quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

FUTEBOL: A marca brasileira.

Nosso veneno. Nosso remédio. Onde somos ao memos tempo gigantes e crianças. Sonho de grandeza (país do futuro) concretizado, e exposição mundial do fracasso (pela incapacidade de ser integralmente aquilo que no campo se promete\cumpre).
Genealogia da contribuição brasileira.
I) O drible.

O drible europeu clássico. Sempre pra frente, vetorial. Um instrumento a mais para objetivamente alcançar o gol. No caso do Cruyff, o mágico é que o óbvio sempre acontece, por mais que os marcadores saibam que ele vai, mais uma vez, tentar o óbvio. Corte e arrancada, enquanto tiver campo, ele vai correr. Até o gol.
O drible brasileiro clássico (ou mítico). A finta. Finge que vai e não vai. Corre pro gol. Ou não. Muda de idéia. Usa e abusa do outro, tornado mais um João. Humilha e depois dá tapinha nas costas. A arte da trapaça. Capoeira. Malandragem. De instrumento para chegar ao gol, o drible ganha sentido em si mesmo.
Copa de 58, estréia do Brasil contra a Rússia que, segundo se comentava na época, havia conseguido transpor para o campo de jogo de futebol as novas capacidades tecnológicas que haviam forjado o Sputinik. Os maiores 3 minutos da história do futebol, na narrativa de Rui Castro:
“Monsieur Gigue, gendarme nas horas vagas, ordena o começo da partida. Didi centra rápido para a direita: 15 segundos de jogo. Garrincha escora a bola com o peito do pé: 20 segundos. Kuznetzov parte sobre ele. Garrincha faz que vai para a esquerda, não vai, sai pela direita. Kuznetzov cai e fica sendo o primeiro joão da Copa do Mundo: 25 segundos. Garrincha dá outro drible em Kuznetzov: 27 segundos. Mais outro: 30 segundos. Outro. Todo o estádio levanta-se. Kuznetzov está sentado, espantado: 32 segundos. Garrincha parte para a linha de fundo. Kuznetzov arremete outra vez, agora ajudado por Voinov e Krijveski: 34 segundos. Garrincha faz assim com a perna. Puxa a bola pra cá, para lá e sai de novo pela direita. Os tres russos estão esparramados pela grama. Voinov com o assento empinado para o céu. O estádio estoura de riso: 38 segundos. Garrincha chuta violentamente, cruzado, sem ângulo. A bola explode no poste esquerdo da baliza de Yashin e sai pela linha de fundo: 40 segundos. A platéia delira. Garrincha volta para o meio do campo, sempre desengonçado. Agora é aplaudido.
A torcida fica de pé outra vez. Garrincha avança com a bola. João Kuznetzov cai novamente. Didi pede a bola: 45 segundos. Chuta de curva, com a parte de dentro do pé. A bola faz a volta ao lado de Igor Netto e cai nos pés de Pelé. Pelé da a Vavá: 48 segundos. Vava a Didi, a Garrincha, outra vez a Pelé, Pelé chuta, a bola bate no travessão e sobe: 55 segundos. O ritmo do time é alucinante. É a cadência de Garrincha. Yashin tem a camisa empapada de suor, como se jogasse a várias horas. A avalanche continua. Segundo após segundo, Garrincha dizima os russos. A histeria domina o estádio. E a explosão vem com o gol de Vavá, exatamente aos três minutos”.


Diz a lenda que essa cara, num desses jogos que viram lenda, já quase dentro da área, driblou um zagueiro, outro, mais um, o goleiro, e quando o gol estava livre ele voltou para driblar outro João.
Armando Nogueira:
"Garrincha pega a bola e pára; o marcador sabe que ele vai sair pela direira; seu Mané mostra mais uma vez que vai sair pela direita; a essa altura a convicção do marcador é granítica: ele vai sair pela direita; Garrincha parte e sai pela direita. Um murmúrio de espanto percorre o estádio: o esperado aconteceu, o antônimo do drible aconteceu".
Paulo Mendes Campos:
"às vezes o adversário retarda o mais possível a entrada em cima dele, na improvável esperança duma oportunidade melhor. Garrincha avança um pouco, o adversário recua. Que faz então? Tenta o marcador, oferecendo-lhe um pouco da bola, adiantando esta a um ponto suficiente para encher de cobiça o pobre João. João parte para a bola de acordo com o princípio de Nenê Prancha: como quem parte para um prato de comida. Seu Mané então sai pela direita."
Humilhação pública, prazer infantil, tipo Chaves, crueldade masoquista, beleza. Nossa cordial contribuição ao mundo da bola.