sábado, 26 de dezembro de 2009

UM OLHAR SOBRE “SEGURA O TCHAN”, DO GRUPO É O TCHAN (2 de 3).

MERCADO E TRADIÇÃO


Diagrama 2 - “Menina que requebra \ mãe que pega na cabeça”

Esses versos carregam forte conteúdo reiterativo, pela presença em grande quantidade de rimas internas e reiterações fonéticas (Me ni na | que re que | bra mã que pé | requebra – pega). Num verso que é mais figurativo que o anterior (num mesmo contorno melódico encaixam-se versos maiores) a coerência é mantida reiterando-se elementos no plano fonético. Seu conteúdo remete ao mesmo tempo para a dança e para o sexo, que complementa o verso anterior dirigindo-lhe o sentido. A abertura para a dança reforça o caráter polissêmico da canção, que abre sua estrutura radicalmente para o externo, tanto para a performance, especialmente o trio miscigenado Sheila – Jacaré (o falo, afro, como não poderia deixar de ser) – Sheila, quanto para o local enunciativo, a celebração do aqui e agora. Carnaval. “Segura o tchan” é uma canção que se fixa no presente, tanto no eterno retorno de um mesmo tema melódico quanto pela letra que marca em seu interior a sua relação com um momento de celebração coletiva.

Em músicas posteriores do grupo, essa fixação pelo agora se tornará ainda mais presente, o que obedece a um duplo direcionamento. O primeiro, bastante comentado, é o que marca essas canções como produtos de consumo imediato, responsável tanto por seu sucesso quanto pelo fim do grupo, pois que trabalha com formas estéticas que só adquirem pleno sentido no momento de sua execução, com a celebração acontecendo efetivamente. No caso, a celebração do produto e do rito enquanto produto.

Letra de Dança do Bumbum, com vídeo do Ralando o Tchan


Conheci uma menina que veio do sul
Pra dançar o tchan e a dança do tchu tchu
Deu em cima, deu em baixo,
na dança do tchaco
E na garrafinha deu uma raladinha
Agora o Gera Samba mostra pra vocês
A dança do bumbum que pegou de uma vez
Bota a mão no joelho
E da uma baixadinha
Vai mexendo gostoso,
Balancando a bundinha

Agora mexe vai, Mexe, mexe mainha
Agora mexe, Mexe, mexe lourinha
Agora mexe, Mexe, mexe neguinha
Agora mexe Balancando a poupancinha
Mexe, mexe, pro lado
Mede, mexe, pro outro
Vai mexendo embaixo
Vai mexendo gostoso
Vai no sapatinho, vai
Remexendo gostosinho, vai



Canções como “Dança do bumbum” e “Ralando o Tchan”, serão responsáveis pelo sucesso e pelo fim do grupo, pois o interesse da composição se liga de forma intensa com o imediato. O refrão é o momento de conjunção por excelência, o momento máximo de celebração. A canção popular tem início (histórico e estrutural) com um bom refrão. Em muitos exemplos de canção sem refrão, por exemplo (“Detalhes”, do rei, e “Oração ao Tempo”, de Caetano), algo de sua força de concentração é transferido para o conjunto da canção de tal forma que, apesar de não possuir refrão em si, toda composição acaba funcionando como um refrão extenso - o refrão é, por natureza, tensivamente concentrado na segunda parte. Como a canção é o equilíbrio de múltiplas forças em relação, um bom refrão depende da tensão dialética que estabelece com a chamada segunda parte, que tem sua razão de ser no refrão, que por sua vez depende da preparação de sentido operada por seu desdobramento. Parodiando Antonio Candido, pode-se dizer que o estudo de uma canção consiste na análise de suas tensões. No caso dessas peças do É o Tchan, o que se observa não é exatamente o esquema refrão – segunda parte, mas uma justaposição de vários refrãos, todos a repor o mesmo significado. Perde-se tanto a polissemia dos signos quanto a sutil e complexa relação entre concentração – expansão das partes. São inferiores estruturalmente a “Segura o Tchan” por serem em tudo iguais a si próprias, embora funcionassem perfeitamente bem na época de seu interesse, mantendo ainda algo de sua força libidinal para aqueles que lembram da coreografia. E para sermos justos, “Ralando o Tchan” tem ainda sacadas fonéticas bem interessantes (RRRálando, Baba Ali, Baba, com referência a uma suposta prosódia árabe) que remetem a sagacidade das melhores marchinhas. Mas acreditamos que “Segura o tchan”, apesar de trazer os mesmos elementos de fugacidade, vai além em termos de composição, apesar de não ser a melhor composição do Axé (algumas gravações de Daniela Mercury, Margareth Menezes, Ivete Sangalo – “Levada Louca” é uma canção extraordinária, especialmente quando executada na velocidade da luz - as inovações de Olodum e Timbalada – que já são outra coisa, e por aí vai, seriam melhor exemplo do que de mais interessante se produz nesse terreno).

