sábado, 26 de dezembro de 2009

UM OLHAR SOBRE “SEGURA O TCHAN”, DO GRUPO É O TCHAN (3 de 3).



LICENCIOSIDADE CONSERVADORA

Diagrama 5: “Tudo que é perfeito a gente pega pelo braço”

Diagrama 6: “Joga lá no meio mete em cima mete em baixo”

No diagrama 5 percebe-se que o segmento se une melodicamente ao início do trecho inicial (diagrama 1), recuperando e marcando um re-início depois do refrão. Continua-se a falar da moça e a condená-la, agora de uma forma em que violência e sensualidade se mesclam de forma mais explícita. Traduzindo para uma linguagem mais funk, teríamos algo do tipo: já que ela não segura o tchan e se atreve a exibir sensualidade e desejo feminino, o que nós, macho, faremos, é pegá-la pelo braço e mandar ver. Uma combinação bem própria das músicas carnavalescas, e bastante reveladora do modo de ser do país, pautada por certa licenciosidade conservadora, própria da cordialidade - justamente um borramento de fronteiras que indica violência (negação da autonomia do outro por quem pode mais) e afetividade (negação da formalidade nas relações interpessoais). Uma mistura bastante característica que permite o surgimento de espaços de efetiva democratização (o samba, o futebol) em uma sociedade que em tudo nega o democrático. No caso, constrói-se uma canção com alto valor libidinal (mete em cima e embaixo, que além da conotação sexual explícita traz uma indicação inequívoca da coreografia – lembra dela? - apontando mais uma vez para a riqueza polissêmica inscrita na “pobreza” textual) em que se condena a mulher que deseja\é desejada. O refrão novamente é o ponto máximo dessa contradição: na canção que é praticamente um marco do axé, altamente sensual, exorta-se a mulher não a liberar, mas a segurar o tchan – razão de ser da canção. Essa inversão, ou melhor, contradição, que longe de atrapalhar contribui ainda mais para festa, está expressa de forma bem mais sutil na inversão melódica dos termos “cima” e “baixo” (diagrama 6), que por assim dizer trocam de lugar. “Cima” vai ocupar o ponto mais baixo da tessitura melódica do verso, e “baixo” vai ocupar o ponto mais alto. Sacada que acrescenta mais interesse na relação da letra com a melodia e com a coreografia. A relação do axé e do carnaval com o Brasil profundo dá muito pano pra manga, mas não da pra puxar mais esse fio do novelo, com o risco de nos embaraçarmos para sempre. Vamos segurar o tchan, e o país que se exploda.

Depois de nove meses voce vê o resultado...


Surge uma diferença significativa no diagrama 5 com relação ao trecho inicial, pois que agora no mesmo segmento melódico concentra-se um trecho muito maior de texto, acrescendo mais figurativização no interior do segmento temático que se repete. Essa ligeira alteração de sentido desemboca no procedimento mais intenso no verso seguinte (diagrama 6), que rompe pela primeira vez com o padrão temático seguido até aqui. Ainda assim, o trecho mantém uma forte concentração graças à força de suas rimas internas (meio mete em | mete em), já que a tematização é uma forma de fixação pela repetição, fundamental em canções com apelo rítmico marcante. Mas pode-se dizer que essa alteração de sentido conduz a um desdobramento melódico importante com relação a primeira parte, pois a estrofe seguinte (diagrama 6) será uma reposição na íntegra dessa última parte.

Diagrama 6a: “Depois de nove meses você vê o resultado”

Em termos de conteúdo essa estrofe explicita ainda mais o sentido sexual contido no trecho anterior, de caráter violento - se não segurar o tchan, você vai ver o resultado, enquanto eu, provavelmente, estarei longe - que reforça a condenação moral expressa em forma de ditado popular do trecho inicial (fragmento 1) da canção. Com relação à melodia, a mudança de sentido mantém certa coerência interna ao repetir integralmente o fragmento 6, mas revela algo como certa forçada de barra - reforçada pela idéia de que a canção é na verdade um pout-porrit - transmitindo uma sensação de mal acabamento, mesmo porque agora, ao invés de se criar um ponto de passagem como na segunda estrofe (diagrama 2), simplesmente repete-se a fórmula anterior antes de retornar ao refrão. A solução será repetida ainda na estrofe final.

Diagrama 7: “Esse é o Gera Samba arrebentando no pedaço”

Diagrama 8: “Joga lá no meio mete em cima mete embaixo”

Aqui observa-se ainda maior “economia” porque abole-se a segunda parte da estrofe, optando-se por repetir duas vezes os mesmos versos, sem o desdobramento do anterior. Além disso, o verso final é a repetição idêntica do diagrama 6. Tudo isso funciona como elementos que aceleram a canção, de modo que ela chegue mais rapidamente ao refrão, que nesse momento já se impôs com força por toda a estrutura – concebida em nome da conjunção que este representa – e não pode esperar. O caráter frágil desse trecho é ainda reforçado pela aparente ausência de necessidade para sua presença ali, funcionando tão somente como propaganda da banda (“esse é o Gera Samba”), um elemento a mais jogado em uma canção feita de colagem de fragmentos, cujo senso de unidade já vimos ser conquistado no plano melódico. De fato, dada a fragilidade desse segmento, a última estrofe não se limita a construir rimas internas e a repetir integralmente o sentido melódico da passagem anterior, mas se apresenta como uma reprodução idêntica do diagrama 6. Ainda, uma vez mais, o equilíbrio.

SEGURANDO O TCHAN: O segredo da canção

O "Tchan": razão de ser do grupo.

