domingo, 21 de dezembro de 2008

Amarante, Camelo e a Vitrola


(ou três discos pra ouvir ou sei lá).

Que sou Fã dos Los Hermanos - com re-salvas - nunca foi segredo. Gosto do miolo da carreira. as pontas não me agradam. O primeiro homônimo "Los Hermanos" acho Cru, o último, muito 'profundo', coisa que me assunta e aborrece, pois sou "um meio intelectual, meio de esquerda" [pra entender o que quero dizer ao me descrever assim, sugiro a leitura de um conto do Machado de Assis: "Teoria do Medalhão"]. Digo mais: fui num show do primeiro disco da banda numa 'feirinha' de gente descola na Pompéia e o show não me agradou. Era uma bandinha qualquer, ouvi o disco e desconfiei: meu primo de 13 anos gostou - cuidado com o que pode ser -. Não gostei. Depois acidentalmente, fui num show do "Bloco do eu sozinho". O jogo mudou. Sai de lá em choque, parei na primeira loja e comprei o disco e ouvi incessantemente. Muito bom. Gostei tanto que dei o meu disco de presente pra uma amiga [faço muito isso] para ela ouvir e se convercer de que podia também esquecer o primeiro disco - como a banda 'meio' que fez - e gostar dos caras. Dito e feito. A moça virou super-fã. Daí os caras se exilaram e lançaram o Ventura. Nessa época, passei uma parte do verão em Parati. Alternavamos os campeonatos de Winning Eleven no Playstation2 com bebedeiras onde eu e meus amigos [quase todos músicos ou pretenços a tal] ouviamos e tiravamos as músicas do Ventura. Foi mágico. De fato o disco marcou. Gostei bastante que acabei indo nuns 5 shows deste disco. Muitos destes num local chamado Kasebre rockbar....Lugar fantástico, que se um dia você tiver a chance e a coragem de ir [é aqui na Zona Leste - perto de casa!] você não vai se arrepender...O Kasebre é a Meca do Rock. Repare nos Unos pretos de jovens, motos e capacetes dos motoboys...raro não possuir um adesivo do lugar. Multidões se arrastam para lá para ver Pearl Jam cover ou Ramones covers e coisas do tipo. Mas enfim....acabei comparecendo no Show do 4. O disco é bom, mas do tipo que qualquer distração pequena, nos tira a atenção dele. Enfim, não gosto e vou falar muito porque ouvi pouco. Repito: gosto do miolo da carreira. as pontas não me agradam.
Seguindo minha vida, nos últimos dois meses, me deparei com três discos ligados em si de alguma maneira (além de todos serem atuais [2008]):
(i)Sou/nóS do Marcelo Camelo
(ii) Little Joy - Little Joy
(iii) Notícias - Vitrola Sintética
Vou falar pouco. Vou dar umas informações que vi por aí e a minha visão [limitada, mas honesta e limpa], daí os discos ficam aí pra serem baixados e cada pessoa pensa o que quer e depois me conta pra ver onde podemos chegar como tudo isso, vamos lá:

(i)Sou/nóS - Marcelo Camelo
Wikipedia: É o primeiro trabalho solo do cantor. É um albúm mais experimental e com músicas mais introspectivas. Vem sendo bastante elogiado pela crítica especializada;Destaque para as músicas "Mais Tarde", "Doce Solidão", "Janta", " Liberdade" e " Téo e a Gaivota".

Gostei do disco. Embora tenho achado um disco um tanto "pobre" no conjunto, fica positivo o fato do Marcelo ter se 'libertado' e assumido como trabalho o que ele colocava como influência: Músicas com fortes tendências MPBísticas. Um disco criativo, e se o Camelo trilhar esse caminho, uma hora ele acerta na mosca. Vale lembrar que a atual banda de Apoio é o Hurtmold. Banda do qual sou fã desde o começo do começo na garagem da Rua Pinto Monteiro, e se acontecer do Camelo entrar na onda do Marinho e Cia, a coisa vai dar samba. Ou melhor, dar música alternativa, criativa e de altíssima qualidade.

(ii)Little Joy - Little Joy


Rolling Stone: O Little Joy, projeto criado por Fabrizio Moretti, baterista do Strokes, e Rodrigo Amarante, cantor e guitarrista do Los Hermanos  .
Gostei muito do Disco. Parece trilha de comercial de carro wagon na praia. Escutei muitas vezes, e a única conclusão que cheguei é que é muito bom. Viva os projetos paralelos.

(iii)Notícias - Vitrola Sintética


Uma senhora estréia de um projeto entre amigos e afins que começou a pouco tempo. Imagine um disco intermediário entre o primeiro disco do Los Hermanos e o segundo Bloco do eu sozinho". É essa a sonoridade que você vai encontrar. Ótimo início. Nas músicas, algumas pouco cruas (nada que desvalorize as músicas), já podemos encontrar um certo lirismo abstrado valioso. Vale destacar "Rótulo", composta e cantada pelo pianista do grupo Mascos Alma. O vocalista, Felipe Antunes alterna Genialidade no cantar com momentos no qual tira a atenção de si  carregando a voz de uma maneira que faz lembrar Sergio Filho da Gram ou Dinho Ouro Preto - e faz sem necessidade, pois canta bem e alinhado com a proposta. Isso pode ser valioso para alguns, mas pessoalmente não me agrada. Otávio Carvalho faz um bom trabalho nos baixos, barulhos e pós-play do disco. Tive a oportunidade de vê-los ao vivo numa pré-estréia do disco Notícias, e pude atestar a competência na qual executam magistralmente as músicas com a mesma qualidade e sonoridade do CD, e fazem isso sem matar possíveis improvisos do calor do momento. O primeiro disco vale, e a banda promete.
E pra quem prefere escapar fedendo do que morrer cheiroso, ficam os discos pra download (clique no nome que o link aparecerá):



Mais uns discos no migué:
Outros discos comentados aqui (clique para fazer download):
Los hermanos:
"4"
Gram:
"Gram"
Hurtmold:

.t






Uma grande vitória....


É com grande orgulho e satisfação que venho informar a todos que acompanham esse papo todo aqui que nosso guru em pessoa (ele mesmo, o genial Falcão) não só leu o nosso blog, conforme declarado via email, como adicionou nossa página no seu blog, como favorito. Que todos sintam-se tão orgulhosos e felizes quanto eu.


Pra quem duvida, ACESSE AQUI:

O próximo passo é conseguir com que o Roberto escreva uma música pra minha mulher... aí já posso morrer em paz...
E como diria o mestre: "É melhor cair em contradição que do oitavo andar"
Valew Falcão!


E abaixo essa pérola do nosso cancioneiro, o clip de "Holiday foi muito"!

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Cavaleiro das Trevas

É isso ai galera, uma boa notícia pra vocês. Depois de muita pressão e chantagem emocional consegui convencer meu grande amigo e renomado intelectual (que dentro em breve estará lançando seu primeiro livro) a publicar algu,ma coisa nesse blog. E logo um texto sobre o melhor filme dos últimos tempos.
Qual a semelhança entre o Batman, Coringa, Estado de excessão, duas Caras, Barak Obama e Kunk Fu panda? Porque o Batman pediria pra sair caso encontrasse com o Cap. Nascimento? Quais os problemas estéticos deocorrentes do desejo de se fazer um filme de arte com a velocidade hollywoodiana? De que forma o Batman se torna mero fantoche nas mãos do Coringa, o verdadeiro diretor do filme? O que Batman e Tropa de Elite revelam da própria matéria social a partir da qual se constituem, no caso, a brasileira e a americana? Leia pra ficar mais sabido e contar pros seus amigos...
E para quem ainda não assistiu:
Clique aqui para baixar Batman - o Cavaleiro das trevas Via torrent

O Cavaleiro Democrata das Trevas e a Tropa Brasileira da Elite

Cavaleiros das Trevas

A discussão sobre o estado de exceção é a primeira que parece se impor ao assistirmos a um filme como O Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight). Até que ponto o Batman pode ir, e vai, além da lei para garantir o cumprimento da lei é o que parece estar em jogo sob os nossos olhos extasiados pelas seqüências espetaculares de um filme hollywoodiano. Exemplar nesse caso é o uso de um absurdo recurso tecnológico para ter acesso a todas as conversas de celulares de Gotham City e assim poder rastrear o perigoso Terrorista do outro lado da linha... Ora, difícil não escutar aqui o eco das “relativas” liberdades individuais virtualmente perdidas pelos cidadãos americanos pela declaração de um ato alcunhado patriótico – o Patriot Act – uma regulação emitida pelas agências de segurança de George Bush, de caráter abertamente paranóico e repressivo. Com a diferença de que o que o Batman está fazendo aqui é claramente secreto e não tem legitimação legal nenhuma.
Liberdade aliás é aqui a idéia da vez, pois o que Coringa está conduzindo ao mesmo tempo – tendo determinado certas “regras de segurança” (ninguém deve sair das barcas e por em risco a vida de todos etc) – é um grande experimento que poderíamos chamar de democracia de emergência. Dois contingentes de passageiros, um de “doces e inocentes civis” e outro com a “escória criminosa” condenada por Harvey Dent – o promotor-herói-monstro – tem em suas respectivas mãos as vidas dos outros, sob o risco de perderem as suas. O que essa singela cena mostra é que o lado “bom” escolhe – democraticamente, organizadamente, pelo voto – a morte sumária dos criminosos em geral. O que ele não tem é a coragem de executar a sua escolha. Como, por sinal, na outra barca, não se consegue igualmente negar com veemência essa escolha. O que o experimento, o jogo do Coringa demonstra é que a democracia – cujo modelo é o americano – é tudo, – um sistema de escolhas alienantes e falsas, se quiserem – menos um sistema de sujeitos políticos, uma vez que a grande maioria não é capaz de sustentar a própria escolha.
Quando o Batman tenta rastrear a voz do Coringa através da infinidade de vozes do sistema de comunicação contemporâneo, o que ele procura é o Real dessa voz em meio ao emaranhado dos significantes, em meio ao Outro de Gotham – Outro que ele julga defender e que constitui uma multitude (Hardt e Negri) mais do que um povo. É por isso que para chegar até o Coringa ele deve aqui driblar e desembaraçar o emaranhado vítima-terrorista-refém-louco-criminoso. Tudo para chegar até o Coringa, que finalmente ri e lhe diz “você acha que eu arriscaria perder a batalha pela alma de Gotham numa briguinha de mão com você?” E como sustentaremos aqui e mais adiante que o Coringa é o verdadeiro arquiteto, o próprio diretor do filme – sem falsa metalinguagem – não cabe contrariar a hipótese de que o filme é mais do que um filme de super-herói com seqüenciazinhas de ação. Não? (ainda que estas devam estar presentes para justificar o enorme gasto – cada vez maior como diz a lei da acumulação do Capital – que constitui um filme de ação hollywoodiano).


Profundidade artística

Sim. Há uma pretensão artística n’O Cavaleiro das Trevas. E há também um perigo tão grande quanto essa pretensão. O insight é de um blogueiro americano muito inteligente que usou o aparato crítico de Slavoj Zizek para ler esses e outros problemas do filme (http://poserorprophet.wordpress.com). Este texto lhe faz (ao blogueiro) inúmeras desapropriações que eu torço para os meus propósitos. Peço licença para citar Slavoj: “Em contraste com a oposição simplista entre mocinhos e bandidos, suspenses de espionagem com pretensões artísticas demonstram toda a “realista complexidade psicológica” dos personagens que estão do “nosso” lado. Longe de demonstrar uma visão equilibrada, no entanto, essa “honesta” aceitação do nosso “lado escuro” assinala o seu contrário mesmo, a secreta asserção de nossa supremacia: nós somos “psicologicamente complexos”, cheios de dúvidas, enquanto os oponentes são fanáticas máquinas assassinas unidimensionais” (In defense of lost causes, tradução minha). Como nos filmes de super-herói? Pois então não é verdade que muita gente que assistiu ao filme saiu dizendo que o Coringa estava muito bom, ou seja, completamente insano? E as crises existenciais e morais do homem-morcego não seriam exatamente o que fariam dele distinto e superior ao Coringa? Não acho que se trata de apontar profundidade psicológica também no personagem do Coringa, não se ganha nenhum esclarecimento sobre o filme com isso. Por outro lado, desde Batman Begins, temos essa tentativa por parte de Wayne de vivenciar e entender “por dentro” o que é ser um criminoso, estratégia que também evidencia o seu oposto aparente, qual seja, trata-se da melhor maneira de neutralizá-lo como Outro enquanto tal. Nesse sentido o filme é um propriamente um espetáculo na acepção de Debord, tornando vivenciável uma ideologia em escala exponencial.
Entre o Batman e o Coringa, entretanto, fica o Duas Caras. Ele é a verdadeiro alvo do Coringa, o centro de seu plano, e a razão de seu triunfo final. Ele não leva uma vida dupla e com lógicas diferentes (mas complementares), como o Batman, e nem se entregou à monstruosidade da máscara por completo como o Coringa (que tem ambos os lados desfigurados). Este triunfa porque faz de Dent uma bizarrice a meio caminho entre ambos: um errante vingador dos pais que persegue seu plano com interferências de um desfigurado, ao mesmo tempo insano e ridículo, senso de justiça. Não deixa de ser incrível que o grande Cavaleiro Branco da justiça esfumaça suas pretensões universais num jogo pessoal de gato e rato, provando ser muito menos racional do que o Coringa.
Aliás, racionalidade é com ele mesmo. Tenho minhas dúvidas de quem é realmente o diretor desse filme, pois tudo se passa como se o Coringa fosse o cara por trás de tudo. A arquitetura do filme é toda dada pelos planos do vilão, e como todo filme hollywoodiano ainda fiel às suas raízes dramáticas esses planos não se mostram em seu elemento de montagem intelectual (sem falso brechtianismo, portanto). O que eu quero dizer é que nesse filme, em grande parte, os planos de imagens, cinematográficos, coincidem com os “planos” criminosos do Coringa mesmo. É ele que dá a pauta. É ele que está no controle o tempo todo. É ele que dirige. Enquanto o Batman... reage, corre atrás, tenta salvar esse, aquele, como um personagem de videogame onde os caminhos estão pré-traçados – numa triste semelhança com a esquerda contemporânea... Enquanto a trilha sonora apresenta-se como um conflito entre uma estereotipada música de aventura sombria, que alimenta a nossa fantasia de ser Batman, e a risada propriamente diabólica do Coringa, considerando que o Diabo é o Criador desse mundo. E enquanto tal ele é a própria ruptura, a fenda do Real, a perturbadora risada inscrita na realidade, desconfigurando-a, tornando-a inconsistente, um pouco como o sorriso daquele gato de Alice no País das Maravilhas. O Coringa é o Trauma enquanto tal – daí a multiplicidade de histórias quanto às origens de suas cicatrizes – trauma cujo referente é ninguém menos que o nosso conhecido sujeito moderno. O que entendemos por sujeito moderno? Um sujeito libertado de sua substância coletiva, de seu núcleo substancial (étnico, comunitário, familiar...), individualizado, que sacrificou tudo aquilo pelo qual ele anteriormente sacrificaria tudo... em troca de uma nova Ordem de indivíduos igualitários e livres – mesmo que apenas formalmente na grande parte dos casos. O trauma desse sujeito diz respeito à sua essencial não-identidade, à sua potencial indeterminação no solo social, indeterminação que diz respeito também – para voltarmos ao filme – às inclinações e estruturas morais socialmente partilhadas, justamente àquilo pelo qual o Batman luta. A “cruzada” do Coringa “pela alma dos cidadãos de Gotham” diz respeito a essa tentativa de confrontá-los com esse potencial subversivo que a modernidade trouxe em seu bojo. O Coringa é o gozo corporificado que orquestra os seus atores e cria o cenário perfeito para que a experiência da “noite do mundo” (Hegel), o caos ou o vazio fundamental, torne-se generalizado. E o seu grande trunfo, sua conquista propriamente extraordinária, é roubar para si o gozo da lei e fazer vislumbrar uma violência desvinculada do direito e do misticismo que insiste em se afirmar no nosso fascínio ridículo pelo Batman. Why so serious?


