quarta-feira, 25 de março de 2009

A Mpbtização do samba


O samba voltou à moda. É claro, de fato ele nunca deixou de ser tocado, mas estava meio afastado daquela parcela da classe média que define qual o tipo de música de prestígio. Desde aquela redescoberta do samba do morro nos anos 60, ela havia substituído o samba pela MPB, deixando-o para o consumo das camadas populares. Porém mais do que isso, o samba a que se volta é uma certa concepção do que seria o este antes dos tempos do pagode, antes de Exaltasamba, Soweto, Zeca, Fundo, Martinho e Beth Carvalho. O estilo de samba dos anos 60 para baixo, que seria mais puro ou autêntico, de raiz. Não que se toque exclusivamente música de compositores já mortos (embora haja baladas dessas, em que a música mais recente é contemporânea de Ary Barroso). Mas o tipo novo de composição e, principalmente, sua forma de execução procura recuperar aquele tipo de sonoridade tida por mais autêntica - e que obviamente nunca foi isso de fato.

Curiosamente, essa autenticidade é assegurada por dois movimentos complementares. O primeiro, mais comum, é o distanciamento temporal. Quanto menos presente de forma concreta do mundo real mais tradicional é aquela forma. Daí chega-se a absurdo, como por exemplo considerar um Diogo Nogueira mais tradicional ou autêntico que Fundo de Quintal. O segundo é um progressivo distanciamento do batuque, o que se aproxima muito mais de uma concepção que vem da MPB do que propriamente do samba. O que se busca de fato nessa concepção é a elaboração de um samba de raiz e refinado, dois termos questionáveis e muitas vezes contraditórios, pois o refinamento vem com o tempo, em especial nessas manifestações de caráter mais popular. E lembrando que, se fossemos voltar às raízes do samba, iríamos nos deparar com o maxixe (pegue a gravação original de “Pelo Telefone”, por exemplo, ou algumas composições de Noel, oscilantes) e com os batuques de cunho religioso. Age-se como se a gravação de Cartola nos anos 60 com acompanhamento de choro fosse a maneira mais tradicional de performance do samba, e não a novidade que de fato representou na época (graças em grande parte, diga-se de passagem, as gravações de Bossa Nova). A Bossa redefiniu o tipo de olhar que define o que seja mais autêntico (na verdade, sejamos justos, João Gilberto e cia redefiniram o antigo samba, criando uma outra coisa, mas nunca disseram que aquilo que estavam fazendo era o verdadeiro samba. Ao contrário, faziam questão de frisar o seu avanço e diferença. O problema se coloca depois, quando a noção de bom gosto da classe média é transferida para o conjunto de manifestações culturais do país) como se fosse mais tradicional aquilo que mais se afasta do caráter de ritual que o samba tinha em seu início, ou seja, como se fosse mais autêntico justamente aquilo que se afasta do... autêntico.

Entretanto, paga-se certo preço ao livrar o samba da batucada. O batuque na música feita no Brasil, especialmente no samba, não é um elemento acessório como na música clássica – até certa época. Ele é constitutivo da própria forma. Ao se retirar o acompanhamento rítmico de determinados tipos de canção, sem se realizar todo um esforço harmônico e melódico para recriar aquele sentido em outro lugar, a música acaba sendo mutilada. Um samba-enredo regravado no esquema voz e violão não fica só estranho. Ele é completamente descaracterizado, deixando de “funcionar” esteticamente. Pode-se fazer, desde que seja com intenções de criar algo original, ou que este enredo seja o “Vai passar”. Em muitos sambas, é menos prejudicial em termos estéticos retirar o acompanhamento harmônico do que a percussão. O samba é feito para se ouvir sim, mas com o corpo. Ele pega pelo estômago, e não propriamente pela audição atenta de uma sala de concerto – como exige a Bossa Nova. Tirar o batuque do samba é tão grave quanto tirar o contrabaixo de um quarteto de cordas. O mesmo defeito ocorre se um grupo de funk e groove faz uma apresentação para uma platéia que não se move. A música não funcionou, a menos que seja algum tipo de variação jazzística. Ao procurar transpor a concepção ocidental de música para ouvir na execução de um samba que obedece a outros critérios (novamente, sem a transposição formal correspondente), perde-se justamente aquilo a que se procura exaltar. Como certos grupos de rock progressivo que pretendem fazer música erudita a partir do rock, mas inevitavelmente acabam soando como uma caricatura de uma música clássica já ruim, por desconsiderar a concretude da forma com que operam. Quando o fazem a partir do pop, como Pink Floyd, o resultado é muito mais interesssante, menos esquemático e mais criativo.


