terça-feira, 14 de dezembro de 2010

O Crime de Lady Gaga

Eis o link para uma matéria interessante de Marcia Tiburi sobre o que ela denomina de pós-feminismo (o termo é meio exagerado, mas tem funcionalidade) de Lady Gaga.
http://revistacult.uol.com.br/home/2010/05/o-crime-de-lady-gaga/comment-page-2/#comments
Não vamos aqui reproduzir a matéria na íntegra. Mas postaremos os vídeos que são citados na matéria, intercalados com trechos desta e comentários nossos, sem indicação de autoria, como nos clipes.
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No vídeo de “Paparazzi” fica exposto o amor-ódio que um homem nutre por uma mulher, a invalidez à qual ela é temporariamente condenada por sua violência e, por fim, uma vingança inesperada com o assassinato desse mesmo homem. “Incitação à violência”, pensarão as mentes mais simples; “feminismo como ódio aos homens”, dirá a irreflexão sexista acomodada, quando na verdade se trata de uma irônica inversão no cerne mesmo do jogo simbólico que separa mulheres e homens.
Tarantino com Marlyn Manson. Com direito a citação de “Um corpo que cai” na hora em que o amante joga a moça do alto da sacada. Alias, a mesma discussão do clip está no filme. O imagem\corpo da mulher sexy = imagem da mulher morta, desejo final do masculino. O clip coloca várias imagens de mulheres\fetiches mortas (empregada, enfermeira), sem esconder que tudo isso é pra ralizar a equação Gaga=imagem=dinheiro. A solução final é a mesma que Tarantino vem propondo em seus últimos filmes, com a coroação da assassina, desde que continue posando gostosa\morta.
Se em “Paparazzi” o deboche beira o perverso autorizado psicanaliticamente (a mulher sai da posição deprimida ou melancólica e aprende a gozar com seu algoz, que ela transforma em vítima), em “Bad Romance”, “o vídeo mais visto de todos os tempos”, mulheres de branco – como noivas dançantes – surgem de dentro de esquifes futuristas para curar uma louca que chora querendo ter um “mau romance” com um homem. Um contraponto é criado no vídeo entre a imagem do rosto da própria Gaga levissimamente maquiado, demarcando o caráter angelical de sua personagem, em contraposição ao caráter doentio da personagem da mesma Gaga de cabelos arrepiados e olhos esbugalhados. Entre eles a bailarina sensual junto de suas companheiras faz o elogio do corpo que é obrigado a se erotizar diante de um grupo de homens.
A noiva é queimada. Sobre a cama, no fim, a noiva como um robô um pouco avariado, mas ainda viva, contempla o noivo cadáver. A ironia é o elogio do amor-paixão, do amor-doença e morte ao qual foi reduzido o amor romântico pela estética pop da ninfa pós-feminista. O feminismo só tem a agradecer.


A noiva vai para seu compnaheiro como quem vai para o abate. O expectador está representado pelos marmanjos para quem as moças rebolam, rastejam, imploram pelo amor, como máquinas ou, como prefere Gaga,like a dog. No final, o desgraçado frita na cama, incendiado, e Gaga fuma seu cigarro ao lado da ossada do que um dia foi (será?) um homem. Nesse clip, a mensagem é mais simples e direta, e a música é inferior.
Em “Telephone”, a estética eleita é a da lésbica e da pin-up. Ambas criminosas. A primeira por ser uma forma de vida feminina que dispensa os homens, a segunda por ameaçá-los com uma estética da captura (a mulher-imagem-de-papel, a mulher “cromo”, a mulher-desenho-animado que configura o conceito do “broto”, do “pitéu”). No mesmo vídeo o personagem de Gaga compartilha com Beyoncé uma cumplicidade incomum entre mulheres.
Esse sinal é dado no meio do vídeo, quando Beyoncé vai resgatar Gaga na prisão e ambas mordem um pedaço de pão, que logo é lançado fora como algo desprezível. A comida mostra-se aí como o objeto do crime. O vídeo é mais que um elogio ao assassinato do mau romance, ou da vingança contra o evidente amor bandido de quem a personagem de Beyoncé quer se vingar. Trata-se de uma profanação da comida pelo veneno que nela é depositado. O amor bandido é morto pela comida, uma arma simbólica muito poderosa associada à imagem da mulher-mãe, da mulher-doação, dedicada a alimentar seu homem na antipolítica ordem doméstica.
O palco é a lanchonete de beira de estrada como em Assassinos por Natureza, de Oliver Stone. O assassinato é o objetivo do serviço das duas moças perversas que, no fim do vídeo, dançam vestidas com as cores da bandeira norte-americana – meio Mulher Maravilha – diante dos cadáveres de suas vítimas, já que, além do amor bandido, todos morreram. Cinismo? Sem dúvida, mas como paradoxal autodenúncia.
Mas o maior crime de Gaga, aquilo que fará com que tantos a odeiem, não será, no entanto, o feminismo sem-vergonha que ela pratica como uma brincadeira em que o crime é justamente o que compensa? E, como ídolo pop, não poderá soar aos mais conservadores como um modo de rebelar as massas de mulheres subjugadas pela perversa autorização ao gozo, doa a quem doer?
Mais mulheres exibidas em condição de submissão, condição do gozo masculino. Dessa vez atrás das grades, em roupas bem curtas, com direito a censa de lesbianismo e briga de mulher. Tudo o que queremos ver, mas sempre com certo estranhamento - a própria Gaga - que ora parece um et, ora usa óculos feitos de cigarros, ora com um penteado feito com latas de coca cola. Signos deslocados.
Pois é, o "feminismo" agora também vende, assim como vendem as reivindicações dos negros na estética hip hop, representados aqui por
Beyonce. As citações aumenta, Kill Bill, Michael Jackson, Oliver Stone. Ao final, homens maquiados na cozinha, orquestrados por Gaga (assassina por natureza) a ampliar o escopo de sua vingança. Dessa vez, ela mata todos os que estão no restaurante multicultural, Negros, brancos, mulheres orientais, e dança alegremente vestida com a bandeira americana. Tudo em nome do amor, do cinismo, da mercadoria, e de si mesma.
Tarantino devia muito filmar um clip da moça.
Pra completar, um vídeo da gata ao piano, mostrando todo seu talento e versatilidade. Colagem de estéticas – a era da canção acabou? – e domínio total do espetáculo. Ela toca inclusive com o pé.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