Anti-heróis subterrâneos
Que o Batman sempre foi um anti-herói nos seus melhores momentos, os leitores dos seus quadrinhos já sabem. A “crise” em que ele entra no filme reafirma-o como anti-herói: até onde infringir a lei é fazer a lei? Daí a questão de procurar um White Knight para substituir o Dark Knight, um Cavaleiro Branco que agiria absolutamente dentro da lei e a faria cumprir sem a necessidade de um Cavaleiro Negro, excesso da lei em relação a ela mesma. É aqui que o Batman se insinua como uma alegoria dos EUA: a atual auto-imagem do país não pode se legitimar buscando uma simples afirmação de si heróica, a fantasia do cowboy Bush versus os índios talibãs é uma fantasia demasiada ingênua. É claro para todo o mundo e para parte de sua sociedade que o país está conduzindo uma guerra sem legitimidade e quebrando sistematicamente qualquer apoio da comunidade internacional, que o país decidiu romper unilateralmente os seus acordos, romper o – mesmo que frágil – direito internacional. “Pouco importa o que os outros pensem, vocês europeus (o resto do mundo eu não ouço mesmo) podem me criticar à vontade, eu vou travar a minha batalha sozinho e salvar os inocentes dos terroristas custe o que custar”: tal a auto-imagem anti-heróica dos EUA, sua maneira de extrair gozo disso. E como disse o blogueiro americano, “a América se tornou um vigilante”. Só faltava o seu filme.
Um segundo ponto decisivo que transforma o Batman numa alegoria americana diz respeito às suas instalações subterrâneas secretas – ironicamente disfarçadas de um prédio civil. Susan Willis – uma das mais inteligentes hippies americanas vivas – num seminal texto intitulado “Somente o Sombra sabe”, aponta a qualidade fantasmática do real – através do qual constatamos não o quanto o Cavaleiro das Trevas é o mais realista dos Batmen, mas o quanto do novo Batman já está inscrito na realidade. Tudo indica e já toda a imprensa sabe que o governo americano já tem a sua batcaverna – a base de infra-estrutura de um governo paralelo. O segredo não foi bem mantido no entanto como o de Bruce Wayne (certos governos ainda insistem em ser públicos!): existem quarenta abrigos subterrâneos construídos em montanhas num raio de cem milhas de Washington. Um deles, “por exemplo, em monte Weather, Virgínia... destinado ao porta-voz do Congresso, a chefes de gabinetes e oficiais da Suprema Corte”. Parece que o Batman não estava sozinho em sua paranóia, dado que nos anos 50 muitos de seus compatriotas americanos construíram abrigos nucleares em seus quintais, superando assim seus medos (pensem em Batman Begins, de como o medo de morcegos é superado). A imagem – difundida até a medula pelos seriados norte-americanos – da família nuclear americana é parte da fetichização dos anos 50, da criação de uma nostalgia imaginária de uma “família ideal” rechaçada pela contracultura e o feminismo dos anos 60. Não à toa o assassinato dos pais de Wayne dá-se na saída de uma ópera. Não à toa a fraqueza do personagem Duas-Caras é ser guiado por essa fantasia da família ideal (vingança pela morte da noiva, seqüestro da família de Gordon). O Batman vê mais longe, mas não necessariamente melhor. Como sombra da justiça, seu projeto é garantir a realidade desta. Seu aprendizado oriental permite com que veja sem ser visto, e é esse aprendizado aliado à alta tecnologia que o distingue enquanto sombra real. O radar do morcego é seu símbolo. Ele é a figura mesma da paranóia disseminada, da indistinção entre real e sombra na fantasmagoria da tela.
Em sua vinda ao Brasil há algumas semanas, Zizek disse que não gostou do Dark Knight porque ele é um filme de justificação permanente da mentira (assim como o Kung-fu Panda). O desespero social é tamanho que a verdade deve ser escondida para que a ela não se desintegre na anomia caótica. É nesse contexto que a figura de Harvey Dent se impõe como o Salvador, a última esperança da Ordem. Sabemos, entretanto, que ela não dura muito. Assim como age o serviço secreto norte-americano, algumas coisas parecem dever ser feitas sem o conhecimento do público. Daí o elemento novo que vislumbramos aqui: o que era velado torna-se explícito – para o público do filme, evidentemente. Batman e Gordon encobrem o fato de que Dent está enlouquecendo, apagam e mesmo assumem seus crimes. A cena em que ele mostra-se disposto a matar um capanga do Coringa é paradigmática pela solidariedade entre os dois pólos: é o Batman que vem impedir que ele decida na sorte a vida de alguém. O plano da imagem já divide seu rosto entre luz e sombra.