Na verdade, o problema assume dimensões ainda maiores, pois a tradição Ocidental (da qual a gente participa, e que sistematizou as normas musicais usadas por todos) não faz a menor idéia de como lidar com a percussão. No geral se pensa que a percussão (a cozinha, termo significativo por conter uma dimensão dupla, a de cômodo mais essencial da casa e ao mesmo tempo o mais desprezado) acompanha do jeito que dá as transformações harmônicas – concepção eurocêntrica – sem se fazer a menor idéia de como explicar as transformações que a harmonia e a melodia sofrem por conta do batuque. De fato, muitos sequer consideram a hipótese, sendo que nas tradições mais antigas é a partir do ritmo ditado pela percussão que os gêneros tomam forma. Mesmo a história da música brasileira é a narrativa dos impasses e percalços da harmonia e da melodia para se ajustar ao batuque. Foi isso que ocupou todos os nossos arranjadores e maestros ao longo do século XX. Mas ninguém consegue de fato pensar em como a batida original de João da Baiana para o pandeiro influiu no contorno melódico do samba, ou em como as transformações da linguagem do samba para o pagode da turma do Cacique de Ramos foi condicionada por suas inovações no campo dos instrumentos. É claro que sempre se pode explicar tudo em termos harmônicos, mas o quanto dessa nova harmonização não passa pelo ritmo, pela diferença de acento que existe entre o suro, a timba e o tantan, ou pelo novo molho introduzido pelo repique de mão? A voz tem que ser colocada de outra forma, responder em outra intensidade e interagir com a nova dinâmica proposta pela cozinha, etc. Em suma, criar uma nova forma de dizer, condicionada em grande medida pela percussão. Em certo sentido, toda a riqueza e complexidade de nossa música só conseguiu ser descoberta quando a Bossa transformou a linguagem rítmica em harmônica. Ai não só o Brasil, mas o mundo compreendeu que fazíamos arte. Por isso se colocam sempre os nomes da MPB como os maiores compositores do país. Não porque de fato o sejam, mas por uma incapacidade cognitiva de compreender (e explicar) a genialidade de Cartola, por exemplo.


Aliás, esse esquema de livrar o samba da batucada aproxima-se muito do esquema de padronização e massificação daquele novo estilo de musica brega, tornada possível pela difusão e barateamento do teclado eletrônico (aquele tipo de som feito pelo Frank Aguiar). Com a diferença que no caso do Frank o problema é menor porque a padronização que ele cria está visando à música para dançar. Tanto faz se é Beethoven, Jobim ou Calcinha Preta: o que importa é se dá pra dançar e gritar junto. Já a MPB visa à escuta mais atenta, e ao padronizar o samba mais ritual, faz com que o mesmo decaia em qualidade, e deixe de prestar enquanto música para se ouvir.

Outro movimento do qual acaba se aproximando, embora a princípio por razões opostas, é o tão temido e abominado pagode romântico paulista, que tem no afastamento do batuque uma de suas principais característica, e novamente com vantagens para o pagode, porque o tipo de sonoridade por ele buscada parte dessa separação, enquanto que a higienização do samba é realizada em lugares que a princípio não lhe cabem – novamente, a não ser que a estrutura musical sofra uma alteração correspondente, o que não é o caso. Os pagodeiros faziam música para ser Fabio Junior (os mais ousados, Djavan), já os sambistas da MPB querem sempre soar como Chico Buarque. Até funciona, quando se toca Chico, Baden Powel, Paulinho da Viola, João Bosco, que fazem samba também, mas de um outro tipo, fazendo aquela transposição estrutural que comentamos. Quando a história muda pra Zeca Pagodinho, Ismael Silva, Silas de Oliveira, Geraldo Filme, Candeia, Clementina, Ivone Lara, Martinho da Vila (talvez “disritmia” funcione), aí a sonoridade resultante só consegue marcar a distância com o que aquela música é de fato. Torna-se uma espécie de samba da falta (de vergonha?).

O samba mpbzado das Vilas Madalenas do Brasil padecem do mesmo defeito amadorístico daquelas gravações iniciais do samba, em que era preciso ter voz de tenor e orquestrações empoladas que limpavam o gênero. Foram necessários 50 anos para se perceber que a estrutura daqueles sambas se sustentam no e pelo batuque, tanto quanto (e por vezes ainda mais) na harmonia e na linha melódica. E só a partir dessa descoberta é que puderam de fato criar uma estrutura própria que o prescinde. Tocar “Aquarela Brasileira” de Silas de Oliveira sem a percussão sustentando seu peso não é uma opção estética entre outras, padecendo da mesma pasteurização promovida pelo cãozinho dos teclados. E sem os méritos que porventura aquele possa ter.

A discografia da polêmica

O pessoal que acompanha o blog que me desculpe, mas é que ta difícil de atualizar porque eu acabei de mudar, e nessa nova morada ainda não tem internet. Além disso, o computador bichou feio. Mas aos poucos eu vou colocando uma coisinha aqui, outra ali (pra ver se a Bia para de me encher), nem que seja só uns discos que eu gosto.
Conversa mole a parte, eu não poderia deixar de colocar os links de alguns discos para ilustrar o tema do post anterior. Pra ser o mais imparcial possível, escolhi o primeiro e o último de cada um, além de um outro que eu acho que é o melhor (ou um dos melhores) disco deles.

CAETANO VELOSO - 1968


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CHICO BUARQUE 1966
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O primeiro disco do Caetano é bem mais interessante, criativo e ousado, porém não tão bem acabado quanto o primeiro do Buarque. É um album ainda ingênuo, mas isso não chega a ser defeito. Ao contrário, transmite uma leveza que faz muito bem pro conjunto. Tirando "A banda" que, na moral, já deu é um disco gostosíssimo. Tem "Ole, Olá", que é linda, "A Rita", delicinha, "Amanhã ninguem sabe", fantástica, "Tem mais samba", descoberta pela Elis, e "Juca", que eu adoro. O compositor já nascia pronto. Já Caetano mostra claramente que está experimentando coisas, e umas funcionam mais do que outras. Tem-se a concepção, mas não se sabe ao certo como ligar as coisas. Faltava ainda o acompanhamento dos mutantes com os arranjos do Duprat. Mas tem "Tropicália", que é um marco da música brasileira de toda sua história. Tem "Alegria Alegria", uma resposta a "Banda" do Chico, e que é muito superior. Tem poemas de Capinam e Gullar. Enfim, ao invés de consolidação, um passo a frente. Mas em termos de estréia, os discos de Jorge Ben e de Gilberto Gil acertaram mais.

CARIOCA - 2006

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CE - 2006
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Esse pra mim não tem dúvidas. Chico apresenta um disco correto, bonito, previsível e repetitivo. Um isco de velho babão. Mais do mesmo. Enquanto Caetano se arrisca pela música indie, ataca temas atuais, muda a fórmula de seus trabalhos anteriores e volta a fazer canções mais cruas. E se sai muito bem. Não é a melhor forma, mas é muito melhor que 90% do que há por aí.

ÓPERA DO MALANDRO - 1979

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TRANSA - 1972
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Nesse caso eu não me arrisco. Os dois discos, cada um a seu modo, são brilhantes. Os dois compositores em um momento criativo privilegiado. Cada canção na "ópera do malandro" é perfeita, algumas são clássicos absolutos. E nesse caso nem dá pra dizer que ele não arrisca. Chico faz rock, faz uma adaptação brilhante de Brecht, abrasileira uma ópera, faz valsa, escreve duas das mais belas canções romanticas da MPB ("Folhetin" e a genial "O meu amor"), cria sambas deliciosos e improvisa até um tango. Além disso, o disco tem uma unidade conceitual (é uma peça) que lhe faz muito bem estruturalmente - o que nem sempre acontece com os discos do Chico, pouco importando se se trata de um album próprio ou de uma coletânea. E os vários intérpretes convidados não deixa que ele se torne cansativo. Pra mim, é um dos grande albuns da MPB. Agora quanto ao "Transa" é um dos meus discos prediletos. Aquele que formalmente conseguiu mostrar que a música brasileira é a música do mundo, o que realizou a fusão mais perfeita de pop internacional e regionalismo, que marcou de vez o limite entre o experimental e o pop. As canções são ótimas, o acompanhamento é fabuloso (em especial a guiarra de Jards Macalé), as misturas são geniais. É um verdadeiro acontecimento na música mundial, sem precedentes e sem continuadores. É uma jóia. Talvez o "Transa" leve vantagem por questões históricas. O disco, juntamente com "Expresso 2222" do Gil marca o ponto máximo de inflexão da Tropicália. Ambos são suas maiores realizações, e a partir dali o projeto deixaria de existir.
Mas o bom da MPB é que não precisamos eleger ganhadores. Tem lugar pra todo mundo

domingo, 22 de março de 2009

A polêmica Chico x Caetano: malandragem sem morro e a vanguarda do brega (I)