A Arte Negra de Wilson Moreira e Nei Lopes (1980)

Dois dos maiores representantes do movimento samba de raiz dos anos 80, juntos, em um disco fundamental. Ao contrário do que prega o senso comum, uma das grandes questões do pagode anos 80 foi justamente a recuperação do clima mais roots, fundo de quintal, do samba como espaço lúdico, ritual. Partido-alto. O tom do disco é de recuperação das raízes. Só pela seqüencia matadora do início, quatro partidos clássicos, culminando com a antológica "Coisa da Antiga", já estaria valendo dinheiro. Mas tem também samba regional, pagode romântico, samba enredo, uma bela homenagem ao Mestre Candeia, samba de roda, tudo feito com grande qualidade. Um trabalho fino que segue na linha proposta por Mestre Candeia.

Faixas:
1 - Só chora quem ama - Goiabada cascão -
Mel e mamão com açúcar - Coisa da antiga
2 - Coité, cuia
3 - Gotas de veneno - Senhora liberdade
4 - Noventa anos de abolição
5 - Silêncio de bamba
6 - Samba do Irajá - Não foi ela
7 - Candongueiro
8 - Gostoso veneno
9 - Ao povo em forma de arte
Musicos:
Violão de 7 cordas - Dino
Violão de 6 cordas - Rogério Rossini
Cavaquinhos - Carlinhos e Alceu
Bandolim - Afonso
Trombone - Nelsinho
Clarinete - Netinho
Flauta - Geraldo
Acordeom - Julinho
Bateria - Aladim
Ritmo - Nosso Samba - Marçal - Luna - Eliseu - Geraldo Bongô - Caboclinho - Cabelinho - Testa - ZezinhoTrambique
Coro - "Nosso Samba"e "As Gatas"
Arranjos - Maestro Rogério Rossini
DOWNLOAD MEDIAFIRE
Créditos ao blog É ouro só

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

UM CORPO QUE CAI, DE HITCHCOCK, E A FANTASIA DA REALIDADE.