Tropas e Cavaleiros

O tema da procura por um substituto é muito caro a, e determina mesmo a forma de, um muito polêmico filme brasileiro, anterior ao Cavaleiro das Trevas, o filme-fenômeno Tropa de Elite. Assim como o Batman, o capitão Nascimento não consegue ter uma vida familiar normal por causa de seu trabalho, e tenta achar um substituto. Ambos são guiados por um senso ético absolutamente questionável. Ambos – guardando as devidas proporções – são tecnológica e militarmente equipados. Se tecemos tais aproximações é justamente para nos ajudar a medir suas distâncias, e respectivamente a de suas comunidades imaginadas – brasileira e americana. Se Bruce Wayne decide tornar-se um vigilante mascarado numa cruzada contra o crime, a sua empreitada aparece como fortemente individual e altruística: a imagem clássica disso aparece nos seus saltos solitários das torres de Gotham em direção aos seus abismos. Esta extrema mobilidade horizontal sugere que a sua vigilância não tem barreiras de classe. Mas o fato de ser um dos homens mais ricos do mundo explica não só seus apetrechos, roupas, carro e brinquedos de última tecnologia – uma espécie de rapel de ponta – mas principalmente o fato de ele ser um homem sem nenhuma necessidade e, portanto, de poder se dar ao luxo de dedicar-se ao outro, protegê-lo, sem se importar consigo mesmo. A mensagem ideológica então se torna clara: trata-se do mito do altruísmo americano, de um país que age sozinho para garantir a existência livre e democrática de nações ao redor do mundo... Já em Tropa de Elite, bem, trata-se de garantir a exploração e reprodução pacífica da miséria, trocando-se a “tranqüilidade” afluente de um dos lados pelo genocídio permanente do outro. O altruísmo americano soa ridículo ante ao pragmatismo programático da guerra contra o tráfico, que aqui encontra a usa expressão cinematográfica, do ponto de vista, evidentemente, de quem se engaja no “contra”. A comparação ganha um incentivo a mais quando é a própria direita brasileira que busca refúgio no cinema americano, argumentando que lá o ponto de vista sempre foi o da lei, como sempre deveria ter sido aqui, no lugar de um suposto elogio ao malandro num “cinema do bandido camarada” (Vera Lúcia Follain de Figueiredo). Tropa de Elite, portanto, é aquele filme que viria para por “os pingos nos is” (Veja, “A realidade é só a realidade”). Que pena para a nossa direita que um simples filminho de super-herói exponha e problematize a questão da lei muito mais do que qualquer matéria que a sua querida revista já tenha escrito – ao menos desde que a direita assumiu o seu comando. A simplicidade com que o ponto de vista do policial – e portanto daquele que está na ponta do monopólio da violência – é exposta é inversamente proporcional à sua eficácia, ou melhor dizendo, a sua eficácia depende mesmo dessa simplicidade. O problema é que tal simplicidade não é nada simples, dado que ela dependente de uma estrutura de cumplicidade com o opressor. O filme tem um propósito claro: pretende dissipar a antipatia da multidão contra o direito, substituindo-a por uma simpatia. Ele o faz de duas maneiras distintas e complementares.
Em primeiro lugar por intimidação. Peço licença para citar um trecho da Crítica da Violência/Poder de Walter Benjamin: “Pois a violência mantenedora do direito é um poder ameaçador. Só que sua ameaça não tem o sentido de uma intimidação, como costumam interpretá-lo teóricos liberais desinformados. A intimidação no sentido exato exigiria uma definição contrária à essência da ameaça e não é atingida por lei nenhuma, uma vez que existe a esperança de escapar a seu braço. A lei se mostra ameaçadora como o destino, do qual depende se o criminoso lhe sucumbe”. No universo de potencial anomia generalizada em que se vive hoje – cujo nome paulistano é uma conquista poético-conceitual dos Racionais e se chama vida loka – aderir ao capitão Nascimento é deixar-se seduzir pela esperança de escapar ao destino comum. Tal esperança tem, entretanto, a espessura da ética auto-apregoada pelo policial.
A segunda maneira de garantir uma simpatia ao direito se dá através da estrutura de identificação ao mesmo personagem que representa esse braço principal do estado de exceção que é a polícia. A atuação de Wagner Moura, que indica de forma perfeitamente dramática a cisão entre a sua função pública e sua vida privada, por melhor que seja, entretanto, não pode sozinha garantir essa adesão. Esta é garantida por um mecanismo duplo: a montagem e a voz em off. A montagem garante não só o ponto de vista unilateral da polícia – que atua paralelamente às cenas de cerco às vítimas ou ao inimigo – mas a exposição de sua atuação tática em seqüências vertiginosas cujo ritmo tende a suspender o julgamento do espectador de maneira técnica. A feitura das cenas tende a sobrevalorizar a situação de emergência e a inevitabilidade das ações como elas se dão. Ela instaura, como disse Laymert Garcia dos Santos, um clima de seleção natural ou lei da selva. A perversidade maior, entretanto, está na voz em off. Com ela, estabelece-se um segundo plano que não aquele das imagens, no qual se dá a narrativa do policial como que a posteriori, ou seja, como que de um ponto ulterior à história representada pelas imagens. A função da voz é pontuar – com comentários, conjecturas, opiniões e principalmente justificativas – o fluxo de imagens. O tom da voz, entretanto, é insidiosamente mais calmo – mais sossegado – do que o tal fluxo imagético violento, por vezes levemente irônico, cordialmente informal. Exemplo. Enquanto o Matias chega à faculdade e caminha pelos corredores a procura de seus ex-amigos de curso, o capitão Nascimento fala em nossos ouvidos: “O nosso curso prepara os policiais pra guerra. E não adianta me dizer que isso é desumano. Enquanto os traficantes tiverem dinheiro pra se armar... a guerra continua. Todo policial do BOPE aprende isso. O Matias tava aprendendo. E quer saber, parceiro? Já tinha passado da hora de ele afrontar aqueles maconheiros.” Segue-se então a tal afronta. Apesar dessa disparidade entre som e imagem, elas parecem possuir um encaixe tão “natural” (para nós brasileiros?), que é por vezes difícil notá-la em sua complementaridade problemática. O que essa forma opera é a transformação da voz do narrador em uma espécie de garantia, de fiador último... da Ordem, pois todas as “contradições” – que se quer ver no filme por alguns comentadores – são ao fim e ao cabo absolvidas por essa sábia voz providencial que nos salva da “violência da realidade” para nos garantir a violência do direito. O efeito é portanto propriamente cínico, dado que a violência explícita de decretos permanentes (plano da imagem) só faz alimentar a autoridade da voz, uma vazia violência administrativa.

