quinta-feira, 27 de novembro de 2014

CHIC POP: Coletivo historiográfico de cultura popular

 

 

MUDAMOS!!!

A partir de agora os novos textos serão postados no site do coletivo Chic Pop. Os textos anteriores do blog aos poucos também serão transferidos para lá. Participe!

 

www.chicpop.com.br

 

Escapar Fedendo (04\2007–11\2014)


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É com aperto no coração, mas também com sensação de dever cumprido, que estou (temporariamente?) encerrando as atividades desse blog. Mas não por algum motivo funesto – mesmo em tempos mais conturbados, o blog sempre se manteve na ativa: o escapar, como o samba, agoniza mas não morre – mas para alçar novos e mais altos vôos. Saímos da blogsfera e migramos para o domínio dos sites, ampliando nosso horizonte de possibilidades. Agora o Escapar Fedendo será definitivamente um projeto do coletivo Chic Pop, um conjunto de colaboradores, pesquisadores e curiosos, com interesse comum pela cultura de massas, em suas diversas manifestações.
CHIC POP – Clique aqui
O Chic Pop pretende também ampliar a interação com seus leitores. Desse modo, o espaço para colaboração será muito maior no novo endereço, assim como a possibilidade de compartilhamento, troca, busca, etc. A ideia é criarmos um espaço de reflexão (e curtição) coletivo, a partir de um modelo mais dinâmico.
Ao longo desses sete (já!!) anos, muita coisa boa aconteceu.
*O Falcão em pessoa, nosso Guru, enviou um email de apoio ao nosso blog, logo em seu início. O conteúdo era o seguinte:
“Olá Acauam,
Vi seu Blog –Escapar Fedendo-, muito bom, supimpa, coisa de alta catilogência!
Quanto ao prefácio para o livro, estou à disposição. Mande-me o bicho pra eu fazer o leriado.
Um abraço,
  Falcão
O prefácio em questão era pro Churrasco Grego, livro de poesia que escrevi com o parceiro\irmão José Virgínio. Acabou não rolando o prefácio,  mas o Falcão adicionou o blog a sua página de favoritos. Incrível!
* Acabamos participando ativamente do processo de “redescobrimento” do Di Melo. Isso porque por muito tempo o Escapar foi a página mais acesssada para download do único álbum do soulman pernambucano.
* Algumas postagens de amigos acabaram ganhando grande visibilidade no blog, aumentando a rede Chic Pop.
*Alguns posts renderam muitas discussões, se tornando grandes “sucessos” que até hoje rendem comentários. Um dos principais é o artigo sobre É o tchan, em que faço uma análise semiótica da canção Segura o Tchan. A polêmica ficou por conta da desconfiança dos leitores de que um produto cultural do “baixo-escalão” da música popular brasileira pudesse fornecer conteúdos para uma análise séria. Ou seja, foi uma espécie de prova-de-fogo de todo argumento sustentado pelo blog, desde o início.
* O artigo sobre Zizek proporcionou excelentes discussões e novas amizades, que se extenderam para além do blog.
As postagens mais acessadas aqui nesses sete anos foram as seguintes:
1) Di Melo (1975): 4293 visualisações (download)
2) História da Literatura Ocidental: 4247 visualizações (download)
3) Um olhar sobre “Segura o Tchan”: 3075 visualizações (análise em 3 partes)
4) Uma crítica à graciosa mala Mafalda: 2586 visualizações (análise)
5) Morre o mito: 2127 visualizações (análise Michael Jackson)
6) O que os trapalhões tem a nos ensinar sobre a estrutura do racismo: 1450 visualizações (análise racismo a partir de um episódio dos trapalhões)
Gente de todo mundo passou por aqui por esses anos: Brasil, Estados Unidos, Alemanha, Bélgica, Rússia, Polônia, Ucrânia. Fiz contatos e amizades virtuais interessantíssimas, que permanecem até hoje, e aprendi muito nesse tempo (é até engraçado comparar as primeiras postagens com as mais recentes). Espero continuar com vocês nessa nova fase.
201305070400000000003983 Vem com a gente!











quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Soulcialist

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O parceiro Breno do coletivo Chic Pop montou uma playlist matadoura em homenagem aos 25 anos da queda do muro de Berlin, segundo ele “uma coletânea de jazz e funk vindo do lado de lá dos muros que separaram – e continuam separando – tantas sociedades. Escolhi fazer uma mixtape de músicas pop, porque acredito que mais do que qualquer razão econômica, política, geográfica ou militar, foi a dificuldade de ser pop a maior responsável pela lenta ruína do socialismo no mundo”. A seleção ficou fantástica, outra jóia de arqueologia musical.