Um dos aspectos que marcam composições desse tipo, que compram de forma mais direta o apelo mercadológico à reiteração do momento presente, é que o interesse pela composição vai depender do interesse pelo grupo, e não o contrário. O interesse desta estará diretamente vinculado a sua acessória de markenting, o que acontece, evidentemente, com todos os estilos e gêneros, mas nesse caso sem maiores mediações, e com prejuízo para forma. É preciso querer dançar com o grupo pra canção funcionar, uma vez que todos os seus aspectos tratam do momento presente, abolindo inclusive qualquer narratividade. Nesse caso os versos são também polissêmicos (dança, sexo, carnaval), mas todos se prestam a traduzir uma mesma idéia mestra. O resultado são canções com aparência de terem sido feitas em série (sempre tendo em conta que a consciência da canção como um produto comercial, destinado a um público consumidor, é fundamental para determinar a sua qualidade estética), como colagens de qualquer coisa em qualquer ordem, sem obedecer a uma maior necessidade estrutural. São produtos, assim como qualquer canção, mas que não são nenhuma Brastemp. A canção que segue nesses moldes apresenta certa “rigidez” que prejudica sua desenvoltura (que no caso do “É o Tchan” tentará ser recuperada a partir de elementos exteriores, como as intervenções do cumpadre Washington, ou o carisma de seus dançarinos). Certo tom forçado na insistência em um só aspecto, em tudo contrastando com a imagem de espontaneidade que garante a sobrevivência mesma do grupo. Ao mesmo tempo que o mercado exige a padronização, ele não perdoa a perda da autenticidade, borrando os limites entre ambos. O resultado são canções que não sobrevivem ao interesse por uma moda – mesmo que esse possa vir a ser posteriormente recuperado.

Esse dado mercadológico une-se pois a uma dimensão popular, mais antiga que o conceito de mercado, da qual se apropria. Ou seja, ao mesmo tempo que possui uma evidente conotação mercadológica, esse aspecto do imediatismo não é criada exatamente pelo mercado, por ser uma reposição (pós moderna?) de elementos anteriores à industrialização, e que garantem inclusive sua eficácia junto ao público. É nesse jogo entre eficácia (produto) e encanto (arte) que se constitui a canção. Pois a ênfase no aqui agora do rito é uma característica do samba de roda, e que se re-apresenta em composições do É o tchan, decerto que cooptada mercadologicamente. Por outro lado, essa incorporação não pode ser absoluta, com o risco de se perder em força estética. É importante também observar que, no caso de “Segura o tchan”, é estabelecida uma relação de complementariedade dialética entre refrão concentrado e segunda parte fragmentária que faz dela uma composição melhor que outros grandes sucessos do grupo, que parecem muitas vezes ser mera justaposição – bem planejada - de refrões diversos.



Levada Louca - Axé de primeira linha


POLISSEMIA DE SIGNIFICADO E CONCENTRAÇÃO MELÓDICA

Diagrama 3 e 4 – “Domingo ela não vai \ Vai Vai \ Domingo ela não vai, não \ Vai, vai, vai

Melódica e harmonicamente o seguimento é muito bem construído como elemento de passagem. O fragmento três “Domingo ela não vai” do diagrama tem o mesmo contorno melódico de “Menina que requebra” (fragmento 2), que por sua vez também serve como elementos de passagem que rompe e retorna para a reiteração quase absoluta da primeira estrofe. Já a parte coral “Vai Vai” irá ligar-se melodicamente ao refrão de mesmo contorno. Longe de apontar para pobreza ou insuficiência estética, o segmento cria uma articulação muito bem resolvida entre a parte inicial e o refrão.


Por outro lado, a letra apresenta um sentido cifrado, em aparente incoerência com o restante da canção. Afinal, domingo ela não vai aonde? O sentido cifrado do trecho aponta para certa defasagem, que se reflete nas críticas negativas no que se refere as letras. Entretanto, como já vimos, essa abertura que se dá em um primeiro momento no vazio, irá adquirir sentido no 
interior de um conjunto de relações criados pelo conjunto letra-melodia-performance. Pois se em um primeiro momento essa cifragem do conteúdo aponta para uma insuficiência (dado que a letra não se pauta por um hermetismo) por assim dizer para dentro, por outro lado ela se liga imediatamente ao projeto de construir uma canção voltada para fora, para o momento presente da experiência (carnaval, trio elétrico, apresentações televisivas). Exige-se assim uma participação mais próxima e efetiva do ouvinte, interlocutor-agente que é colocado em cena também por outros aspectos, como seu forte apelo somático, visando à dança, sua ligação com a estrutura do samba de roda, a ênfase das letras no aqui e agora do encontro festivo, etc. Essa canção exige outro tipo de escuta que não aquela contemplativa, própria da cultura ocidental, pois é estruturalmente voltada para fora, o que é mais um problema para determinado conceito de arte e de sujeito como um todo orgânico do que para si ou para o axé. Dito isso, é também verdade que existem canções que se colocam os mesmos desafios e que conseguem articular essa heterogeneidade de forma mais equilibrada, sem essas arestas involuntárias, sendo pois uma exigência que pode ser feita. Mas que não é suficiente para eliminar o brilho e as qualidades de “Segura o Tchan”. Para concluir a análise desse trecho, devemos dizer que, apesar desse referente inicial perder-se no interior da canção, dada a força da tematização nessa passagem –no caso, os versos do diagrama 3 e 4 repetem quase que inalteradamente os mesmos significantes, somente operando uma mudança melódica que cumpre evidente função rítmica (“não vai vai vai”, 4, em oposição a “vai vai”, 3) – o sentido de dança, o próprio ritmo, é tonificado, tomando a frente na significação e ligando-se em segundo plano com a estrofe anterior.


Existem pois alguns aspectos formais importantes em operação que fazem com que esse aspecto menos feliz da composição (por caminhar em sentido contrário ao que ela mesma se propõe, e não porque vai contra expectativas e padrões advindos de outro lugar) não sejam suficientes para que se julgue “Segura o Tchan” como uma canção de má qualidade – a menos que qualidade esteja se referindo aqui a outra coisa, conceitualmente mais próxima de uma significação em expressões do tipo “sujeitinho mais sem qualidade”, um julgamento mais moral que estético. Ou antes, digamos que esta “incoerência” que se percebe em dado aspecto da estrutura (e que encontraremos ainda em outros momentos) não se generaliza em falência formal. É preciso, como já vimos, considerar-se que estamos diante de uma canção temática, em que a letra dinamiza sua coerência interna de modo a ganhar uma polissemia de significados que possibilita a conexão com a totalidade da estrutura em outros planos. Desse modo evita-se uma construção excessivamente carregada. Digamos que o alto teor de concentração temática – em que todos os elementos melódicos aparecem ligados a um mesmo objetivo, realizar o refrão – próprio de uma canção feita para dançar, compensa o caráter polissêmico da letra, fechando seus sentidos a partir de outro lugar. Também o procedimento de figurativização - que é quando a força da fala se insinua na linha melódica, e o comportamento lingüístico se sobrepõe ao estritamente musical - cumpre aqui importante papel, sendo perfeitamente adequado a uma canção que pretende transmitir uma idéia de maior oralidade, de improviso espontâneo, que por assim dizer “justifica” certa incoerência descontraída da letra ao reinseri-la num contexto de festa, onde se improvisa ao redor de um tema, com todos os problemas que essa concepção pós-moderna de forma apresenta.

Mas talvez o mais importante desses elementos de coesão, de que trataremos ao final, é o poder de concentração do refrão, de incontestável força, em que todos os elementos que aparecem dispersos ao longo das estrofes são recuperados em um único termo, cujo sentido é inteiramente construído pela canção. Um verdadeiro achado melódico, poético e lingüístico, para fazer inveja a qualquer cancionista.

2 comentários:

  1. Olá pessoal. O blog é muito massa, sobretudo por conta da variedade de gêneros musicais que vcs s dispôem a tratar. Já li coisas interessantes aqui tanto sobre Marcelo Camelo, quanto sobre o Raça Negra (o que para a maioria dos blogeiros são coisas que não se pode misturar (estupidez!)).

    Nesse post sobre o Tchan, vcs afirmam q "Segura O Tchan" não é a melhor composição de axé. Mas a banda É o Tchan não é uma banda de axé. Aqui em Salvador, o gênero musical relacionado a essa banda é chamado de pagode, pagode baiano, swingueira, quebradeira ou pagodão. diferenças básicas entre axé e pagode (esse da Bahia (que na verdade, é só "de" Salvador)): a base musical desse pagode é o samba, sobretudo samda-de-roda, do recôncavo baiano. também há forte presença nele das primeiras levas d pagode do rio (anos 80) e da 2ª, + mercadológica, dos anos 90. Em relação a letra, as letras do pagode baiano têm ênfase no duplo sentido, com conotação erótica, sexual. No axé, minoritariamente o duplo sentido aparece, mas os temas principais são praia, sol, namoro, beijo na boca etc. Por influência dos blocos-afro do carnaval d SA, o axé tb traz (minoritariamente) letras sobre negritude (é visível isso em Daniela e Margareth). Socialmente, o axé é música da classe média soteropolitana, q sai em badalados blocos d trio e corda no carnaval. o pagode é música do povão. è claro q não há ortodoxia qnt a isso, mas são tendências perceptiveis. O lance é por aí! Abração e parabéns pelo blog!

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  2. complementando o comentário anterior. Axé: Daniela Mercury (apesar dessa, por ser mais "classuda" tb é vista ou tenta fazer-se ver como MPB), Chiclete c Banana, Asa d Águia, Banda Eva, Ivete, Cláudia Leitte, Timbalada (embora esses sejam bem diferentes dos citados, são mais próximos dos blocos-afro). Pagode: Tchan, Gang do Samba, Companhia do Pagode, Harmonia do Samba, Parangolé (do sucesso atual Rebolation) etc. Há guitarra no axé (influência de Armandinho, dodô & Osmar), no apgode, cavaquinho. A maioria dos artistas d axé vêm da classe média, os do pagode dos subúrbios d SA e são negros e mestiços. No axé há mais brancos e mestiços. o axé é mais pop, o pagode é um lance bem regional mesmo, mais ligado a uma sexualidade forte na cultura baiana (q é cult. d SA, na verdade).

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