Pra onde, cavaleiros?


A partir da sucinta análise dos dois filmes que aqui abordamos, podemos tentar estabelecer uma comparação cruzada entre certas coordenadas que os põe em confronto. O pano de fundo comum para tal talvez esteja num certo sentimento de corrupção generalizado – o fato de Tropa de Elite ter sido antes de tudo um grande fenômeno de difusão pela pirataria não seria a melhor prova disso? Corrupção que não poupa e aliás a torna ainda mais devastadora por incluir a polícia. Tal pano de fundo fundamenta e alimenta de modo particular um certo enobrecimento ético dos nossos respectivos cavaleiros. O fato do Batman (teoricamente) não matar o separa do abismo moral oferecido pelo Coringa e constitui o mínimo traço que o mantém no interior do direito. Paradoxalmente, no entanto, ao abrir mão do exercício de poder de vida e morte sobre o outro, ele abre mão de uma identificação com o direito como tal, uma vez que na origem o direito não se distingue de uma violência terrível (Benjamin). O que torna o Batman um americano essencialmente liberal é o fato de ele não conseguir romper esse limite. Apesar de legitimar abertamente a tortura – o que os liberais haviam até ontem apenas “discutido” – ele não pode assumir as conseqüências desfiguradoras/desidentificadoras dessa identificação (com o direito-poder). Tal o impasse americano, que o Coringa veio escancarar. Será o “cavaleiro negro” Obama capaz de encará-lo?
Ora, o nosso capitão Nascimento demonstra sim ser capaz de assumir em sua inteireza essa identificação. Ao tornar-se mais policial do que a própria polícia ele demonstra em sua forma, digamos, pura, o fato de que essa instituição singular da modernidade se emancipou de toda legitimação dos meios, assim como qualquer subordinação a um fim que não seja a garantia cega do destino divino – abram alas que o Papa vai passar... Se o Mathias é o nosso “cavaleiro negro”, não custa sugeri-lo como a cifra do real da diferença entre os nossos negros e os de lá, e não só em termos de simpatia – o nosso está perdendo feio –, o que, aqui, não deixa de ser uma vantagem.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

O mistério de Pantanal (homenagem a linda Bianca)


Para aqueles que de fato mudam de canal e assistem Pantanal, de Benedito Ruy Barbosa, uma boa notícia. Foi lançado o livro “Pantanal – a invenção da Telenovela”, de Arlindo Machado e Beatriz Becker, que procura esclarecer as razões de seu sucesso, a partir da análise das inovações que foram por ela introduzidas. Confesso que ainda não assisti a novela inteira, mas como sempre me interesso por análises de objetos de cultura de massa que procuram compreende-los de fato sem partir de conceitos negativos pré-estabelecidos, fiquei curioso para ler o livro. É possível sim fazer arte para as massas, com qualidade, senso crítico, inovação estética, sensibilidade e o que quer que seja. Algumas das principais características apontadas pelos críticos, responsáveis pelo sucesso da novela são:

A linguagem :
A meu ver a característica mais importante, e que é a primeira coisa que chama a atenção, pelo menos nos capítulos que assisti. Trazia influência do cinema, com planos mais abertos, cortes lentos, enquanto a maioria das novelas usavam closes e tinham cortes rápidos. As cenas de Pantanal eram longas e tinha tempo para o silêncio, deixando em evidência a paisagem, com seus sons e seus ruídos. O espaço se torna fundamental também uma personagem, o que é fundamental para se entrar no clima da história.

O tema:
Creio que esse ponto não apresenta grandes inovações. Desde o Romantismo já se explora o embate entre rural e urbano, questionando-se conceitos de progresso, riqueza, ascensão social e individualismo, e apresentando uma região idílica como ponto de fuga para o pesadelo da realidade. Ainda assim, na época, a maioria esmagadora das novelas eram ambientadas no centro urbano.

Sexo:
A novela se aproveitou da recente abertura política para explorar cenas ousadas de sexo e nudez, o que influenciou todas as redes posteriormente.
Personagens: Fugia do maniqueísmo e evitava os clichês de vilão e mocinho. Seus personagens eram mais complexos que a média das telenovelas.

Elenco:
Por ser de uma emissora jovem (a Rede Globo não acreditava no projeto), não podia contar com grandes estrelas, lançando assim uma série de atores ainda desconhecidos.
Não posso deixar de comentar sobre o oportunismo malandro dos autores do livro, aproveitando-se do novo sucesso da novela para também descolar algum dindin. Mas isso de fato não importa, e o único problema é que a idéia não foi minha, ou não foi encomendada para mim.

Além disso, tem uma notícia melhor ainda. Esse estudo faz parte de uma série sobre alguns marcos da televisão, e os próximos livros que irão sair vão ser sobre o Chacrinha, Betty, a feia e o magistral, fabuloso, extraordinário, sem precedentes Chaves!!! Esse eu não perco.

fonte: Folha de São Paulo, 23\11\2008

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Ainda o cowboy Jorge

Só para complementar os posts anteriores, seguem alguns vídeos interessantes do Jorge Ben. O primeiro é de 1970, bem da época em que ele estava criando sua nova sonoridade. Saca só a cara de espanto da galera, sem entender nada do que tava acontecendo ali. Nessa época Jorge estava voltando a receber a atenção da mídia por conta da tropicália. A performance tem um que de Blues man misturado com sambista e ainda algo de Bossa na postura, mas tudoaomesmotempoagora formando um todo absolutamente original, como comentamos:



O segundo vídeo é só pra mostrar o quanto a sonoridade do cara era uma pancadaria na época.... os caras estavam fascinados com as possibilidade abertas pelos Beatles, Led e afins... e a pegada do Jorge era monstra realmente, não à toa o Caetano ajoelha...rs. A gravação é um trecho de um festival de 73, e coloca os dois maiores monstros da época, Gil e Jorge, juntos.