Eu não consegui encontrar todas as músicas e nem todos os grupos da playlist na internet, então fiz ligeiras modificações: minha seleção tem três músicas a menos, e tive de mudar algumas poucas músicas, sempre mantendo vivo o “espírito” da coisa, afinal, é de comunismo que estamos falando, então é bom não ficar de brincadeira. E de quebra, a lista serve de contra-narrativa para o serviço de desinformação capitalista que temos hoje, mostrando que o comunismo foi muito além de Cuba, Vietnan e URSS e não era tão inimiga da criatividade e liberdade estética, ao menos não de forma tão chapada quanto a mídia corporativista faz supor. Pode tirar a bandeira vermelha do armário que aqui nós adoramos uma boa ditadura feminazi gayzista bolivariana. Segura essa pedrada (vermelha):

01 – Big Band Katowice – Madrox (Polônia)
02 – Theo Schuman Combo – Derby (RDA)
03 – Los 5-U-4 – Baila, Ven y Baila (Cuba)
04 – Phương Tâm – Đêm Huyền Diệu (Vietnã)
05 – Aura Urziceanu – Jacul Tambalelor (Romênia)
06 – Prague Big Band – Portrait (Checoslováquia)
07 – Krzyszstof Sadowski – Ten Nasz (Polônia)
08 – Zalatnay Sarolta – Hadd Mondjam El (Hungria)
09 – Orchestre Poly-Rythmo de Cotonou – Djanfa Magni (Benin)
10 – Grupo Los Yoyi – El Fino (Cuba)
11 – Гая - Аман яр (Geórgia)
12 – Tian Niu - 恬妞(China)
13 – Modo – Delvitais Vilnis (Letônia)
14 – Miša Blam – Gorila (Yugoslávia)
15 – Carol Kim - Nỗi Buồn Con Gái (Vietnã)
16 -
Irakere – Aguaniele Bonco (Cuba)
17 –
Walter Kubiczeck – Heiße Spur (RDA)
18 – Ансамбль Мелодия под руководством Георгия Гараняна – Ленкорань (URSS)
19 – Bonga – Ghinawa (Angola)
20 – Collage –  Mets Neidude Vahel (Estônia)
21 – Vagif Mustafazadeh – Yollar (Arzebaijão)

22 – Johnny Raducanu – Balada (Romênia)