Mas, conforme já adiantamos, o segredo de “Segura o tchan” está na força de seu refrão, que se impõe por si e nem precisaria ser explicitado, dado sua força de evidência. Pra começar, como não poderia deixar de ser, é uma retomada da linha temática principal (------ __) em torno da qual toda a canção se constrói. Agora, porém, com maior ênfase, dada a autonomia de cada um dos segmentos: verbo (segura, amarra) e complemento (tchan), sendo este o centro do refrão, tanto por ser a razão de ser do verbo quanto por recair sempre no ponto mais forte do tempo binário do compasso. Tendo assumido esse compromisso melódico-textual, com acento recaindo sempre no mesmo lugar, o intérprete pode inclusive jogar com o campo de liberdade rítmica permitido pela melodia. Note-se como Beto Jamaica joga com essa possibilidade de variação, retardando o primeiro Se – Gu – Ra e adiantando o “amarra” e o “segura” seguintes, sincopando o refrão: desde que o tchan fique em seu devido lugar, o tempo forte do compasso, pode-se jogar tranquilamente com as possibilidades infinitas de variação rítmica. Tudo nesse refrão é construído para desembocar no Tchan, a tal ponto que no verso final (diagrama 10) este irá se tornar absoluto, ocupando praticamente todo o segmento. O tema melódico por sua vez é verbalizado, e a letra canta a própria melodia (artifício técnico bastante caro a certo represente de outra vertente da nossa canção, João Gilberto, veja Bim Bom), cuja razão de ser por sua vez é rítmica. O tchan é a razão de ser de tudo o que se fez até aqui.

Do ponto de vista mais “musical”, no plano do significante, o tchan tem pois um poder de concentração impressionante, não muito comum de se alcançar na música popular urbana, ao menos não com esse grau de acerto. E do ponto de vista do significado linguistico, ele tem a incrível capacidade de retomar todos os termos que ficaram em aberto ao longo da canção, conferindo-lhes uma unidade na celebração. O termo “tchan” é assim um autêntico signo polissêmico, um significante quase vazio que tem todos seus múltiplos sentidos construídos pelo texto cancional. Senão, vejamos:

1 – O significado mais explícito é sua metáfora para o órgão sexual, ao qual a mulher precisa segurar para que o macho não se veja “forçado” a liberar o seu. Retoma o aspecto sexual disperso por toda canção.
2 – O termo tem também uma função coreográfica, funcionando como indicação para aqueles que irão dançar (segura o tchan em cima, amarra o tchan em baixo, etc). Retoma o sentido coreográfico disperso por toda canção.
3 – Tchan é também, como vimos, a figuração do próprio ritmo a que se está celebrando, pois o termo reforça a acentuação típica de samba (compasso binário, com acento na segunda). Retoma o caráter de celebração, via samba, do aqui e agora.
4 – Também tem um sentido que foi adquirido posteriormente, mas que podemos acrescentar aqui. Dado a força que o refrão carrega, e a problemas de contrato que forçaram a separação do grupo, Tchan acabou se tornando o próprio nome do grupo que viria a ser o maior representante do chamado axé music. Nesse sentido o termo recupera também o sentido daquele verso disperso que fazia propaganda do Gera Samba, pois o refrão, dado sua potencia, converte a si mesmo em propaganda a posteriori.
5 – O único sentido que não é construído pelo próprio texto, mas que é por ele retomado, é o que equivale tchan a algo do tipo um “que” a mais, uma qualidade x que torna algo especial. Esse sentido também se faz presente, ainda que em grau bem menor que os demais.

Tem mais gente por aqui que usa artifícios do É o tchan


Temos assim um refrão que coloca toda sua ênfase em um termo (tchan) de extrema complexidade, que concentra em si todos os significados dispersos ao longo dessa canção que, como vimos, oscila em torno de uma abertura polissêmica dos signos. Em certos momentos estes parecem que não irão se fechar, mas graças ao bom desenvolvimento temático da melodia e ao intenso poder de concentração do refrão, as coisas são finalmente recolocadas em seus devidos eixos. Nesse sentido o refrão funciona como uma representação metonímica de todos os movimentos realizados até então, o que revela sua força, capaz de sobreviver para além do próprio gênero. Pois o tchan é ao mesmo tempo o máximo de abertura de significado no máximo de fechamento de significante, a tal ponto que a última parte do refrão só consegue espalhar tchans para todos os lados.

Por fim, não queremos aqui dizer que “Segura o tchan” é uma canção que não apresenta falhas. Ao contrário, procuramos levantar suas incoerências, sem nunca deixar de acreditar que existem inúmeras outras canções mais bem realizadas, mesmo dentro do grupo, e que existem apostas dentro do movimento do axé baiano até mais interessantes – como os casos do Olodum, ou Timbalada. O que nos propusemos foi questionar certa premissa, baseada exclusivamente em preconceitos, de que esta ou qualquer outra canção dita “comercial”, possa ser descartada como lixo mercadológico, antes de se lançar sobre ela um olhar mais cuidadoso. Em se tratando de uma arte industrial, toda canção popular urbana é mercadológica, o que coloca um problema (sem eliminar) para conceitos como indústria cultural, quando tomados unicamente sob um viés negativo. Pois se é certo que o sucesso comercial junto ao grande público não quer dizer que a canção tenha o mesmo sucesso enquanto realização estética, acreditar no contrário, que canções compostas visando o sucesso junto as massas não possuem, a priori, qualidades formais, participa da mesma ingenuidade crítica, com o agravante de carregar um olhar mais elitista, bem peculiar a esfera da alta cultura brasileira.

Van Damme, que não pegou bem o espírito da coisa


E como não poderia deixar de ser:

Um comentário: