terça-feira, 11 de março de 2014

MPB – Música Preta Brasileira

Uma coletânea da verdadeira MPB – Música Preta Brasileira, que não apela para Babulina, não corre pra chamar o síndico, e não convoca o rei, porque a carne não é Friboi.
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1. Ela Mandou Esperar (Cassiano). O Cassiano é o nosso soulman romântico por excelência, compositor de clássicos (“A Lua e Eu”, “Coleção”) que animaram as festas black do país, além dos pagodes da vida. Aliás, é um dos “elos perdidos” entre a tradição black e charme brasileira e o pagode romântico dos anos 90. Seu maior sucesso – “Primavera” - fica bem melhor com o Tim Maia, mas aí é covardia. Essa aqui é na pegada, e vale muito a pena.
2. Aceito Tudo (Di Melo). Di Melo é o pernambucano de um album só (Di Melo, 1975), que na época passou desapercebido, mas virou fenômeno na “época de ouro” dos downloads. Hoje se tornou clássico, sendo considerado o melhor albúm da black music nacional, com arranjos impecáveis do bruxo Hermeto Pascoal. Pesado!


3. A Casa Onde Ela Mora (Guilherme Lamounier). Esse mano de nome afrancesado que sumiu completamente do mapa tem um conjunto excelente de canções nos anos 70, que fazem parte da boa safra de black music brasileira. Esse aqui é um R&B muito bom, que fica pau a pau com “Não sabe o que vai perder”, do Rei.
4. Zazueira (Wilson Simonal). Culpado ou inocente? Ninguém sabe ao certo – nada foi provado. O que está mais que comprovado é o talento interpretativo inegável desse que é um dos mestres da música negra brasileira, grande como Tim Maia. Tem havido um justo resgate de sua memória, junto com a reabilitação da tradição musical negra brasileira. Os arranjos são do César Camargo Mariano, que depois vai fazer um bem danado pra MPB trabalhando ao lado da Elis Regina.
5. Marginal III (Paulo Diniz). Outro pernambucano que teve diversos sucessos ao longo dos anos 70, mas acabou desaparecendo. É dele a romântica “Pingos de Amor” (“Vamos ser \ Outra vez nós dois \ Vai chover \ Pingos de amor). Mas o maior sucesso dele é a incrível “I want to go back to Bahia”, composta em homenagem à Caetano Veloso, quando este estava no exílio.
Paulo Diniz – I want to go back to Bahia
6. Segredo (Wanderlea) – Nessa canção a eterna musa da Jovem Guarda está muito mais para uma Janis Joplin agressiva do que para a doce meiga ternurinha que vive à sombra (confortável?) eterna do rei. Muito mais livre, desejando libertação. Bluseira pesadíssima de primeiro nível, na belíssima composição de Luiz Melodia.
7. Acocha Malungo (Noriel Vilela). “Esse é o famoso dezesseis toneladas”. A regravação primorosa feita pelo Funk como le gusta chamou a atenção para esse cantor de sambalanço de timbre inconfundível. Possui também apenas um disco (“Eis o ôme”, de 1968), repleto de músicas ligadas a religiosidade afro e de sonoridade irresitível. Outro clássico perdido até a revolução digital.
8. Sou Negro (Tony Tornado). Tony Tornado é o cantor que mais explicitamente incorporou aspectos do movimento black power na música brasileira, e segundo relatos chegou a participar de encontros com os Black Panthers, durante o período em que viveu no Harlem. O negão evidentemente assustou, e foi exilado em 1970. No geral demonstra bastante competência em suas interpretações e, graças a seu potencial vocal e swing (chegou a conviver com Tim Maia), escapa daquela sensação de cópia mal elaborada que é muito comum na trajetória da música preta brasileira. Aqui soa despudoradamente como James Brown.
9. Nago (Trio Mocotó). Antes de mais nada, o Trio Mocotó, um dos criadores do que se convencionou chamar samba rock, a variante brasileira de black music de maior sucesso e que configurou definitivamente o padrão Ben Jor, teve origem em São Paulo, mais especificamente na mítica boate Jogral. O samba rock é filho de São Paulo, primo de uma vertente mais marginal e “sacana” da malandragem daqui. São inúmeros os sucessos do trio de talento inquestionável, e esse funkie ijexá psicodélico é um dos meus sons prediletos.
10. Pode se Queimar (Miguel de Deus). A carreira desse guitarrista baiano apresenta uma trajetória bem interessante. Em 1969 com a banda Os Brasões, que acompanhou importantes nomes da MPB  da época, grava o disco “Os Brasões”,  um clássico tropicalista. Em 1974, lança outro clássico, dessa vez inspirado na psicodelia dos Secos e Molhados, agora com a banda “Assim Assado”. E finalmente em 1977 lança esse que é um dos mais envenenados albuns de funk gravados no Brasil. Vale a pena conhecer também a pedrada dos Brasões, aqui interpretando Gilberto Gil.

11. Mandamentos Black (Gerson King Combo). Gerson aproveitou a onda black para se lançar, e acabou no ostracismo com a onda das discotecas, junto com o movimento Black brasileiro, gradualmente se transformando no movimento Hip Hop, de maior consistência ideológica. Em certo sentido, ele é um dois seus representantes mais caricatos, copiando expressões, trejeitos da black music americana, o que ajuda a explicar também o seu desaparecimento. Mas esse som funciona bem como manifesto, além de sintoma dos impasses do movimento black nacional.
12. Uma Vida (Dom Salvador e Abolição). Esse som aqui é saído diretamente de um dos melhores frutos que o encontro da black music com a então emergente MPB já produziu. O aclamado disco do pianista Dom Salvador, “Sangue, suor e raça”, de 1971, no qual a gravadora apostou graças ao sucesso de Tim Maia no ano anterior. O disco contou com feras como Oberdan (futuro Black Rio), o baixista Rubão Sabino, Serginho Trombone, Luiz Carlos Batera, o guitarrista José Carlos e o trompetista Darci. Vale aqui assistir essa apresentação da Elis Regina em sua fase mais negona, acompanhada pela banda.


13. Mundo deserto (Erasmo Carlos). No período em que ambos os Carlos estavam produzindo seus melhores trabalhos (é desse ano o antológico disco de 1971 de Roberto Carlos), Erasmo arriscava-se ainda mais na sonoridade black, e apresenta esse clássico. “Carlos, Erasmo”, de 1971, é seu disco mais Tropicalista e conta com as participações de Lanny Gordin, Sergio Dias, Liminha, Dinho, e arranjos de Rogério Duprat e Chiquinho de Moraes.
14. Sempre Existe Alguem (Trio Ternura). Grupo vocal surgido na onda dos grupos de ieieie, mas que logo embarcou de cabeça na sonoridade black. Gravou também em 1971 (ano de ouro da black music brasileira) um disco que se tornou outro clássico perdido. Contou com a produção de Raul Seixas, e apresenta canções de autorias dele e de Sérgio Sampaio. Essa aqui tem uma pegada mais blackspotation que é bastante incomum no Brasil.
15. Kabaluere (Antono Carlos e Jocafi). A dupla baiana é conhecida principalmente pelas trilhas de novela e pelo mega sucesso do proto-pagode (aliás, lindíssimo) “Você Abusou”. Mas pode ser que Kabaluere seja reconhecida por ter sido sampleada por Marcelo D2.
16. Tanauê (Ivan Lins). 9 em cada 10 brasileiros consideram o Ivan Lins um mala sem alça, com canções  tão bem feitas quanto chatíssimas. “Depende de nós”, novelas, Elton John piorado e coisa e tal. Quem sou eu pra discordar: sou brasileiro e não desisto nunca. Mas não dá pra esconder o swingue soul muito bem realizado do primeiro disco do rapaz (Agora, 1970, Forma\Phillips), bem representado por essa canção que encerra nossa seleção.
Enjoy!

segunda-feira, 10 de março de 2014

Carnaval é coisa séria

Por Gabriela Cardoso

Este título pode parecer estranho à primeira vista. Mas afirmo, ao menos, que Carnaval é coisa de gente comprometida. Principalmente no Recife e em Olinda. Comprometida com a folia, com as fantasias, com a produção, com o ganha-pão, com a religião.

Uma das evocações cantadas pela Nação Maracatu Tigre diz assim: “Carnaval tem seus direitos, quem não pode brincar que não se meta!”. Somente esta frase já daria uma tese. E, com certeza, muito já se estudou sobre o Maracatu, por exemplo. Mas o meu objetivo aqui é apenas registrar algumas impressões deste Carnaval que muitos chamam de “melhor do mundo”. Tarefa suada!

