, mas com um “eu sou isso que você diz, justamente porque você não sabe aquilo que pensa saber, sendo incapaz de sustentar esse desejo em sua alteridade radical” – a rede imaginária que sustenta o gozo perverso do opressor é desarmada e exposta em seu vazio absurdo.
II
Outra coisa, no entanto, é o efeito desse gesto ao se viralizar e converter-se em hashtag. Em certo sentido, e com aparência contrária, a campanha #somostodosmacacos foi uma reação contra o gesto de Daniel, pois se esse aponta para certa inconsistência fundamental do núcleo racista, a campanha trata de preencher esse vazio com conteúdos paz e amor humanistas padrão FIFA, tão nulos e irrelevantes quanto as mensagens anti-racistas que ela espalha em jogos oficiais na forma de cartazes que mal ocultam sua fantasia fundamental: o racismo está para o padrão Fifa assim como a pedofilia está para o catolicismo. Todo mundo sabe que o futebol moderno, uma invenção europeia, virou arte por causa dos pretos – o excesso não previsto da modernização. Natural, portanto, que quanto mais mercantilizado, padronizado e “racionalizado” pelo modelo democrático liberal padrão FIFA, mais frequentes serão os casos de racismo, uma vez que a diferença negra se torna excessiva, precisando ser devidamente regulamentada.
É grave, pois, quando nossa representante política maior diz ser essa a grande lição brasileira no combate ao racismo, seguindo uma sugestão da agência de publicidade. A apropriação imediatamente “política” do gesto performativo de Daniel Alves esvazia sua radicalidade, podendo assim se realizar perfeitamente enquanto estratégia publicitária que beneficia todos aqueles que estão pouco ligando para o racismo, para dizer o mínimo – Fifa, Luciano Huck, agência publicitária, etc – mostrando o quanto todos eles, enquanto humanos, partilham da mesma dor e humilhação, esvaziando o gesto. O verdadeiro equivalente político do gesto não consiste em sua repetição (que só pode acontecer a partir de um esvaziamento do sentido), mas antes no ater-se a seu núcleo, reconhecendo os conteúdos sistêmicos do racismo e encontrando forma de neutralizar o funcionamento de seus significantes. Não seria má ideia processar a agência que bolou a campanha, junto com o Huck e suas camisetas oportunistas, por tentar lucrar com o racismo e ajudar a reforçar o estereótipo que associa o negro ao macaco. Assim como seria ótimo acrescentar mais um processo à longa ficha da FIFA, que além de não ser capaz sequer de coibir tais casos criminosos, ainda tenta no mais das vezes passar um pano. Desvendar o truque e punir os responsáveis é o equivalente político do gesto performativo de Daniel Alves.
Creio, contudo, que o saldo final da polêmica tem pelo menos um aspecto positivo, pois a estratégia de marketing do marido da Angélica logo foi percebida e denunciada naquilo que ela é, uma tentativa baixa e patética de tirar vantagem da miséria alheia (um modelo utilizado há muito pelo apresentador em seus programas). Ponto para a mobilização digital e para os diversos setores da militância do movimento negro, pesquisadores e colunistas que imediatamente se posicionaram e divulgaram sua reação negativa. E ponto também para o olhar crítico da população que de uns tempos pra cá tem tomado gosto pelo debate político público, com avanços e perversidades.
