segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

A recusa acadêmica em entender Paulo Coelho

Por Fernando Antonio Pinheiro
Artigo publicado na Folha de São Paulo, em 20\01\2013. Como introdução, segue a excelente reflexão do crítico Idelber Avelar postada em sua página do facebook:

"Quem conhece meu ensaio sobre o cânone e o valor (http://bit.ly/izt6fo) já viu esse mecanismo descrito em detalhe. Funciona assim: 1) o crítico exclui Coelho do valor literário porque sua obra não possui os traços vistos como literários na obra dos grandes autores (complexidade narrativa, ironia, densidade formal etc.); 2) ao ser perguntado sobre como chegou a essa lista de características intrínsecas do literário, o crítico remete às obras dos grandes monstros sagrados da literatura (Baudelaire, Flaubert, Dostoiévski etc.); 3) ao ser perguntado sobre como chegou a essa lista de autores, o crítico remete à ... lista de características definidas a priori no ponto 1!"

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No ano de 2010, a Folha registrou uma mesa na Bienal do Livro de São Paulo sobre a repercussão internacional da literatura brasileira. Os escritores Marçal Aquino e Milton Hatoum e o crítico Gregório Dantas apontaram como explicação para o desinteresse pela produção nacional o fim do boom latino, realismo mágico à frente, e a persistência de uma leitura ainda marcada pelas lentes do exotismo.

Hatoum detectou uma melhora nos últimos anos, com a tradução de clássicos e autores contemporâneos (ele mesmo foi traduzido para 16 línguas): "O que tenho notado é que o interesse pelo Brasil tem aumentado porque hoje temos um maior destaque internacional. Mas o fundamental é a qualidade da obra. Cedo ou tarde, bons livros serão traduzidos".

A julgar pela reportagem, os debatedores precisaram omitir um detalhe para sustentar seu diagnóstico. Trata-se do fato de que o escritor mais lido no mundo, cujas vendas já bateram a casa dos 100 milhões de exemplares em 150 países, traduzidos em 62 línguas, é o brasileiro Paulo Coelho. É provável que não se trate de esquecimento, mas da desconsideração pura e simples do pertencimento de Coelho ao domínio culto da literatura.

Se assim for, não estão sozinhos: o sucesso de público do autor tem sido acompanhado pela desqualificação crítica permanente, expressa o mais das vezes pelo silêncio, sinal de seu pouco valor na escala dos objetos dignos de interesse intelectual. Nessa hierarquia, o fenômeno representado pela produção de Coelho diz respeito ao mercado, e não à literatura; pode interessar à sociologia do consumo, mas não aos estudos literários.

O lugar assim destinado aos livros de Coelho já é em si bastante representativo dos contornos que ganharam aqui as relações entre literatura e mercado; e, mais genericamente, entre alta e baixa cultura. É a partir dessa chave que proponho um exercício analítico para enfrentar o fenômeno Paulo Coelho, evitando avaliá-lo para melhor captar a lógica de sua avaliação; tomando as classificações "nativas" do mundo literário não como critério definitivo de verdade para julgar o fenômeno literário, mas como fenômeno em si, a ser compreendido.

Para que o caso Paulo Coelho revele o modo como cultura erudita e indústria cultural se relacionam no Brasil, é preciso articular dois movimentos. Em primeiro lugar, tentar uma explicação para o sucesso do escritor, centrando a análise no pacto ficcional que seus livros propõem aos leitores, e evitando assim recorrer à determinação direta pela demanda, solução intensamente mobilizada pela crítica e pela imprensa, mas que se limita a supor a eficácia de uma estratégia no plano da circulação como explicação cabal.

Em seguida, tentar entender seu fracasso em encontrar assento no domínio culto da literatura brasileira, expresso sobretudo na reação da crítica. Parto de uma dupla recusa: a da atribuição mecânica do sucesso comercial ao propósito de autoajuda (gênero editorial, não literário) num contexto de ultraindividualismo egoísta; e a do juízo de valor estético como critério absoluto do literário.

LEITURA
O primeiro ponto da análise remete à leitura dos textos. Não posso resumir aqui o enredo dos livros, mas vou me ater a seu núcleo ideológico, tal como aparece nos dois primeiros, "O Diário de um Mago" e "O Alquimista". Retrabalhado em diferentes arranjos estilísticos e formas narrativas, esse núcleo permanece ao longo de toda a obra de Coelho.