E de brinde, o melhor solo de cuíca de todos os tempos, do maluco do trio Mocotó.. uma coisa extraordinária realmente. Saca só:

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Os fantasmas de Jorge Ben (I)



LEIA TAMBÉM (PARTE II) e (PARTE III)

Jorge Ben – Primeira Fase (1963-64) – O Fantasma de João Gilberto

Jorge Duílio Lima Meneses desponta no cenário musical brasileiro como um cometa. Ou uma bomba. É dessas figuras que não tem sentido e sob a qual nenhuma explicação racionalista consegue lançar luz. Seu aparecimento é ao mesmo tempo uma ruptura com tudo o que havia sido feito até então, e uma fusão de todas as coisas, até certo ponto mais radical do que o projeto Tropicalista, porque mais orgânico e espontâneo, menos programático.
Ninguem entendeu aquele som novo que surgiu em 1963, feito por um garoto carioca que havia começado tocando pandeiro em um grupo de samba, depois passado para guitarra em um conjunto de rock, e finalmente, cansado de reproduzir os estilos dos outros, criando o seu próprio. Ou melhor, todo mundo entendeu – o disco de estréia de Jorge foi um dos maiores sucessos dos anos 60 – mas no nível do conhecimento profundo. O difícil era classificar, enquadrar em alguma categoria racional. Provavelmente nem mesmo o próprio autor entendia bem o que estava criando, e como o fez. Não era um projeto estético, como a batida de João Gilberto. Era mais uma coisa que nasceu assim, que era dele.
A capa do primeiro disco (Samba Esquema Novo – 1963) lembrava a atitude despojada da Bossa Nova, assim como os arranjos samba jazz das canções, criados por J.T Meirelles (do copa 5). O próprio Jorge reconhecia sua filiação com a Bossa – nessa fase chegou mesmo a gravar uma composição do João Gilberto. Aliás, não é exagero dizer que a Bossa é em grande medida responsável pelo surgimento de Jorge Ben (assim como de toda MPB), que representa no entanto um passo além em relação a esta. A principal contribuição da Bossa para a música popular foi ter liberado a canção das delimitações fixas de gênero, forçando cada uma das composições a encontrarem modos de representação próprias, possibilitando assim a mistura criativa de diversos elementos heterogêneos, sempre a partir de um olhar racionalizante. Mas como a Bossa estava presa ainda a um projeto nacionalista – que depois se tornaria nitidamente ideológico com a canção de protesto – de definição do caráter nacional brasileiro, acabou se tornando ela mesma um gênero, ainda que feito para acabar com todos os demais. O passo além de Jorge foi desestabilizar o último alicerce que faltava, transformando a base do samba em alguma outra coisa, somente definível em relação a cada composição.
De qualquer forma, o Jorge se identificava como herdeiro da Bossa, seja pela predominância do violão, por alguns temas, pelo estilo do canto - uma espécie de João Gilberto cantarolando Beatles num terreiro - apesar da consciência de ser também outra coisa. Ouça o final da gravação original de “Mais que nada”, em que ele faz primeiro vocalizações típicas da Bossa, e depois muda para um falsete que conduz para outro lugar, provavelmente uma gira de umbanda. O público também sentia a mesma coisa. Ele foi o único cantor a se apresentar tanto no Fino da Bossa quanto no programa Jovem Guarda.
Nessa primeira fase de Jorge Ben, a definição samba-rock não ainda muito sentido, tendo surgido posteriormente, embora sirva para marcar bem o lugar excêntrico que ocupava o compositor no cenário da música brasileira. O som de Jorge contém é verdade desde o início ambos os elementos, mas ainda não é disso que se trata, e o mais característico de sua música é precisamente sua indefinição. Como vimos sua música tem Bossa, mas as melodias lembram por vezes o samba, e mesmo esse aparece ora como samba canção, ora como gafieira, ora como o canto mais fundamental dos terreiros de umbanda. Mas em Jorge aparece também o canto negro americano, o Blues, o Jazz (via Bossa “Vem morena, vem”) e o pop. Além é claro, da África, mas aqui não a África de Caymmi, mais fundamental e entranhada, mas a África carioca, explicitando o canto dos escravos que se entranhava no samba. Tinha também rock, mas que rock estranho (“Rosa, menina Rosa”, com arranjos de metais geniais), falando de samba o tempo todo, com arranjo de samba e metal latino.
A linguagem toda própria por ele desenvolvida consistiu na mais radical fusão entre ritmo e melodia já feita, antecipando o que James Brown elevaria a sua potência mais radical, sendo este aliás um dos pontos de contato entre ambos, porque na revolução seguinte operada por Jorge Ben (sim, ele é desses casos raríssimos de personalidades que operam transformações radicais na música mais de uma vez, como Miles Davis, com a diferença que Jorge faz isso no campo do pop, naturalmente mais avesso à mudanças) seu projeto consistirá em encontrar a linguagem funk tupiniquim, um trabalho de transposição que é a operação mais complexa em música popular. E aliado a tudo isso, muito influenciado pelo canto de terreiro (que contem algumas das mais lindas melodias), algumas das melodias mais lindas da MPB estão nesse primeiro disco de Jorge Ben (“A Tamba”, “Uala uala”, “Por causa de voce menina”, “Vem morena”).
Essa indefinição estilística, a razão de ser de sua genialidade criativa, acarretou problemas nos momentos seguintes de sua carreira. Em que categoria enquadrar aquele som para a comercialização. Se no primeiro disco funcionou apresentar ele como vindo de uma linhagem Bossa, nos discos seguintes, participantes daquele acirramento de ânimos que nós conhecemos da época dos festivais, a estratégia não funcionou. Jorge não participava nem do nacionalismo tacanho da música de protesto, e nem da alienação da Jovem Guarda. Portanto, não servia para o consumo, e foi deixado de lado. Contribuiu pra isso, ou acarretou isso – nunca é possível precisar - também a vacilação nos discos seguintes. O disco posterior (Sacudin Ben Samba – 1964) era menos inspirado, os arranjos tentando seguir a mesma linha do anterior já não funcionaram, apesar de serem mais cuidadosos e continuarem a cargo de J.T Meirelles. As melodias, apesar dos bons momentos, não estavam tão inspiradas, parecendo às vezes tentativas de repetição de uma mesma fórmula que ainda não havia sido criada. E por vezes, tentando se enquadrar em um estilo que não era o dele. Em suma, Jorge Ben quis ser tratado como samba jazz, mas seu som não era isso, afinal, ele não era o Simonal, e ficou deslocado.
O terceiro disco (Ben é Samba Bom – 1964) melhorou, e Jorge voltou a criar composições com estilo próprio, indefiníveis, e os arranjos procuraram dessa vez frisar essa indefinição, cada música procurando se filiar a alguma escola diferente, sendo mais ousado. Ele está cantando como nunca, mais impostado e com maior variação, sem tentar soar Bossa (veja a leitura da música de João Gilberto “Oba la la”, que ficou muito passional, semi bolero, muito distante do original) e a base deixa de ser o samba jazz, deixando o compositor livre novamente. Tem rock, Bossa, samba de morro, jazz, umbanda, tudo com arranjos jazzísticos brilhantes que vão atrás do compositor, e não à frente como no trabalho anterior, do mesmo ano, aliás. Possivelmente obra do maestro Gaya, que não ficava tão preso aos esquematismos do samba-jazz tanto quanto Meirelles. Além, é claro, do retorno de melodias inspiradíssimas – a música “Samba Menina” a meu ver é uma obra prima de composição, na insistência da palavra chave samba repetida em contornos melódicos que se alteram a cada estrofe, num perfeccionismo digno da Bossa, só que com muito swing. O resultado é outra obra prima, o disco que melhor capta o espírito criativo do compositor nesse primeiro momento de sua carreira, e que só não obteve reconhecimento por não se enquadrar no cabo de guerra da época.