terça-feira, 18 de novembro de 2014

A visão demoníaca de Salieri


amadeussalieriNos momentos iniciais de Amadeus (Milos Forman, 1984), acompanhamos o maestro Antonio Salieri instaurado em um manicômio para onde foi levado após uma tentativa frustrada de suicídio. Nele, conversa com um jovem padre que pretende absolvê-lo de seus pecados. Em dado momento, o maestro toca para o padre algumas melodias de sua autoria, mas o jovem rapaz, apiedado, não reconhece nenhuma. A última peça entoada por Salieri, no entanto, é alegremente reconhecida. É de Mozart.
É bastante evidente que o foco principal do filme não é a tragetória do garoto prodígio Mozart, mas o próprio olhar devoto de Antonio Salieri, o anjo caído. A perversidade aqui, e que gera o potencial dramático da narração, é que o primado do ponto de vista não é um privilégio, e sim parte de sua danação, pois Salieri está condenado a existir exclusivamente a partir da sombra do gênio, de quem era o principal admirador. Como Judas, Salieri é o Outro que só existe a partir daquilo que “negou”, ou antes, sua negação participa ativamente da construção positiva do mito. O filme é antes de tudo a própria constituição da punição de Salieri -  cujo olhar atormentado terá grande poder narrativo – como se o verdadeiro castigo do Cão fosse a obrigação de perpetuar a história e a glória de Cristo. Pode-se dizer que, em linhas gerais, Amadeus é uma história sobre Deus narrada do ponto de vista do Diabo em pessoa. Ou ainda, um filme sobre Cristo narrado da perspectiva de Judas. Sua força depende do grau de radicalidade desse tabu, um dos maiores do reino cristão, o mais polêmico evangelho apócrifo.
Mas no que essa associação entre Salieri e '”aquele-que-não-se-ri” se sustenta, em termos narrativos? A referência óbvia fica por conta do próprio Salieri, que desde o início associa Mozart ao todo-poderoso, para explicitamente o recusar. A verossimilhança desse reconhecimento (porque apenas Salieri é capaz de compreender a centelha divina em Mozart?) é construída cinematograficamente por um bem estruturado conjunto de “deslocamentos” e simetrias. Salieri é um músico devotado – tal qual Mozart -  que entrega a si e a sua arte (em verdade, um só) completamente a Deus; por isso mesmo, torna-se dotado do privilégio\maldição de reconhecer o trabalho do criador na terra, ou melhor, na música, seu campo de devoção. Além disso, tal qual Mozart, o maestro italiano também está deslocado em relação a seu contexto, sem pertencer aquela classe ou aquele país. Salieri é um elemento de transição entre dois mundos, que sai do “inferno” da vida burguesa medíocre para o “paraíso” da aristocracia vazia. Até seu encontro traumático com a “Coisa” divina, seu sucesso mundano (como compositor da corte) confirma a presença de Deus em si e preenche sua vida de significado – como deve ser, aliás, em uma sociedade hierarquizada e estamental. Contudo, a emergência de Mozart o força ao reconhecimento de um paradoxo: a inadequação entre a aparência (sua vida de contenção) e a realidade (o desregramento milagroso de Mozart) de Deus.
O que confirma a transformação demoníaca de Salieri, a configuração de sua imagem de anjo caído, é a saída que ele encontra para esse “paradoxo” divino. A solução, “celestial” do dilema, uma saída burguesa-cristã, seria a recusa da falsidade do mundo, assumindo que a verdade divina está em oposição a norma aritocrática, ao qual ele dedicou sua vida. Nesse caso, Salieri se colocaria ao lado de Mozart contra a estreiteza de visão de sua época, aceitando que, no limite, a morte de seu pai foi em vão – pois suas palavras “não serás músico” não eram uma proibição, e sim uma simples constatação. Um ato de pura devoção, contra sua própria vida. A solução “aristocrática-ateista”, por sua vez, (representada pelos demais membros da corte) seria a de ignorar o divino em Mozart e tratá-lo como um jovem arrogante presunçoso, que constrói obras com “notas demais”, etc. Uma solução bem mais “realista” e pobre em termos narrativos. Salieri, ao contrário dos provincianos da corte, sabe que a quantidade de notas é perfeita e que aquele é um milagre de Deus, como ele até então acreditava ser. Por isso sua solução é “demoníaca”: ele reconhece Deus, reconhece que aquilo que o havia tomado não era o divino, mas um artesanato muito mais mundano (para o qual é preciso ter talento, sem dúvida, mas pré sujeito moderno, comprometido com o mais prosaico) e deliberadamente se propõe a colocar-se contra o ponto de vista que ele ama e julga verdadeiro. Um gesto de amor profundo, e não de desprezo – e o filme retrata muito bem o caráter destrutivo desse amor\ódio. Salieri ama tão profundamente a Deus que não suporta a ideia de estar afastado dele. Por isso, torna-se deliberadamente um representante do Inferno. Atacar o seu amor é sua forma de mostrar a mais profunda devoção: já que Deus não participa efetivamente de seu ser, Salieri se dedica a fazer com que ele o preencha negativamente, tornando-se Lucifer.