A multiplicidade de pessoas, cores, ritmos, manifestações e brincadeiras é tão grande que há de se estar atenta para não perder nenhum detalhes. Mesmo assim é impossível ver tudo. As andanças foliãs podem estar muito condicionadas ao(s) grupo(s) que se decide seguir, sejam blocos, shows nos palcos ou amigos.

Em 2011, na minha segunda ida, acompanhei o bloco “Segunda Tem Palhaço”, que sai da Rua da Moeda, no Recife Antigo, por exemplo. Decidir entre passar os dias em Olinda ou Recife já é difícil por si só. Apesar dos shows mais badalados, organizados pela prefeitura, acontecerem nas noites e madrugadas do Recife Antigo, durante o dia muita coisa acontece por lá também. Nas duas cidades (separadas pelo Rio Capibaribe) tropeça-se em blocos e bandas sem fim!

Há quem prefira passar as tardes em Olinda e as noites no Recife. Mas tenho minhas dúvidas do que seja melhor realmente. Creio que terei de ir mais vezes para decidir!

Olinda é realmente linda! Uma cidade que pulsa história e arte, e que tem vistas incríveis do alto de suas ladeiras. Agora, o Carnaval é tudo-muito-agora! Uma coisa realmente extraordinária! Para o “bem” e para o “mal”. Para a alegria e para a sujeira nas ruas, para a brincadeira e para o abuso, para a diversidade e para a exploração de classe. Afinal, o capitalismo também se alimenta da festa.

A maior parte das pessoas que frui o Carnaval é de classe média, turistas e locais, que podem pagar pelos serviços. Já quem trabalha vendendo coisas são os moradores pobres e negros das periferias e do interior do estado.

Mas estas pessoas também têm seus momentos de glória. Por exemplo, nos desfiles das Nações de Maracatu. São espetáculos suntuosos, onde estão presentes a tradição dos africanos nagô e dos bailes reais da corte portuguesa. As Nações são oriundas, em sua maioria, de terreiros familiares nas periferias de Recife e Olinda. São compostas por estandarte, orquestra de alfaias, caixas, ganzás e agogô, pelos passistas, puxador(a) dos pontos de louvor aos orixás, pelo rei e pela rainha, e por aquele que segura o guarda-sol sobre a cabeça da realeza. É uma representação de um desfile imperial, composta por negros das comunidades. E o figurino é riquíssimo, cheio de cores, veludos, brilhos e rendas. Mulheres e homens usam vestidos armados rodados, e dançam e giram ao som do batuque. Um espetáculo de encher os olhos!

Vale ressaltar que muitos dos homens fazem parte das nações como passistas são gays e travestis, desde jovens. Com isso, o desfile se torna um momento especial de expressão da diversidade.

E voltando a Olinda, não posso deixar de dizer que, em certos momentos, a cidade vira mesmo um grande mercado de carne humana. Literalmente, não há espaço para o recalque. Às vezes parece um show de horrores, como a tradicional festa dos tolos europeia. É muita gente mesmo! O tempo todo, o que abre espaço para todo tipo de “sem noção”! Mas é o ônus do Carnaval...

Mesmo assim, é lindo, encantador, arrebatador! É um momento fundado pelo pensamento mágico humano e pelas nossas raízes indígenas-afro-ibéricas. Os limites entre profano e sagrado se tornam muito mais tênues.

Há muitas crianças, por toda parte. Para os pernambucanos Carnaval é obrigação, é dever religioso, é família. Tudo respira festa! Não é como em São Paulo, onde Carnaval de rua é resistência de alguns guerreiros do amor contra a cidade careta. Se bem que percebo que este espírito vem crescendo a cada dia na capital paulistana. Que bom!

Mas em Recife/Olinda as pessoas nascem e se criam no Carnaval, geração após geração. Eles só perdem a grande festa por motivo de força bem maior.

O que mais posso dizer? Muitos amigos, muitas pessoas interessantes e lindas, mesmo nos momentos mais crus. Um evento de grandes proporções, onde é muito melhor sair fedendo do que morrer limpinho e cheiroso!