Para Tati, donde veio a inspiração

Nunca escondi de ninguém que sou um caetanete. E como bom tiete de Caetano, adoro tomar seu partido em suas polêmicas, encontrar alguma razão mais profunda, mesmo que absurda, para seus gestos. E não é muito difícil, porque o cara é o maior intelectual vivo do país, e mesmo que você não concorde com aquilo que ele diz, quase sempre há uma razão mais profunda pra ele ter dito isso ou aquilo. O que se nem sempre torna as coisas melhores, ao menos revelam alguma coerência.

O babado mais quente no quesito Caetano é sem dúvida a eterna polêmica com Chico. Na verdade, não entre os dois, que estão cagando pra essas brigas, mas entre os adoradores de um e de outro. Mas mesmo os chicólatras tem de admitir que é muito mais complexo você ser um caetanete, seja por ser ele muito menos unânime, mais arrogante, ou mais polêmico. Posso dizer inclusive que começa daí minha admiração: o esforço mental exigido para se posicionar pró Caetano é, pela própria natureza do objeto, muito maior. Enquanto o Chico veio pra estabelecer, pra ser a própria definição do que é bom, Caetano veio pra incomodar, pra questionar o que é belo. Na verdade, a razão mais profunda para esse debate ser tão animado é que no fundo ele é bem menos radical do que parece a princípio. De fato, a questão realmente radical nem se coloca (a não ser por loucos meio idiotas ou excêntricos, como Caetano), pois o conflito verdadeiro está na oposição Chico Buarque x Roberto Carlos, ambos compositores de primeira linha, mas aquele que chega a sugerir uma aproximação do gênero é imediatamente desqualificado como mentalmente desequilibrado. O que não quer dizer que Chico x Caetano não seja uma polêmica reveladora, pelo contrário. Apenas oculta uma questão muito mais complexa e perigosa, que implica em colocar Robertão e Chico num mesmo patamar.

Primeiro algumas questões de ordem mais formal, que são as que contam de fato no momento da audição. Comecemos com aquele que é tido como o ponto mais forte do carioca, suas letras. Nesse quesito o cara de fato é bom, mas temos de lembrar que quem realmente inovou foi Cae, ao ser o primeiro cara a abolir das letras seu cunho narrativo. Ele elimina das letras o tom narrativo que sempre caracterizou a canção nacional, primeiro com a concepção tropicalista de construção via fragmento, e depois ao construir letras que são explanações teóricas, muito mais do que as desventuras de um sujeito lírico ou a exposição de dada situação. A voz narrativa da canção se moderniza com Caetano, apesar de que Chico sem duvida a eleva a um patamar de excelência grandioso.

Quanto a forma propriamente dita, uma anedota de Tom Zé é reveladora. Quando perguntado sobre o que pensava de Chico Buarque, lá pelos anos 70, o baiano de Irará respondeu: “a gente tem que respeitar muito o Chico Buarque, afinal, ele é o nosso avô”. Para além do chiste e da ironia, a afirmação carrega também um caráter de revelação. Desde o início o projeto de Chico se apoiava, ainda que o transformando, no projeto estético da Bossa Nova, de re-apropriação do passado. Com a diferença de que a Bossa se propunha a reler sobre nova chave os autores que ela própria elegia como os representantes da genuína música nacional, enquanto que Chico – na onda da música de protesto – procurava resgatar as formas antigas, só que lidas agora na chave do bom gosto – seja em termos das letras, do estilo de interpretação e dos arranjos. No início, alguns tipos de samba (canção, exaltação, chorinho, gafieira) e depois ampliando o escopo – modinha, frevo, valsa, fado. É certo que por influência da Tropicália Chico passou também a enveredar por outros gêneros e estilos – principalmente após seu 5° disco, Construção - mas até os dias atuais cria canções basicamente em formas pré Bossa Nova. O próprio compositor admitiu em uma de suas raras entrevistas que é um compositor à moda antiga, que se dedica a um tipo de canção em vias de desaparecimento. Na verdade, é todo um modo de compor – do qual Chico é o maior representante – que se acostumou a identificar com a MPB, que está em vias de desaparecimento.