Diz uma frase citada na dedicatória de "O Diário de um Mago" (1987): "O Extraordinário reside no Caminho das Pessoas Comuns". Essa frase, escrita em maiúsculas no livro, é um aceno de proximidade com o leitor: a transcendência é acessível ao vulgo, desde que bem conduzido por um iniciado.

No livro, essa ideia articula-se à de "bom combate", a luta em nome dos sonhos abandonados de juventude, que deve ser individualizada através de uma descoberta pessoal. Coelho projeta a relação vivida com seu guia, que no livro é a fonte desses ensinamentos, na relação virtual com seus leitores --que, como ele, são pessoas comuns, a que se encoraja combater o "bom combate".

Mestre e seguidores estão no mesmo plano. Embora o primeiro possa teorizar sobre as formas de iluminação esotérica, todos podem vivê-las na plenitude desde que aprendam, pela mediação de um mestre, a seguir a si mesmos. No livro seguinte, "O Alquimista" (1988), a mesma prédica é acrescida de novos instrumentos retóricos e conceituais.

O livro introduz a noção de "lenda pessoal", descrita como o destino autêntico revelado na juventude e soterrado pelas solicitações práticas da vida. A "lenda pessoal" é uma variante do "bom combate", ambos remetendo à adolescência como idade social do convívio de todas as possibilidades pelo retardamento das escolhas. A valentia que levará às conquistas está numa protensão do tempo, inscrita em frases como "Nunca desista dos seus sonhos" ou "Quando você deseja uma coisa, todo o Universo conspira para realizá-la".

Se esse universo esotérico configura uma espécie de metafísica popular, Coelho introduz o leitor nele dispensando-o da necessidade de conhecimento iniciático, dissolvendo as referências herméticas que manipula na assertiva decisiva de que tudo se resolve no entusiasmo com que se persegue o próprio desejo, lição aberta a todos.

Se os segredos esotéricos estão reservados ao especialista, seu manejo prático está à disposição de quem empreende o caminho, guiado pelo autor, que assume a mediação entre esotérico e exotérico, transcendente e imanente, extraordinário e ordinário. Papel cuja eficácia depende do uso da linguagem: ao evitar qualquer sofisticação, e mesmo obstinando-se na reprodução do clichê, o narrador suprime a distância social entre autor e leitor.

E, o que é ainda mais decisivo, as separações sociais que atuam na possibilidade diferencial de retenção do "tempo dos sonhos" também foram apagadas. Contribui para isso o confinamento da vivência pessoal à experiência da ruptura, cuja alegoria por excelência é a viagem ou a peregrinação. Tudo somado, abre-se para o leitor o mergulho numa leitura de evasão, que dá a seu sujeito a possibilidade de controle, pouco importa se ilusório, do tempo da vida --desta vida, detalhe que, ao menos no plano simbólico, reconverte a evasão em direção a seu ponto de origem, à forma de vida presente que se quer superar.

Nesse plano, o horizonte da transformação é oferta permanente; pode fazer recuar as escolhas, de modo que pareçam reversíveis até que se encontre o caminho, o bom combate, a realização da lenda pessoal. Não por acaso, o mote simbólico da viagem e seu desdobramento factual nos deslocamentos constantes dos personagens no espaço está presente em cada um de seus relatos.

Em suma, penso que o elemento universalizável da literatura de Paulo Coelho está precisamente na possibilidade de manipulação (e mesmo reversão) do tempo no ato da leitura. A difusão da obra em culturas tão diversas explica-se melhor pela mensagem lábil (e o potencial universalizante de seu efeito) do que pela fixidez de sua remissão direta a um contexto, por mais amplo que seja.

DESQUALIFICAÇÃO
Passo então ao segundo ponto, ou seja, a desqualificação ostentada como troféu pelas camadas letradas, tomando como caso paradigmático aquela que é, salvo engano, a única análise em profundidade de um livro de Coelho produzida por um nome de peso da crítica acadêmica: a resenha de livro "Onze Minutos" (2003), publicada no mesmo ano pelo professor de literatura da USP João Alexandre Barbosa (1937-2006), na revista "Cult".