(é claro que existe aquela inveja bem mundana por um moleque qualquer que é mais genial do que ele próprio que abdicou de todas as paixões em nome de uma só Verdade. Mas o conteúdo desse sentimento é muito mais trágico que mesquinho -  e a trilha sonora reforça essa tragicidade muito bem – porque ligado a pulsões muito mais profundas, que o acabam por consumir. Salieri associou sua auto-realização à morte do pai, pela qual sente-se responsável (ele pediu um milagre a Deus para poder tornar-se músico, e seu pai, que era contra, engasga-se no almoço), substituindo-o por um Pai mais adequado e coincidente com seus desejos, no caso Deus. Contudo, quando o encontro com Mozart re-encena a frustração original (não ser O músico, não portar a verdade da música em si), a sua solução é repor exatamente a mesma fixação não resolvida: matar o Pai, no caso, Deus. O trágico é que se a primeira morte paterna colocou-o para si ao lado da verdade (a música) que o permite construir sua vida, essa segunda deliberadamente o afasta e paralisa – ele “morre” junto com Mozart, pois sua existência se paralisa ao assumir para si a condição de sombra, ou de “Santo patrono da mediocridade”. Como se houvesse um “retorno” da primeira interdição paterna, que o impede de ser verdadeiramente músico e participar da divindade. O pai funciona aqui como sintoma dessa interdição fundamental do desejo: “eu não posso ser músico” se converte em “meu pai não permite que eu seja músico”. Desse modo, a morte do pai funciona como o mecanismo que o permite superar essa insuficiência originária. Entretanto, o Real dessa incapacidade retorna (a verdade da música está ao lado de Mozart, não dele), tornando a segunda morte um ato desesperado – inevitável passage à l'acte - de impotência. Para fugir do confronto com seu próprio vazio, Salieri substitui seu pai real pelo próprio Deus. Revelado o truque, decide matar Deus, o que o devolve para o vazio inicial).   
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As relações de simetria entre as personagens também são perceptíveis em outros pontos. Mozart não consegue se livrar do fantasma do pai e, por isso, não pode crescer (a infantilização faz parte de sua genialidade). Salieri, por sua vez, perdeu o pai logo cedo, acreditando ser resultado de um acordo feito com Deus por oração -  a morte do pai como garantia da presença de Deus em si. Assim como a perdição de Mozart é nunca ser capaz de livrar-se do pai – incapaz de superar a castração – a de Salieri consiste em assassinar continuamente o próprio pai. Mozart submete-se ao pai, e por isso não se submete as normas sociais - só reconhece o poder paterno (o Real que retorna como trauma aqui é que a sociedade não aceita essa condição secundária, que para Mozart é natural). Salieri mata o pai para melhor se submeter as normas sociais. A aparição de Mozart funciona para ele como o confronto com aquilo que em si escapa da adequação social que ele almejava  - ou seja, com a verdade expressa na proibição do pai (“não serás músico”). O que ele enfim reconhece no espelho do Outro é que Deus está justamente naquilo que por ele foi sacrificado, pois ao passo que ele é a encarnação perfeita da norma, Mozart é o próprio Acontecimento que ressignifica o todo e instaura uma outra normatividade. Ao sacrificar sua vida em nome de sua paixão (devoção), Salieri sacrificou a própria verdade de sua paixão.
O que lhe resta então é dedicar sua vida a esse vazio, dando existência a Deus em si a partir de seu enfrentamento. Sua “salvação” é fazer de Deus um fantasma, e tornar esse espectro a razão negativa de sua existência. A perversidade aqui é que sua única forma de aproximar-se de Deus (negativamente) é também sua maior punição – o reconhecimento de que ele jamais irá encontrar-se com Deus. Não por acaso, o grande filme sobre a vida de Salieri é um filme sobre Mozart. Só conhecemos Salieri porque ele participa, em negativo, da existência de Mozart. Essa é sua punição: só existir a partir daquele que ofuscou sua existência para sempre. A forma narrativa dá consistência estética ao tormento da personagem, secundário mesmo quando é um narrador em primeira pessoa.
Por isso a crítica padrão ao filme  - a de que ele é ruim porque coloca em termos individuais (o “gênio”) aquilo que seria uma questão social (norma aristocrática x subjetividade burguesa emergente) - não é suficiente para quebrar seu encanto. Primeiro porque o aspecto social é, sim, explorado no filme em diversos níveis –o dinheiro é a grande perdição de Mozart. Sua força, entretanto, consiste em não ceder à facilidade do tema da mera mesquinharia de Salieri, optanto por mostrar que no fim das contas ele estaria tentando tirar da jogada um concorrente muito mais talentoso, que prejudicaria sua carreira, etc. Para o elemento trágico funcionar, precisamos acreditar na verdade de sua devoção, ou seja, acreditar na fantasia de que ele está confrontando não um “colega” de profissão, mas o próprio Deus, aquilo que ele mais ama no mundo, e que dá sentido para sua existência. Que dizer, a força estética do ponto de vista está no caráter alegórico das personagens. Acompanhamos nada mais, nada menos, que uma disputa entre Deus e o Canhoto em pessoa, ou entre um santo e um satanista, contado da perspectiva de Satanás, que perdeu a batalha. A história de Cristo da perspectiva atormentada de Lucifer, que destrói sua obra como um gesto de amor e devoção.  Não que o filme endosse a perspectiva demoníaca: como vimos, a grande perversidade da história é que a narrativa que acompanhamos é a forma mesmo da derrota do Demo, sua punição - não por acaso, sugerida por um padre. O que talvez o torne mais herético do que se imagina, tal como o evangelho de Judas Iscariotes, ao sugerir que a traição de Judas foi um gesto, talvez o mais radical, do mais puro amor.
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quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Titanic ou o desastre como estratégia divina para Rose não se tornar uma dona de casa pobre