Já o projeto de Caetano sempre foi o de fazer música de hoje. Em comum entre ambos a busca por se criar música de qualidade – critério que é preciso definir, pois se trata menos de juízo de valor estético do que certo procedimento formal. Porém o lugar onde os dois procuram estabelecer esse critério de gosto marca uma ruptura radical de postura. Cae já compôs metal, musica indie, blues, reggae, axé (dizem as más línguas inclusive que foi ele quem o inventou), música concreta, samba de roda, hip hop, música brega, e já se apropriou de outros tantos gêneros, como o funk carioca. Isso sem falar de sua especialidade, que é o de misturar os registros. Sua postura estética é muito mais ousada, o que o torna a meu ver um compositor bem mais interessante, mesmo quando Chico – cultor do belo - consegue criar canções de acabamento formal perfeito. Do ruído também se faz arte.

A polêmica Chico x Caetano: malandragem sem morro e a vanguarda do brega (II)



Mas a consideração da forma conduz imediatamente à outra, essa sim o verdadeiro pano de fundo sobre o qual se desenrola a polêmica, ou seja, a posição ideológica que ocupam os dois artistas. Em certo sentido, a diferença de postura de Chico e Caetano marca duas opções distintas da elite popular universitária, que na época da Bossa Nova deixa de considerar a arte popular como um tipo inferior de manifestação cultural, e passa ela mesma a eleger seus representantes mais legítimos.

A Bossa, com sua mistura original de samba e jazz, promoveu a higienização necessária que tornou possível transformar o samba em produto de exportação e, como tal, digno de ser apreciado por um público mais “refinado” (definição de classe, mas que de gosto). Entretanto, a Bossa apresenta o mesmo problema que o jazz a partir do bep-bop, que seja: é de muito bom gosto afirmar que acha excelente, mas daí a entender de fato é outra história. É tão complexo compreender a dimensão da transformação que a batida de violão de João Gilberto representou para a música nacional quanto entender de fato o que Charlie Parker fez pelo jazz. Sabe-se que tudo mudou, mas daí a entender e explicar é outra história, sendo necessário não apenas um conhecimento musical mais aprofundado, mas também de cultura e do processo histórico-social. Isso sem falar que a Bossa é radicalmente avessa a entrar em debates políticos e ideológicos e, portanto, a adesão a ela é dada forçosamente em termos musicais, a menos que se opte por uma opção declaradamente “alienada”, o que para essa parte da elite universitária é pecado grave, especialmente na época de acirramento do debate político no período da ditadura, que exigia um tipo de arte mais engajada, ou explicitamente ancorado no social. Para suprir essa necessidade, surge a música de protesto. É certo que Chico Buarque não surgiu já fazendo letras engajadas e atacando o regime político, mas um dos debates da época era entre o que seria o genuinamente nacional e o que era estrangeiro e alienante, a que a música de protesto veio responder procurando fazer uma música de temática mais regional ou mais voltada para o samba (o show opinião é emblemático nesse sentido por trazer representante das três vertentes, o regionalismo de João do Vale, o sambão do morro de Zé Keti e a nova musica universitária, via Nara Leão). Nesse contexto, Chico optou por um retorno ao que seria o autêntico samba, aos moldes de Noel Rosa. Logo se tornou o símbolo maior do que era a MPB no início, que seja, música nacional genuína de qualidade, sendo que o adjetivo final indica a separação dessa música com a que de fato se fazia no morro.

Já no período mais duro da ditadura, Chico fez sua opção, via esquerda, se tornando o exemplo acabado de compositor combativo e ao mesmo tempo refinado (o que é muito importante por marcar a diferença entre ele e outros, como Vandré). Alias, o mais belo exemplo que se poderia imaginar, sendo rico, bonito pra porra, de família influente, que em certo sentido “renega” os benefícios de sua posição para lutar em pró de um bem comum (quase um Che Guevara de Walter Salles), não só de sua classe, mas também dos pobres – a ilusão de um possível conciliação entre as classes foi comum a toda esquerda nesse período, até o AI5 abortar de vez o projeto. O próprio movimento de apropriação das elites da cultura popular já inevitavelmente manifesta esse caráter de aproximação de classe. O projeto da MPB que o Chico representa é em certo nível o de criar uma forma popular de composição, mas que escape ao mau gosto e a reificação da cultura de massas. Uma música popular esclarecida, por assim dizer, que no limite conduz a um afastamento dos pobres da forma por eles mesmos criados, como no samba enredo “vai passar” que é muito bom, mas que ao mesmo tempo é o que de mais distante poderia haver de um samba enredo. O que seria uma aproximação de classes – os membros da elite que passam a se identificar com as classes populares – se torna uma nova forma de imposição, pois são esses que acabam definindo a partir de fora o que é ou não mais genuíno e autêntico. A figura do malandro exaltada por Chico em suas letras, já era bem raro mesmo nos morros cariocas, assim como os pobres de fato estavam em grande parte mais interessados na novidade representada por Roberto Carlos, em boleros e em musica brega, (Maysa, Agnaldo Timóteo e Rayol, Odair José, esses sim os grandes vendedores de disco da época) do que em samba canção aos moldes de Noel. O popular evocado por Chico e, principalmente, por seus seguidores, é já uma concepção higienizada que afasta o mau cheiro que inevitavelmente exala a pobreza. O que não diz nada sobre a qualidade dessa obra, excelente, mas revela muito sobre seu radicalismo e posição histórica, revelando muito mais que sua qualidade estética (existem dezenas de outros autores tão ou mais geniais) as razões de sua unanimidade. O que comprova que nem sempre a opção mais à esquerda é de fato a mais contestadora.