III
Isso nos leva a uma colocação muito boa da amiga e escritora Lilian Aquino, dessas que obriga ao pensamento confrontar-se com suas limitações, ao se deparar com conjunturas específicas: porque a adesão a uma campanha do tipo “Somos todos negros” é rechaçada pelo movimento em geral, enquanto que a adesão aos Guarani Kaiowà é tomada como caminho válido e positivo? Acho que ela não se aplica especificamente ao caso do macaco, em que o que está em questão é mais a apropriação publicitária criminosa de um ato de racismo usado para obter lucro, mas é muito interessante e pertinente refletir sobre o porque do movimento negro se incomodar quando não negros afirmam algo como “somos todos negros”, ou “no Brasil ninguém é branco”, e no caso do Guarani Kaiowa esse gesto ser relativamente aceito pela militância indígena e por intelectuais sérios e competentes como Eduardo Viveiros de Castro e Idelber Avelar. Aliás, esse já é um primeiro ponto interessante: mulheres, negros, índios, homossexuais, etc, são minorias irredutíveis em sua especificidade, e as estratégias de embate político devem ser diferentes em cada um dos casos, ou seja, o que se aplica a um caso não necessariamente servirá para outro.
Particularmente eu consigo entender bem o incômodo com o apoio humanista do tipo “somos todos negros”, e os riscos contidos nessa posição, sendo mais difícil compreender a legitimidade desse gesto em relação aos Guarani Kaiowa. Inclusive questionei muito no início da campanha (queria escrever algo do tipo Guarani Ponte Preta), mas depois que vi a adesão e o apoio de militantes e figuras que eu respeito, fiquei me perguntando sobre as razões que, afinal, justificam essa diferença?
Os motivos para ser contra a adesão são vários. Eu gosto sempre de fazer um exercício de transposição: imagine o quão esquisito seria um heterossexual “padrão” que levantasse a bandeira ou usasse uma camisa do “Somos todos mulheres”. Não é uma posição impossível de se assumir – o Laerte é o melhor exemplo – mas para que essa fala tenha legitimidade é preciso um posicionamento prático e subjetivo muito mais radical do que uma manifestação de apoio virtual, ou publicitária. Porque as mulheres, que conquistaram espaços para fazer ouvir sua voz, irão cobrar esse comprometimento. É preciso que o sujeito rompa efetivamente com as barreiras de gênero em sua vida, o que implica em uma alta dose de comprometimento ético, além de muito embate social e político. Caso contrário, as mulheres imediatamente questionarão esse apoio, com razão, afinal, ele é baseado em um princípio que no limite nega a especificidade de sua luta: “todo ser humano sofre em alguma medida, logo, o sofrimento das mulheres equivale ao sofrimento humano em geral, e não se resolve com políticas específicas”. É por isso que não existem homens feministas: não é por falta de capacidade dos homens de “entender as mulheres” (homens e mulheres possuem o mesmo grau de complexidade e são ambos incapazes de compreender a si próprios) ou de interesse, mas sim porque se trata da conquista de um espaço de “fala” para as mulheres, e que envolve, por exemplo, a irredutibilidade do corpo e da psique da mulher, que não pode ser reivindicado a partir de outro lugar. O protagonismo desse movimento é delas, e não deve ser “transferido”. O mesmo acontece com os negros. Um exemplo da perversidade dessa transferência é o famosíssimo caso da “Princesa Isabel”, a libertadora, que faz com que a abolição seja interpretada até hoje como um gesto de piedade da elite branca, e não como resultado de séculos de luta e resistência da comunidade negra. O mesmo princípio está nos gestos de apoio de Luciano Huck e Reinaldo Azevedo, reacionários da pior espécie e defensores descarados do privilégio de classe (lembra do episódio do rolex de R$ 39.000 do Huck?), que aderiram rapidamente a banana.