 

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"Não considero Titanic nem uma história de amor. Jack está morrendo congelado, e o que a Rose faz? Ela grita: eu nunca vou deixar você! E enquanto isso, ela está empurrando o cara pro fundo do mar. E as últimas palavras de Jack não são as de um amante, mas as de uma padre, um conselheiro moral. "Seja honesta, faça isso e aquilo". É só uma história reacionária sobre uma menina rica e mimada em crise de identidade adolescente que, como uma vampira, explora um rapaz de classe baixa para restaurar o seu ego. Assim que ele cumpre seu papel, pode morrer congelado. É o mito colonialista. Nós somos o Ocidente desenvolvido e moderno, mas que, infelizmente, se esqueceu dos valores verdadeiros que estão nos outros, pobres ou bárbaros. Nós sugamos o sangue delas e depois, tchau. O Iceberg nesse contexto surge para salvar o mito ideológico de amor que ela cria, que evidentemente seria destruído na primeira semana de casados". (ZIZEK)

Revendo Titanic dá pra entender porque Zizek considera James Cameron um dos maiores ideólogos de Hollywood hoje. Vejamos o caminho de seus argumentos. De fato, num primeiro momento parece que o filme traça um painel realista - quase marxista - de denúncia da crueldade das classes abastadas, posicionando-se contra o egoísmo dos ricos e a favor da vitalidade dos mais pobre. Mas é precisamente esse o grande salto ideológico do filme: ele não é, de forma alguma, “realista”, seu foco não é recontar a história tal e qual ela verdadeiramente aconteceu. Na verdade, os fatos estão a serviço de uma grande fábula conservadora, cuja moral é que por mais que os ricos sejam cruéis, desalmados, egoístas, etc., romper com essa desigualdade é atentar contra a própria ordem da natureza, o que será devidamente punido com um grande e fálico Iceberg. Todos sabem disso, sobretudo Jack, que se deixa morrer, e Rose, que deixa ele afundar pra não virar dona de casa. O deus de Cameron é o oposto do Deus dos Racionais - tem simpatia pela miséria, mas protege os poderosos a todo custo. Assim como qualquer filme-catástrofe hollywodiano, todo poder devastador da natureza tem por função reestabelecer o equilíbrio conservador da sociedade, seja o casal heterosexual branco de classe média, ou as classes poderosas com seus líderes, pelos quais o povo deve se sacrificar. A grande obscenidade do filme não está no egoísmo dos mais ricos, e sim no fato de que a própria natureza o legitima. É a mesmíssima lógica presente nos romances de formação pró colonizador, como Iracema, de José de Alencar. A simpatia pela pureza e beleza natural da índia só se justifica na medida em que ela “se deixa” colonizar, ou melhor, na medida em que essa colonização já aconteceu, e o Outro não oferece risco algum. Caso surja algum indício de resistência, os mais fracos se convertem em bárbaros selvagens, terroristas, bandidos, etc. A imagem positiva e não conflituosa dos pobres funciona como um aprisionamento na fantasia dos ricos, e o que legitima o seu “sacrifício”.

Não devemos nos iludir: todos os mecanismos “realistas” do filme estão a serviço dessa fábula conservadora. Um dos mais sintomáticos é o seu final, quando Jack não consegue subir na tábua em que Rose estava. James Cameron deixa claro que ele não sobe porque o peso não aguentaria os dois, ou seja, a justificativa é realista. Mas o não-dito fantasioso desse realismo consiste na tranquilidade com que Rose aceita o sacrifício de seu grande amor, inclusive dando uma mãozinha e empurrando-o para baixo. Fica claro que a razão do sacrifício dela ao amor não ter ido até as últimas consequências (ter morrido com Jack, ou tentado ajudá-lo até a morte) é outra. Ela precisa que Jack morra. Só a morte dele vai fazer com que aquele casinho inconsequente de verão se transforme no grande mito do Amor Eterno, que justifica a tragédia (afinal, os ricos também perderam algo importante ali, também sofreram). O romance dos dois serve como metonímia para o que acontece com todos os ricos no filme. São todos indivíduos soberbos, que levam uma vida vazia e sem sentido, ocupados com a satisfação imediata, etc. O desastre divino, contudo, não vem para puní-los, e sim para que eles, ao menos uma vez na vida, tenham algum tipo de “experiência”. Nada melhor para isso do que uma verdadeira tragédia em que aconteçam milhares de mortes – dos mais pobres, humildes e sem pecado, de preferência. O tempo todo os pobres são manipulados no filme para dar "sentido" ao vazio das elites, e Rose é a pior de todas, por ser bem intencionada. É nesse momento que a crítica à soberba dos ricos (que de fato existe nos filmes do James Cameron, e é um impulso - ainda que ligeiro - de solidariedade com os de baixo) é pervertida por um mecanismo de produção de satisfação para as elites apoiado na descartabilidade dos de baixo.

(Diga-se de passagem, Avatar tem um mecanismo ideológico parecido. La fidelidad de Avatar a la vieja fórmula para formar una pareja, su plena confianza en la fantasía, y su historia del hombre blanco desposando a la princesa aborigen y así convirtiéndose en rey, hacen de ella una película ideológicamente conservadora, de vieja escuela. El brillo técnico sirve para maquillar este conservadurismo básico. Entre sus temas políticamente correctos (el hombre blanco honesto acompañando a los aborígenes en su lucha contra el "complejo militar-industrial" del invasor imperialista) podemos encontrar fácilmente una serie de motivos brutalmente racistas: un paria parapléjico de la tierra es suficiente para tomar la mano de la hermosa princesa local, y ayudar a los nativos a ganar su batalla decisiva. La película nos enseña que la única opción que tienen los aborígenes es elegir entre ser víctimas de la realidad imperialista, o desempeñar su papel asignado en las fantasías del hombre blanco. […] El film nos permite practicar una típica división ideológica: simpatizar con los aborígenes idealizados mientras se desestima su lucha real” (ZIZEK)).

