Eita que o texto do Ed Motta tá rendendo discussão. Assim que é bom! Primeiro foi o nosso amigo Boni, nos comentários, dizendo que a análise até que era boa, mas não no caso do Ed Motta, porque o cara não faz sucesso por uma razão simples... o som é chato. Não deixa de ser verdade, mas eu queria outras explicações...
Na sequência, recebi um email muito bom de um amigo que sabe tudo, fazendo outros questionamentos bem interessantes. Tanto que eu tive que escrever uma resposta, e pedi pra ele deixar eu publicar nosso "debate". Acho que ficou bem bacana, e que levanta alguns problemas interessantes. Segue então a resposta do camarada, e na sequencia eu mando a minha.
Pô, mano. Como sempre, impecável seu texto. Muito boa a interpretação formal da estrutura da melodia do Ed Motta. Faz todo sentido.
Só acho que discordo quanto às consequências que vc tira do teu achado analítico.
Vou tentar explicar.
O principal é que eu acho que o processo histórico-formal da MPB desde a bossa até agora levou a "melodia americana" a se tornar, aos poucos, algo sentido como natural por aqui, o que permitira, muito bem, a um Ed Motta, ser compositor reconhecido como nosso (brasileiro), só que hoje em dia, não na década de 80.
Ainda assim, de certa forma o Ed Motta emplacou, sim."Manuel", "Fora da lei" são músicas que fazem sucesso na balada e nas rodinhas de violão. Acontece que esse reconhecimento não é a mesma coisa que o sentimento de que o cara diz algo sobre a vida por aqui. E sim, um reconhecimento de que ele criou uma forma "diferente" de fazer música no Brasil. Ou seja, o de que fez "avanços", mercadologicamente, na vida musical no país.
Seguindo. O que ele fazia na década de 80 sobrevivia, naquela época, apenas nos guetos musicais (como aconetceu com o rock, o Black etc), mas hoje em dia algo dessa curva apericana da melodia é, sim, reconhecida como nossa. E, além disso, forma a base da canção pop brasileira. Pensa nesses jorgevercilões da vida... os caras emplacam porque fazem uma espécie de mistura de harmona djavan (bossa retornando ao jazz, quase nada de samba) com um vocal de melodias de Jazz/blues. O Ed Motta seria uma espécie de precursor disso, num campo de estilo mais coeso, mais coerente, menos fruta-cor do que o da "moderna MPB" (quando ainda havia, alguns dizem saudosos, verdadeiro "rock brasileiro", verdadeiro "black brasileiro", etc rs).
Uma hipótese de como isso pode ter acontecido: começou com a bossa nova. Foi ela que tornou familiares notas de repouso da melodia que não eram aceitaveis antes, a partir dos desenvolvimentos harmônicos que construiu. Quer dizer, se a bossa não cantava melodia americana ainda, ela, com a harmona, criava condições para tanto. Daí porque eu tenho a impressão de que o problema do Ed Motta, menos que estrutural, é de timming, saca? Ele tentou fazer música com melodia americana antes que essa prática já tivesse deixado de ser uma possibilidade ancorada no material harmônico, ou espaço de guetos, para ser disseminada, aos poucos, como padrão geral melódico.
Inclusive, gente como o próprio Lulu Santos trilhou esse caminho.
Essa música, aliás, que vc colocou no final do post, a do Lulu Santos, está construída inteirinha sobre uma cadência que não existe para o samba. Além disso, a primeira repetição da frase principal da melodia, no refrão, se resolve na sétima maior.
"Fica muito bem cinema,
romance do romance re- AL"
(essa nota, "-AL", o samba só admite como uma nota de passagem, nunca como um repouso)
Também não acho que tenha estranheza na guinada que o Ed Motta deu em sua carreira. O que ele disse pra si mesmo foi... "quando eu queria fazer pop no Brasil não colou. Tudo bem. Agora, além de eu fazer um tipo de música muito mais complexa e aceita internacionalmente do que isso, eu já faço sucesso aqui também". E lá está ele no programa do Ronnie Von, lançando "Colombina" (a música menos de carnaval que além já teve coragem de fazer falando de um baile de carnaval, rs).
Sei lá, como esses diferentes momentos na carreira dele (o fracasso nacional, o projeto internacional e, na minha opinião, a aceitação agora que ele é representante de uma maneira de fazer música que tem a ver com a dominante na MPB moderna) puderam acontecer?
Bom, a impressão que eu tenho é que as tendências musicais se dissolvem em milhares de direções diferentes. Tem um mercado que responde ao desejo que temos de ouvir samba à antiga (surgem Fabiana Cozza, Tereza Cristina, etc, suprindo essa demanda). Tem um mercado produzindo rock, black, jazz, blues brasileira. Mas essas direções tão díspares não têm nada de incoerentes. São elas que criam uma paridade entre os critérios de boa música popular aqui e no mundo, já que essa é a direção em que a arte tem que ir para se tornar rentável. E, tecnicamente, a melodia descaracterizada, bebendo ora do Jazz, ora do Blues, ora da música oriental, etc é o meio de se fazer isso, por dentro do material.
Corroborando esse julgamento específico, dá pra pensar em um mais geral, que sugere que, quando o influxo do processo histórico deixa de ser interno, a arte corre o risco de se descaracterizar. Não por desgarrar-se das formas antigas e sentidas como nossas, mas no sentido de atulhar-se com coisas que dissolvem o campo de criação em sentidos não totalizaveis pela experiência (ou dificilmente apropriaveis pra fazer arte de relevância estética naquele sentido que já conhecemos, Schwarz, etc). Tem e ainda vai ter muita Black music, vai ter pop, vai ter jazz, vai ter mpb, dos mais variados níveis de qualidade técnica. Mas que ainda dizem respeito à vida profunda do país? Essa é a dúvida.
O Ed Motta perdeu o bonde de transformar estruturalmente a canção brasileira? Não. O que estava passando não era o bonde, era um trator que diluiu a música sentida como brasileira em "um estilo qualquer" e pôs coisas agradáveis (bonitas, às vezes, no máximo) no lugar.
Tudo isso pra dizer que o "Manual" é um dos discos que eu mais gosto desde moloque (mas a gente quer mais que isso, é claro).
abraço,
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