Transição (1965-67) - Os fantasma de Roberto Carlos e Simonal

O quarto disco (Big Ben – 1965) é simultaneamente o que mais tenta delimitar o som do compositor no gênero samba-jazz, forçando seu estilo a se definir em um rumo que não era o seu (ele era isso também, mas não só), e ao mesmo tempo onde já se reconhece algo de sua mudança para o estilo que finalmente o iria consagrar. Percebe-se uma tentativa de enquadramento seja no swing à moda Simonal, ou o samba jazz, ou mesmo a canção de protesto (“Larai-olalá”). É um dos discos menos Jorge Ben da sua carreira, o que não quer dizer que seja ruim. Mas mesmo essa pressão por definição não impede que Jorge experimente e encontre rumos que desenvolverá mais a frente. Os casos mais significativos são o flerte com a Jovem Guarda em “O homem que matou o homem que matou o homem mau” que ajudará a definir muito de sua estética. A temática livre e lúdica, o violão tocado quase como guitarra, o canto dissolvendo a estrutura da métrica, quase que improvisado, por vezes mais recitação do que canção. E também “Agora ninguém chora mais”, que marca uma aproximação com a Black music, que será central para a sua concepção estética amadurecer, pois é a partir dela que Jorge irá criar conexões inusitadas entre melodia e acompanhamento. Mas é um disco assombrado pelo espectro do sucesso de Simonal e do samba-jazz.
No disco seguinte (O Bidu – Silêncio no Broklin - 1967) finalmente Jorge assume sua figura inorgânica (tem até um manifesto na música “Jovem Samba”, que une a Jovem guarda ao samba), abandonando a sonoridade samba jazz dos arranjos e se aparentando mais como conjunto de samba-rock, aparecendo pela primeira vez a guitarra elétrica e o órgão em algumas música. A banda de apoio que o acompanha é o The Fevers, o que explica a mudança de sonoridade, além é claro do tom das próprias composições. Nesse período ele havia mudado para São Paulo, entrando em contato com os artistas da jovem guarda – chegou a dividir um apartamento com o Erasmo Carlos no Brooklin. E mesmo o título do disco é referência a Jovem Guarda - Bidu é o apelido que ele havia ganhado no programa dos nossos roqueiros. A tentativa visível agora é conquistar o público jovem guarda, uma vez que ele havia sido rejeitado pela turma nacionalista. O resultado novamente é destoante, apesar de algumas ótimas composições. As dificuldades de definição permanecem, porque Jorge Ben não é tampouco um roqueiro. Por isso continuará sem um público até o advento da Tropicália, que privilegiava justamente as sonoridades que não se enquadravam em delimitações rígidas. Mas essa experiência é importante por fazer uma aproximação ainda mais consistente com o ieieie, que será fundamental para o amadurecimento do seu estilo, formado a partir da incompatibilidade estrutural entre o rock e o samba, que o forçará a criar relações melódicas absolutamente originais. Na sequência, quando ele afastar de vez o fantasma do Roberto Carlos (João Gilberto já havia sido expurgado no disco anterior) vai criar uma sequência de pequenas obras primas.
O importante é que aqui Jorge Ben já não é mais um herdeiro da Bossa, ou um sambista diferente, e nem um típico representante da Jovem Guarda, mas uma coisa outra, só possível de ser classificado com um substantivo composto, lembrando que na época a divergência entre samba (engajado e nacionalista) e o rock (alienado e imperialista) era radical.

Os fantasmas de Jorge Ben (II)



LEIA TAMBÉM (PARTE I) e (PARTE III)

Segunda fase (1969-75) – O acerto de contas consigo próprio
O disco de 1969 (Jorge Ben – 1969) aparece como obra de um autor completamente amadurecido e que domina com absoluta maestria uma linguagem que é só dele. Muito dessa maturidade com certeza se deve ao espírito tropicalista de exaltação da heterogeneidade. Jorge Ben não precisa mais se enquadrar, a partir de agora basta ser, e ao assumir a indefinição, se define. O flerte com o movimento vem desde a capa, bem ao espírito da época,e as referências nas letras são inúmeras, tanto em alguns temas quanto nas citações diretas (o samba rock psicodélico “Barbarela”). Os arranjos também seguem o espírito da tropicália, tecendo comentários à canção ao invés de encobrir, e as melodias estão mais soltas do que em todos os outros momentos anteriores, permitindo combinações harmônicas e rítmicas de uma originalidade historicamente sem precedentes e sem pontos de comparação. Para completar, o próprio Duprat assina o arranjo em duas das composições, “Barbarella” e “Descobri que sou um anjo”. As demais composições são arranjadas de forma extraordinária por José Briamonte. As letras por vezes mal cabem no interior das músicas, levando ao limite a desconexão da MPB. Com isso, ele pode unir as dicções que bem entender, miturando, samba, rock, gafieira, macumba, etc... O acerto de tonalidade e matiz que havia sido conquistado no terceiro disco, com os arranjos procurando acompanhar as sugestões do ritmo, ao invés de enquadrá-lo, retorna nesse com espírito diferente. De novo, Jorge Ben está mais Jorge Ben do que nunca. Aparecem as cordas, que irão acompanhar toda essa fase, a batida de violão tocado como guitarra se consolida, o samba cantado num andamento que o coloca entre a gafieira e o rock, e que ele descobriu a partir da aproximação com a Jovem Guarda. Além disso, é nesse disco que se dá o encontro com o Trio Mocotó, a banda que ajudou a consolidar o que se chamaria de samba rock, e com os Originais do Samba (aquele, do Mussum). Em suma, o resultado é de novo um dos maiores momentos da música brasileira, agora não mais como uma bomba de um artista absolutamente diferente de tudo que surgiu, mas como um mestre com total domínio de sua arte.
As obras seguintes mantêm o mesmo nível desta, sendo todos grandes discos. Jorge finalmente encontrou a forma de estruturar suas canções, muito porque a Tropicália forçou que os arranjadores encontrassem formas originais de estruturar canções originais, além de ter encontrado o grupo certo para o acompanhar. Mesmo que este tenha saído de cena logo, ajudou a definir o tipo de som que deveria seguir, ao menos até a fase mais pop da Banda do Zé Pretinho. Todos os discos desse período (Força Bruta, Negro é Lindo, Ben, A tábua de esmeralda, Solta o Pavão) encabeçam nem que seja um grande sucesso e podem ser classificados como geniais, sem dúvida um dos momentos mais fascinantes da música brasileira.
Força Bruta” (1970) segue na linha do anterior, com acompanhamento do Trio Mocotó. No geral é mais suavizado, afinal o anterior é o primeiro dessa estética nova. Os arranjos em minha opinião aparecem menos inspirados, ainda que excelentes, o que não se estranha pois a Tropicália de fato tem nos arranjadores um dos seus pontos principais. Mas as composições de Jorge se sustentam tranquilamente por si, e o disco comporta algumas obras primas, como “Charles Jr” e “O telefone tocou novamente”.
Negro é lindo” (1971) é um disco pesado (“Cassius Clay” é uma porrada violenta no queixo) e maravilhoso que traz algumas mudanças bastante significativas. O Trio Mocotó deixa de acompanhar o cantor para ganhar vida própria. Os arranjos ficam por conta de Arthur Verocai, que adiciona novos elementos aos já então tradicionais, mudando um pouco a tonalidade com relação aos anteriores. E talvez o que seja a mudança mais importante: surge uma nova batida de violão, sem que as outras fossem abandonadas. Percebam a diferença de canções como “Rita Jeep” e “Comanche”, mais duras e próximas do chamado samba rock, para “Maria Domingas” e “Palomaris”, visivelmente mais próximas de um samba funk. A proximidade com a Black music, já expressa no título do disco e presente desde o início de sua carreira se estreita ainda mais. É o início da jornada que irá culminar com África Brasil. Muitas vezes o que vemos é uma alternância dos registros em uma mesma música a partir da batida do violão, que garante sua homogeneidade. O compositor está aqui absolutamente livre e no melhor momento de sua carreira. É nessa fase que Jorge arrisca mais, atingindo em muitos momentos um domínio estilístico extraordinário. Esbanjando inclusive lirismo, como em “Que Maravilha”, talvez seu momento lírico mais bem sucedido, desde “Chove Chuva”.