Nesse sentido, o Iceberg é um símbolo fálico muito bem construído, porque catalisa os dois movimentos. A princípio, ele aparece enquanto punição divina da soberba dos ricos, que pressionam para chegar mais depressa em casa, limitam a quantidade de pessoas nos botes apenas pra poder ter mais espaço livre, zombam de deus, etc. O Iceberg funciona para dar uma lição de humildade a esses homens. Entretanto, todos (ou quase) os sobreviventes são ricos: o castigo recai sobre os pobres, que não tem nada com a soberba e representava até então o pólo positivo da narrativa. Porque acontece essa passagem? Apenas a primeira camada ideológica serve de acusação dos ricos (“a soberba dos ricos destróem o mundo”). Contudo, o Iceberg funciona também em um instrumento de realização dos impulsos sádicos obscenos dos ricos, e que é matriz de sua soberba - o desejo semi confessado de que todos os pobres morram. E de quebra, a vida dos ricos deixa de ser pura vacuidade, pois agora eles não são mais meros proprietários imbecis, mas os sobreviventes de uma das maiores tragédias da humanidade ou - o que é ainda pior - aquela que viveu seu único Grande Amor. O interessante do filme é notar como que a escolha da perspectiva de colocar os pobres como o pólo positivo não tem forças para se sustentar até o fim, convertendo-se no oposto. Os pobres são o que de melhor existe no mundo e, por isso mesmo, são sacrificados em nome da manutenção da ordem - o mesmo princípio do sacrifício da virgem. O mais perverso é que nossa perspectiva é a mesma da Rose, que ama aquele belo rapaz e que, portanto, não pode estar implicada em sua morte.

Ao final, as duas falas mais significativas do filme são "eu sou o rei do mundo", pois toda a "vida" do filme se deve, de fato, a Jack, e "no final eu sempre venço", que o noivo-vilão da Rose fala pro Jack em certo momento. Ele é um dos sobreviventes do Titanic. Jack é daqueles que não existem...  O mundo faz sentido porque os pobres são descartáveis, o que é uma pena, afinal é tudo tão alegre e puro. Mas é melhor que seja assim.

Vertigo, ou a fantasia da realidade

 
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Em Um Corpo que Cai (Vertigo), o mestre Hitchcock está em sua melhor forma. Acredito que seu maior talento consiste em multiplicar camadas de significados sem que nenhuma delas rompa completamente umas com as outras, truncando o fluxo da narrativa. Vertigo é tudo o que Cristopher Nolan queria fazer em seu ambicioso A Origem, mas que foi perdido em um formalismo exibicionista. Aliás, revendo Metrópolis, de Fritz Lang, percebi que A Origem cai num problema similar ao proposto por aquele filme: como multiplicar camadas de significado sem fazer com que o público se perca completamente nas associações? A solução de ambos foi apelar para o didatismo, o que não tira a força de Metrópolis, especialmente por seu caráter alegórico que sempre direciona o sentido para outro lugar, mas empobrece muito a narrativa de Nolan, prendendo o espectador à forma e ao brilhantismo egocêntrico do diretor. Foi o preço pago pela inovação – as camadas de significado vão sendo inseridas bruscamente ao longo do filme por meio de cortes radicais que inserem novas camadas narrativas, e não uma multiplicidade de sentidos presentes desde o início. É o que Leonardo Di Caprio deixa bem claro, uma ideia bem simples (no fundo, uma questão de cunho comercial) que precisa se tornar um grande aparato hollywoodiano, o filme que assistimos. No frigir dos ovos, entretanto, a forma se sobressai e atoniza o conteúdo.

Desde a tomada inicial de Vertigo, Hitchcock deixa claro que seu assunto vai para além de (porém sem deixar também de ser) um simples caso de mistério. Ainda nos créditos iniciais a câmera focaliza o belo rosto de Kin Novak, para na sequência fechar em close primeiro na boca, e depois nos olhos da atriz. Está dado o mote da discussão que permeia todo o filme. Áudio-visual, o próprio cinema, o processo de (re)constituição da história para o espectador. O crítico Ismail Xavier costuma enfatizar bastante essa dimensão do cinema de Hitchcock, a genialidade com que o cineasta coloca em cena um terceiro elemento, o próprio expectador, ou melhor, seu olhar – outro clássico nessa linha é Janela Indiscreta, em que o cineasta coloca como protagonista (de novo James Stewart, espécie de Ivo Holanda inglês, aquele sujeito absolutamente comum) um detetive temporariamente impossibilitado de andar, e que por isso reconstrói um crime a partir de pistas tiradas do processo de observação das janelas dos apartamentos vizinhos. Dessa forma, seus filmes acabam por ser também discussões sobre seu próprio processo de constituição, requisito que os torna exemplares (ou quase) do cinema moderno, suscitando a admiração declarada de cineastas como Truffault.