Por sua vez a obra de Caetano realiza o movimento quase oposto, e ao invés de definir o que seria uma música popular de qualidade, procura no interior da cultura de massa os exemplos já existentes de musica de qualidade. Ao invés de procurar inserir certo padrão importado de outras formas de arte, como o conceito de obra de arte orgânica, que recupera a noção de autor, adota o pressuposto concretista (que faz mais sentido para musica popular que para a poesia, a propósito) de que a arte é já mercadoria, e que este dado a priori interfere na constituição, mas não necessariamente na qualidade das obras como quer certa crítica mais radical da industria cultural. A canção popular, assim como o cinema, toma forma com o desenvolvimento da industria fonográfica, e isso naturalmente não é um atestado da falência de sua capacidade crítica ou estética, como não poderiam compreender aqueles que nasceram em países em que a arte pós industrial representou o desaparecimento de um determinado tipo de sujeito criador. Caetano procura qualidade artística naquilo que efetivamente a cultura popular está produzindo, seja Roberto Carlos, Vicente Celestino, Odair José, Beatles, Michael Jackson, Peninha ou Fernando Mendes, porque para Caetano também não existe essa distinção entre nacional genuíno e estrangeiro. A arte popular é industrial, e como tal, rompe as fronteiras territoriais, e a MPB deve sua existência tanto à João Gilberto quanto aos Beatles, na mesma proporção. Ao realizar esse movimento, ele procura romper com o preconceito que direciona a audição da classe média, e que fica explicito quando essa classe taxa uma música de Peninha como brega e a rejeita, só para aplaudir a mesma música quando gravada por Caetano. Por estar menos a esquerda que Chico, seu procedimento estético é mais radical. É anárquico. Seu real interesse é o mundo agora, e não uma utopia sustentada por um mito, mito que a própria postura pessoal de Chico ajuda a sustentar, ao escolher se esconder da opinião pública. Caetano não existe fora do espaço de debate e polêmica. Fora do mundo de agora, ele perde o sentido, pois sua função é desestabilizar o coerente.

Alias a MPB deve sua existência basicamente a dois movimentos: a depuração da Bossa Nova e a abertura da Tropicália, cujo mentor intelectual é Caetano – por mais que não tenha sido de fato ele que tenha organizado o movimento, foi sem duvida o que levou o conceito mais longe, e o sistematizou. Pois até a Tropicália, contando inclusive com a canção de protesto e Chico, o que nós temos é uma variação do projeto da Bossa Nova de depuração da canção nacional, um projeto definidor por excelência. Com Cae e Cia é que MPB ganha esse caráter de forma inorgânica, definida mais como um jeito de se fazer a coisa do que a coisa propriamente dita. Por isso eu também acredito que Caetano Veloso é a figura mais importante (inclusive em termos simbólicos) da MPB, e um dos principais nomes da canção brasileira moderna em geral (juntamente com Gilberto Gil e Jorge Ben). Do mesmo modo que Chico Buarque é seu maior símbolo, o que ajuda a entender o porque da MPB vir gradativamente deixando de existir enquanto gênero.


Chico é o exemplo mais bem acabado da família dos compositores artesãos. É o mais completo, embora não seja tão importante quanto João Gilberto ou Tom Jobim. Em todo caso, é inegável que Chico Buarque é muito bom. Entretanto, Caetano Veloso é brilhante e acima deles, talvez, somente os gênios como Gilberto Gil. Mas aí já é outra história.