“Ben” (1972) é um desdobramento do disco anterior. Jorge Ben de Black Power cai com tudo no movimento black is beautiful da época. A base harmônica grooveada do disco anterior dá o tom das composições, e Jorge se movimenta com tranqüilidade pela Black music mix de samba com maracatu, segundo suas próprias palavras. Sem abandonar ainda seu lado mais rock, ou a pegada mais blues. Muitas vezes tem-se a impressão de que a base, no geral com duas notas tocadas insistentemente no mesmo groove, serve como ponto de apoio para Jorge desfiar seus discursos, por momentos parecendo quase com falas, radicalizando o processo que tomou forma no disco de 69 (“Bebete vambora”) e que seria explorado genialmente do outro lado do hemisfério por James Brown. É outra forma de aproximação com a ritualística negra presente nos rituais afro-brasileiros. Jorge se torna quase experimental em alguns momentos, levando a canção ao limite do discursivo, sem refrão e parecendo um longo improviso (processo que culminaria no extraordinário “Gil e Jorge”). Em outros, ele funda sua própria psicodelia, como em as “Rosas eram todas amarelas”.
Finalmente, o disco que quase não sai (ninguém acreditava em um disco que versasse todo sobre o tema da alquimia), e que é tido por muitos como a obra-prima de Jorge Ben. Eu particularmente os outros tão bons quanto esse, o que não é pouco. Mas dá pra entender as razões da escolha: o disco não tem momentos ruins e traz mais de um hit. A tábua das esmeraldas” (1974) tem um tema absurdo, mas a música de Jorge também é, apesar de ser um absurdo que todos reconhecemos facilmente. As letras são colagens quase surrealistas, envolvendo latim, alquimistas herméticos e a causa negra, mas ao mesmo tempo absurdamente próximas – falam de futebol e mulher. Traduz o espírito brasileiro com perfeição, materialista e profético, simples e sofisticado, espiritual e canalha. A sonoridade do disco tem uma cara mais leve, com clima de banda, já presente no disco anterior. Ficou mais fácil tocar Jorge Ben. Também tem algo de síntese, estão lá bem mesclados o lado mais doidão do cara, com suas melodias inusitadas e inimitáveis, como em “Hermes Trismegistlos”, em que a letra é um texto do século XIX (tente acompanhar a melodia, é pior que tentar acompanhar João Gilberto). A temática negra, feminina, a aproximação mais direta com o Black (“Brother”, musica gospel em inglês, que mostra o quanto o cara é um melodista extraordinário, capaz de fazer qualquer coisa), o samba rock e o samba funk e até o sambão mais tradicional. Tudo na dose certa, parecendo a coisa mais simples do mundo. Muito do que existe atualmente se explica por esse disco. De fato, assombroso.
“Solta o Pavão” (1975)É definido por Jorge como uma continuação da Tábua. De fato segue a mesma linha e tem o mesmo arranjador Osmar Milito, assim como as referências históricas, as melodias invocadas. Continua o clima de espiritualismo hippie pagodeiro. Ou seja, a fórmula do disco anterior se repete. A banda Admiral Jorge V (cujos integrantes formariam a base de A Cor do Som) aqui ganha um destaque ainda maior, no que seria a gênese do estilo Zé Pretinho, embora aqui feito com criatividade. Algumas melodias soam mais pobres que as do momento anterior, outras no mesmo nível de seus momentos mais geniais. Mas ele continua caminhando livremente pelas mais diversas esferas com competência, e nem de perto se aproxima da pobreza dos discos dos anos 80. Tem a antecipação do África Brasil e o encontro definitivo com James Brown anunciado na magistral oração a Ogun “Jorge de Capadócia”. O espiritualismo fez bem a Jorge Ben, como fez a Tim Maia, por coincidência na mesma época. E tem canções deliciosas, como “Jesualda” e outras mais complexas, como a que fala de “Tomás de Aquino”.
Depois, um disco que não é de inéditas, mas que entra aqui por ser um experimento radical e muito ousado. “Gil e Jorge – Ogum e Xango” (1975) Dois violões, baixo e percussão, em improvisos de até 15 minutos, gravados de uma só vez em uma madrugada. Como dar certo? Simples, junte os dois dos violonistas mais criativos da história da MPB, no melhor momento de suas carreiras. O Gil era aquele que iria gravar o fenomenal “Refavela”, e que tinha acabado de gravar um dos maiores registros ao vivo da MPB, no Tuca. O Jorge Ben era esse que estamos vendo. Ambos tiveram de criar um estilo próprio de tocar para dar conta de seu talento, ambos são inimitáveis e possuem a habilidade raríssima de unir linguagens heterogêneas em uma forma nova e orgânica. Ambos têm uma confessada admiração mútua. Em suma, um encontro de gigantes, uma viagem a qual se embarca com muito prazer. Mas esse é um registro de livre improvisação que não foi feito com intuito comercial, diferente da obra de estúdio desses dois gênios, feita para ser vendida. Portanto, é o disco mais explicitamente “experimental” de suas discografias, sendo por isso mais difícil. E que vale muito a pena. E com esse experimento encerramos a fase áurea de Jorge Ben e da MPB.