No caso de Um corpo que cai, é clara a relação entre o detetive vivido por James Stewart e o espectador. O que acompanhamos no filme é a construção de uma fantasia, uma ficção feita para apanhar\cativar o detetive\espectador. No encontro inicial entre o detetive e o suposto marido, este constrói uma história que é uma total farsa, completamente absurda e inverossímil, que tornaria o filme mais próximo de um terror lado B mal feito. O detetive, como o espectador, a princípio não cai na lorota, mas por fim aceita a proposta que vai ser sua perdição: ao invés de negar completamente desde o início, aceita dar uma observada de leve na moça (igual aqueles filmes em que a gente diz, vou assistir só um pedacinho. Aberta essa concessão, tudo está perdido, e lá se vão hora e meia, no mínimo). No momento em que ele aceita o contrato, tudo se perde, e acompanharemos com ele a transformação daquela ficção inverossímil em verdade cinematográfica, com direito a história de amor romântica com macho protetor e fêmea inocente perdida. A genialidade do filme consiste, entre outras coisas, em não abrir mão por nenhum momento de seu caráter de história absurda - que fica ainda mais evidente pelo contraste com a rudeza da segunda parte, em que a moça é uma descarada (a típica mulher moderna para o cineasta, um tipo que ele detesta e sempre faz questão de desmascarar ou matar – veja Os Pássaros, Psicose, etc.) e o homem é um ser completamente em frangalhos. Acompanhamos a moça por cenários fantásticos típicos, como cemitérios, igrejas abandonadas, museus antigos, etc. A mensagem transmitida é bastante clara: vou construir para o detetive\espectador um cenário de novela romântica do século passado, só que deixando bem claro que não estamos no século passado, e fazer com que ambos embarquem completamente nessa fantasia e a sintam como realidade. Melhor ainda, vou nitidamente construir essa realidade na frente de seus olhos, e ainda assim você vai cair como um patinho. Alguém aí duvidou da morte da moça? Tanto o filme é sobre a construção desse olhar que o primeiro contato efetivo entre o detetive e a esposa só se dá depois de um longo tempo. Antes acompanhamos diversas sequências sem diálogo, em que a história é construída pelo diretor\marido para o detetive\expectador, até atingir seu clímax, quando Madeleine se atira ao rio, e seu salvador pronta e pateticamente corre para salvá-la. Sim, Hitchcock está nos tirando e manipulando o tempo todo nesse filme, desde o início.

Uma das cenas do filme é bastante paradigmática nesse sentido, sendo um dos marcos da história do cinema (Cristopher Nolan deveria ter mesmo feito um intensivão Hitchcock, e estudar essa cena por meses antes de se arriscar com A Origem, toda a idéia de multiplicação de camadas narrativas está contida nessa única cena), por conta da multiplicidade quase infinita de camadas de representação ali condensadas. É aquela em que o detetive segue Madeleine até o museu, e encontra a moça a olhar fixamente para um quadro, cujo figurino é bem próximo daquele que ela está usando no momento. Caso nos detivermos com atenção sobre aquilo que está sendo representado, é absolutamente impressionante a quantidade de multiplicação de olhares presentes na constituição daquela fantasia: nós espectadores estamos observando o detetive que está observando uma mulher que finge (representa) ser Madeleine que pensa ser uma mulher do século passado que observa um quadro de si que por sua vez já é uma representação de alguém. Ao fim dessa quantidade absurda de mediações, o que temos não é a verdade, mas outra representação, o quadro, onde tudo começa\termina, nos devolvendo o olhar e (re)começando o jogo infinito de espelhamentos. O cinema e a vida como processo de mediações infinitas é a raiz do mistério encenado pelo mestre do suspense e do cinema.