Se a iniciativa rompe o silêncio e leva Coelho "a sério" (para o que  muito contribui o texto introdutório equilibrado de seu então editor, Manoel da Costa Pinto), ao mesmo tempo, graças ao teor da crítica, estabiliza o paradigma capaz de sustentar o "interesse pelo desinteresse" em relação a Coelho como traço identitário dos que "levam a sério" a literatura.




O procedimento do crítico expressa uma concepção algo essencialista de literatura, dominante no 
meio acadêmico, como base das razões que o levam a rejeitar a obra de Coelho. Barbosa menciona o uso criativo e consciente que Baudelaire e Flaubert fazem do lugar-comum, origem de um instrumento de renovação recorrente na literatura moderna que reconfigura o próprio lugar-comum.


O crítico escreve: "Não é o caso, por exemplo, do último livro de Paulo Coelho, que fui capaz de ler por inteiro, não obstante repetidos impulsos de desistência, e que se intitula 'Onze Minutos'. Aqui não se trata de utilização, mas de rendição total ao lugar-comum, em que a tópica é de tal forma devastadora que os exercícios de retórica apenas servem de confirmação para sua acentuação".

O esforço analítico não escapa de uma definição "ad hoc" de literatura, feita sob medida para excluir seu objeto, que se desmancha em chavões e em estereótipos. Note-se que se os grandes autores também se servem do lugar-comum, o fazem de modo "especificamente literário". O argumento aproxima-se da circularidade: é literário o manejo literário do lugar-comum. Há um trecho do texto em que o crítico remete ao ponto:

"Por todo o livro, passa, entretanto, uma mestria singular: uma espécie de radicalização do lugar-comum que, consciente ou não, confere ao livro um valor coerente, embora negativo, não havendo em nenhum momento traço de originalidade."

O aspecto contingente do critério sugere que outro, menos previamente armado, poderia resolver o paradoxo de modo positivo, atribuindo coerência (ou, ao menos, habilidade) à radicalização do lugar-comum, para concluir que forma e matéria estão em perfeito alinhamento: rebaixar o intranscendente ao nível do cotidiano só se realizaria literariamente numa relação de transparência plena entre linguagem e mundo narrado.

Mas o procedimento adotado por Barbosa torna absoluto um critério do literário, inteiramente alheio ao projeto do escritor, para indigitar sua escrita como não literária:

"Embora sábio e astuto no uso daquilo que, lugar-comum, já é esperado pelo leitor, Paulo Coelho nada reconfigura em termos narrativos que pudesse justificar a publicação de um romance."

Ou seja, só merece publicação aquilo que, comparável a Baudelaire e Flaubert, reconfigura seu material. Ainda uma vez, pode-se aceitar a validade do critério, mas então é preciso notar a seletividade de sua aplicação, raramente mobilizada no juízo sobre a literatura brasileira contemporânea.

Vale notar que o artigo de Barbosa intitula-se "Dentro da Academia, Fora da Literatura", bastante eloquente quanto à necessidade de resolver o incômodo por meio de sua anulação. O que leva a ao menos evocar contrapontos possíveis. Talvez importe menos estar dentro da Academia Brasileira de Letras e fora da literatura (Paulo Coelho não seria o único exemplo) do que no topo do mercado, mas ostentando um projeto que se quer literário, base da reivindicação do título nobiliárquico de escritor, tão marcante nas manifestações de Coelho.


COMUNIDADE

A questão que emerge desse conjunto de circunstâncias é a impossibilidade de a crítica bancar o pressuposto de uma comunidade hipotética de leitores que partilham seus valores, dada a dimensão do público de Coelho. A relação entre escritor, leitor e mundo narrado escapa ao critério literário, segundo o qual ela já estaria no texto, como sua substância, prêmio a ser conquistado pelo leitor treinado.

Coelho produz um curto-circuito nesse mecanismo: sua narrativa direta quer esclarecer os enigmas; a adesão que obtém quebra a comunidade imaginada --e imaginária-- dos cultores do que haveria de mais elevado na produção artística; sua atitude de "popstar" desafia o recato que se espera do homem de letras, enquanto sua autoidentificação como escritor brasileiro insulta o cânone e a exigência de conformidade ao padrão entronizado no mundo literário.