Existem muitos brancos que são reconhecidos pela comunidade negra como “mais pretos do que muito preto”, por seu grau de comprometimento e respeito seja com a causa, seja com a cultura. A diferença consiste aqui justamente no grau de comprometimento. É importante se perguntar se a adesão a uma campanha do tipo “somos todos negros” está efetivamente beneficiando aos negros, ou servindo muito mais como compensação simbólica para o lugar do opressor racista, com o qual ninguém (ou quase) hoje gosta de se identificar. Ou pior, contribuindo com o sistema de opressão brasileiro, que insiste em não reconhecer a especificidade racial de seus problemas. Circulou por esses tempos a foto de um policial militar armado - que deve ter encontrado muita satisfação atirando em “marginalzinho preto” por aí - segurando uma banana. Por melhor que sejam suas intenções, o que essa identificação ideológica efetivamente promove? Não existem formas menos ideologicamente “arriscadas” de se engajar e sensibilizar com a causa negra? Adiantando a resposta, sim, existem muitas, mas são mais complexas e exigem muito mais do que a comoção com histórias tristes de negros pobres que são exploradas pela televisão ou em filmes como “12 anos de escravidão”. Isso sem falar da especificidade do racismo brasileiro, que usa justamente a “identificação humanista” para deslegitimar as reivindicações do movimento: “No Brasil ninguém é branco, logo, cotas raciais não fazem sentido”, e coisas do gênero. Ninguém é branco no mundo inteiro, não é um privilégio tropical, porque o conceito de raça é uma invenção: a questão é que, a despeito disso, os mortos e presos tem coincidentemente a pele mais escura. Daí a redundância de afirmar que o problema no Brasil é social e não racial: o conceito de raça é necessariamente social, por ser ideológico, sendo a dimensão biológica da coisa apenas mais um dos aspectos de sua estrutura. Enfim, os argumentos são muitos.
O que leva pra questão seguinte, de quando esse tipo de identificação parece válida. Lembrei da foto do Sheik, do Corinthians, beijando um cara, que é uma forma imagética de afirmar “somos todos homossexuais”. A maior prova da validade da postura nesse caso é que ela não pôde sofrer um processo de adesão em massa, como no caso da foto do Neymar. Ao contrário, a opinião pública caiu de pau no cara, que teve que se “justificar” publicamente, com uma piada homofóbica contra são paulinos, diga-se de passagem. Nesse caso o gesto não serviu para ocultar um problema – a de que o sofrimento do negro não equivale ao sofrimento do ser humano em geral – mas para questionar a posição de poder associada a sexualidade do macho alfa. Seu efeito foi o de questionar lugares comuns – o que é ser homem – e não reforça-los: nada mais fácil no Brasil do que se afirmar como não-racista, e ao mesmo tempo ser a favor da redução da maioridade penal e de pretos amarrados em poste, pela especificidade com que a ideologia se relaciona com a realidade no país. As pessoas são contra os negros em outros espaços ideológicos: “o negro merece ser tratado igual a todos, mas o bandido tem que ser morto e torturado como um escravo”, enunciado que recalca a relação entre a herança colonial e o mapa da criminalidade no país. O fato do bandido ser preto vira uma questão de mera coincidência .
No caso dos Guarani Kaiowa, creio que o principal aspecto passa pela visibilidade desse grupo, e de seu poder político, que ainda não conseguiu fazer ouvir a sua voz. Quantas pessoas sabiam quem eram antes da adesão em massa do facebook? A adoção do sobrenome teve a função simbólica de uma faixa, um cartaz virtual, que chamou atenção para um problema que a grande mídia deixava invisível. Creio que essa repercussão foi um dos estopins que fez o governo Dilma perder tanto em popularidade, chamando atenção para o processo de genocídio indígena que seu governo está promovendo. Acho que a excelente pergunta da Lílian tem que ser respondida em termos de conjuntura: é porque as causas são diferentes que a mesma estratégia possui efeitos positivos ou negativos, que devem ser revistos a todo momento. Quando (ou melhor, se) a questão indígena ganhar a mesma projeção e conquistar o mesmo espaço que tem o movimento negro e o feminista, por exemplo, a estratégia de assumir essa identificação deve necessariamente ser revista, pois seu impacto político deixará de fazer sentido para se tornar um problema. Por enquanto é fundamental que todos se mobilizem para mostrar que os Guarani Kaiowa existem, e estão sendo sistematicamente exterminados. Quando essa etapa for vencida, deve-se passar para outra.