Mas o filme ainda vai além – estamos apenas na metade da história – colocando outras questões, como se não bastasse a reflexão feita sobre o olhar cinematográfico em uma nada convencional história de suspense. Além de acompanhamos a exposição do processo de construção dessa história estapafúrdia, fantasiosa, na qual embarcamos na maior boa vontade junto com o pobre detetive, o filme coloca em discussão ainda um segundo aspecto: o que acontece quando essa ficção claramente construída (ou seja, visivelmente artificial) nos é tirada abruptamente? A resposta é dada por aquela cena que mais parece uma viagem de ácido - outra ousadia técnica do filme, que utiliza inclusive animação – depois do julgamento do reino masculino do qual o detetive é banido por incapacidade (o desmoronamento da ficção do macho romântico protetor). É a perda da fantasia – e isso é fundamental - e não a perda da realidade, que causa o Trauma na personagem. O trauma é o fim abrupto da fantasia, a emergência do Real. A mensagem do filme não é, portanto, o lugar comum de que o cinema é uma ilusão onde o espectador é levado a um simples processo de fuga da realidade, etc. Muito mais complexo que isso, a ideia que se sobressai é a de que essa fantasia (incluindo a cinematográfica) é uma componente estrutural fundamental de nossa realidade, que configura e dá forma a nossos desejos. A rigor não existe realidade sem o suporte da fantasia. O oposto da fantasia não é a realidade, e sim o Real, traumático.

Na sequência do filme, pós-trauma, acompanhamos o distúrbio psicológico do detetive, que teve sua vida arrasada, ficando por um longo período internado. Mas mesmo após receber alta, percebemos que ele não consegue se recuperar completamente, vivendo sempre a procura de tudo que possa lembrar Madeleine, sem conseguir dar um rumo para sua própria vida, e muito menos descobrir alguma verdade por detrás dos acontecimentos passados. Acompanhamos uma subjetividade estraçalhada, não um homem preso num mundo de fantasias, mas (o que é muito pior) um homem sem fantasias. É aí que Hitchcock opera uma inversão genial no gênero policial - em seus grandes filmes ele sempre insere um elemento que rompe com o gênero em algum nível – ao fazer com que o protagonista descubra a verdade e se recupere do trauma não indo atrás de vestígios e buscando pistas que permitirão a dedução lógica da verdade (modelo policial clássico), mas fazendo o caminho inverso, mergulhando outra vez na fantasia, reconstruindo-a como ela foi, enquanto farsa. É só quando ele consegue reconstruir Madeleine tal qual ela era para seu imaginário - o que implica em um processo de violência masculina e de submissão da mulher a esse imaginário, pois o olhar que se constrói no filme é masculino, e culmina com a negação mais absoluta da mulher, sua morte, no momento em que encarna por completo o papel que a nega e constitui - é que pode finalmente superar seu trauma, conseguindo desvendar a verdade, com resultados também trágicos, diga-se de passagem, especialmente para a mulher. O filme trata do processo de construção da fantasia, e da fantasia cinematográfica pelo olhar, mas trata também do grau de realidade dessa fantasia, seu caráter de estruturação simbólica do mundo. Como mostra a cena do museu, nada existe para além da multiplicação infinita dos olhares e das representações, sendo a verdade a própria constituição desse processo. A realidade enquanto construção ficcional, ideológica, e o grau de realidade dessa ficção. O cinema e a Indústria Cultural não como máquinas produtoras de fantasias, e sim de realidades.

É pela complexidade das questões que suscita, sem perder seu caráter de entretenimento dos bons, que Vertigo é considerado um dos melhores filmes da história.

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Volta ao mundo em 23 Grooves

O parceiro Breno, verdadeiro arqueólogo musical, montou uma playlist sensacional com groove, funk, aforbeat e outras pegadas matadoras pelo mundo afora. São 23 os países contemplados. É só ligar o som e aproveitar o resultado da pesquisa. Com o corpo. Free your mind and your ass will follow 
Volta ao Mundo em 23 Grooves by Setlist on Grooveshark
1 - Alemanha – Ambros Seelos – Mabusso
2 – Brasil – Banda Copa 7 no Samba
3 – Cuba – Irakere – Bacalao con Pan















4 – Dinamarca – Max Leth – Taboo
5 – Etiópia – Mulatu Astatke – Yegelle Tezeta
6 – Finlândia – Carita Holmström – Näät Vain Silmin













7 – Gana – Oscar Sulley – Olufeme
8 – Hungria – Kovács Kati – Add már Uram az esőt
9 – Irã – Mohammad Nouri – Biya Bar-e Safar Bandim














10 – Japão – Minoru Muraoka – Bamboo
11 – Lituânia – Mirdza Zivere – Zozefino
12 – Mali – Doumbia Moussa – Keleya














13 – Noruega – Dyp Av Nade – That’s Why
14 – Otomana – Apaşlar – Gilgamis
15 – Polônia – ABC – You Want Too Much















16 – Quênia - Mombasa - African Hustle
17 – Rússia – Кругозор – 1978
18 – Suécia – EGBA Takdroop



 









19 – Tailândia – The Petch Pin Thong Band – Soul Lam Plearn
20 – Uruguai – Rubén Rada – Negro
21 – Vietnã – Kim Sun – Cai Tram Em Cai
22 – Xhosa – Miriam Makeba – Samba
23 - Zâmbia – Rikki Ililong – The Hole