Diante disso, a desclassificação reforça, ao naturalizar, a doxa (opinião) do campo literário como critério absoluto. Mas outra lógica de classificação poderia abrigar os escritos de Coelho no domínio do literário; quero mencionar o exemplo de outro crítico e professor, José Paulo Paes (1926-98). Sua abordagem sobre literatura de entretenimento (em "A Aventura Literária", 2003) parece aplicar-se ao tipo de produção de Paulo Coelho, embora não se refira expressamente a ela.

Entre as características do gênero romance de aventura, Paes destaca a combinação entre os registros do mito e do naturalismo, o primado do acontecimento na trama e a ausência de profundidade psicológica das personagens (como se a ação forjasse seu caráter), aspectos que, em si, não implicariam rebaixamento do valor da obra pensada segundo seu próprio projeto.

Assim, por exemplo, Paes comenta os romances sentimentais de José Mauro de Vasconcelos:

"A agressividade com que certos críticos se voltaram contra ele, julgando-lhe o desempenho unicamente em termos de estética literária, mostra a miopia de nossa crítica para questões que fujam ao quadro da literatura erudita. [...] Numa cultura de literatos como a nossa, todos sonham ser Gustave Flaubert ou James Joyce, ninguém se contentaria em ser Alexandre Dumas ou Agatha Christie. Trata-se obviamente de um erro de perspectiva: da massa de leitores destes últimos autores é que surge a elite dos leitores daqueles, e nenhuma cultura realmente integrada pode se dispensar de ter, ao lado de uma vigorosa literatura de proposta, uma não menos vigorosa literatura de entretenimento."

Paes revela aqui o magnetismo da definição literária do literário, típica do sistema brasileiro, que nega assento ao artesão competente no âmbito do entretenimento.

Essa posição ecoa a de um autor como Siegfried Krakauer, para quem o "ornamento", metáfora para as fontes de distração, não é mero artifício, mas parte orgânica de uma estrutura, ligando num mesmo sistema simbólico pontas da realidade materializadas nos ambientes nobres e vulgares, nos modos crítico e lúdico de fruição. O sucesso dos best-sellers se deve à sua capacidade de responder a tendências difusas no meio social, que não se explicam por sugestão, mas ancoram-se nas condições sociais reais dos leitores.

Associemos, então, tudo o que foi dito à homenagem prestada por Coelho a José Mauro de Vasconcelos e Malba Tahan em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras. Em seu momento de maior consagração, Coelho demonstra afinidades com escritores que, como ele diz, não conheceram a glória --não necessariamente a glória de pertencer à ABL, mas a de ser aceito no clube seleto da Literatura Brasileira.

A posse na Academia, ponto de acúmulo máximo de capital simbólico, parece ter sido usada para garantir o mínimo até então negado, o que tanto revela uma apreciação mais realista de sua posição no campo literário como reconhece o peso exercido por seu polo erudito sobre aquele que testou seus limites tentando acumular todos os tipos de proveito.

Creio que a rejeição de que a obra foi objeto tem menos a ver com sua qualidade estética do que com a configuração de um sistema literário que precisa estreitar seus mecanismos de acesso para consolidar-se, recusando tudo o que ameace a definição local de literatura.

Se assim for, explica-se a recepção mais favorável de Coelho nos países em que o campo literário é mais maduro: seus livros são tratados com os mesmos critérios aplicados aos que ocupam posição semelhante à sua, numa estrutura mais densa, multipolar, capaz de incorporar os subsetores de produção ampla criticando-os a partir de sua intencionalidade própria.

Num mundo literário mais sedimentado, poder-se-ia lamentar a difusão internacional incipiente de certo tipo de literatura brasileira sem desconsiderar a efervescência internacional provocada por outro tipo de produção pátria.

Ganharia novo sentido o "não li e não gostei" com que o crítico Davi Arrigucci Jr. respondeu à revista "Veja" sobre Coelho --não uma desqualificação direta do autor, mas desinteresse pelo gênero. Mas talvez seja essa a condição para pensar o best-seller sem fazer pesar sobre o objeto as marcas da relação do leitor que se quer erudito com esse objeto.