Em Um Corpo que Cai (Vertigo), o mestre Hitchcock está em sua melhor forma. Acredito que seu maior talento consiste em multiplicar camadas de significados sem que nenhuma delas rompa completamente umas com as outras, truncando o fluxo da narrativa. Vertigo é tudo o que Cristopher Nolan queria fazer em seu ambicioso A Origem, mas que foi perdido em um formalismo exibicionista. Aliás, revendo Metrópolis, de Fritz Lang, percebi que A Origem cai num problema similar ao proposto por aquele filme: como multiplicar camadas de significado sem fazer com que o público se perca completamente nas associações? A solução de ambos foi apelar para o didatismo, o que não tira a força de Metrópolis, especialmente por seu caráter alegórico que sempre direciona o sentido para outro lugar, mas empobrece muito a narrativa de Nolan, prendendo o espectador à forma e ao brilhantismo egocêntrico do diretor. Foi o preço pago pela inovação – as camadas de significado vão sendo inseridas bruscamente ao longo do filme por meio de cortes radicais que inserem novas camadas narrativas, e não uma multiplicidade de sentidos presentes desde o início. É o que Leonardo Di Caprio deixa bem claro, uma idéia bem simples (no fundo, uma questão de cunho comercial) que precisa se tornar um grande aparato hollywoodiano, o filme que assistimos. No frigir dos ovos, entretanto, a forma se sobressai e atoniza o conteúdo.
Desde a tomada inicial de Vertigo, Hitchcock deixa claro que seu assunto vai para além de (porém sem deixar também de ser) um simples caso de mistério. Ainda nos créditos iniciais a câmera focaliza o belo rosto de Kin Novak, para na sequência fechar em close primeiro na boca, e depois nos olhos da atriz. Está dado o mote das discussão que permeiam todo o filme. Áudio-visual, o próprio cinema, o processo de (re)constituição da história para o espectador. O crítico Ismail Xavier costuma enfatizar bastante essa dimensão do cinema de Hitchcock, a genialidade com que o cineasta coloca em cena um terceiro elemento, o próprio expectador, ou melhor, seu olhar – outro clássico nessa linha é Janela Indiscreta, em que o cineasta coloca como protagonista (de novo James Stewart, com cara de Ivo Holanda inglês, aquele sujeito absolutamente comum) um detetive que não pode andar, reconstruindo um crime a partir de pistas tiradas do processo de observação das janelas dos apartamentos vizinhos - fazendo com que seus filmes discutam seu próprio processo de constituição, requisito que os torna exemplares (ou quase) do cinema moderno, suscitando a admiração declarada de cineastas como Truffault.
No caso de Um corpo que cai, é clara a relação entre o detetive vivido por James Stewart e o espectador. O que acompanhamos no filme é a construção de uma fantasia, uma ficção feita para apanhar\cativar o detetive\espectador. No encontro inicial entre o detetive e o suposto marido, este constrói uma história que é uma total farsa, completamente absurda e inverossímil, que tornaria o filme mais próximo de um terror lado B mal feito. O detetive, como o espectador, a princípio não cai na lorota, mas por fim aceita a proposta que vai ser sua perdição: ao invés de negar completamente desde o início, aceita dar uma observada de leve na moça (igual aqueles filmes em que a gente diz, vou assistir só um pedacinho. Aberta essa concessão, tudo está perdido, e lá se vão hora e meia). No momento em que ele aceita o contrato, tudo se perde, e acompanharemos com ele a transformação daquela ficção inverossímil em verdade cinematográfica, com direito a história de amor romântica com macho protetor e fêmea inocente perdida. A genialidade do filme consiste entre outras coisas em não abrir mão por nenhum momento de seu caráter de história absurda - que fica ainda mais evidente pelo contraste com a rudeza da segunda parte, em que a moça é uma descarada (a típica mulher moderna para o cineasta, um tipo que ele detesta e sempre faz questão de desmascarar ou matar – veja Os Pássaros, Psicose, etc.) e o homem é um ser completamente em frangalhos. Acompanhamos a moça por cenários fantásticos típicos, como cemitérios, igrejas abandonadas, museus antigos, etc. A mensagem transmitida é bastante clara: vou construir para o detetive\espectador um cenário de novela romântica do século passado, só que deixando bem claro que não estamos no século passado, e fazer com que ambos embarquem completamente nessa fantasia e a sintam como realidade. Melhor ainda, vou nitidamente construir essa realidade na frente de seus olhos, e ainda assim você vai cair como um patinho. Alguém aí duvidou da morte da moça? Tanto o filme é sobre a construção desse olhar que o primeiro contato efetivo entre o detetive e a esposa só se dá depois de um longo tempo. Antes acompanhamos diversas sequências sem diálogo, em que a história é construída pelo diretor\marido para o detetive\expectador, até atingir seu clímax, quando Madeleine se atira ao rio, e seu salvador pronta e pateticamente corre para salvá-la. Sim, Hitchcock está nos tirando e manipulando o tempo todo nesse filme, desde o início.
Uma das cenas do filme é bastante paradigmática nesse sentido, sendo um dos marcos da história do cinema (Cristopher Nolan deveria ter mesmo feito um intensivão Hitchcock, e estudar essa cena por meses antes de se arriscar com A Origem, toda a idéia de multiplicação de camadas narrativas está contida nessa única cena), por conta da multiplicidade quase infinita de camadas de representação ali condensadas. É aquela em que o detetive segue Madeleine até o museu, e encontra a moça a olhar fixamente para um quadro, cujo figurino é bem próximo daquele que ela está usando no momento. Caso nos detivermos com atenção sobre aquilo que está sendo representado, é absolutamente impressionante a quantidade de multiplicação de olhares presentes na constituição daquela fantasia. Nós espectadores estamos observando o detetive que está observando uma mulher que finge (representa) ser Madeleine que pensa ser uma mulher do século passado que observa um quadro de si que por sua vez já é uma representação de alguém. Ao fim dessa quantidade absurda de mediações, o que temos não é a verdade, mas outra representação, o quadro, onde tudo começa\termina, nos devolvendo o olhar e (re)começando o jogo infinito de espelhamentos. O cinema e a vida como processo construção é a raiz do mistério encenado pelo mestre do suspense e do cinema.
Mas o filme ainda vai além – estamos apenas na metade da história – colocando ainda outras questões, como se não bastasse a reflexão feita sobre o olhar cinematográfico em uma nada convencional história de suspense. E aqui podemos compreender a admiração do filósofo esloveno Zizek, um heterodoxo marxista lacaniano que escreveu um livro inteiro sobre o cineasta, ou antes, em sobre como Hitchcock pode ajudar na compreensão da psicanálise lacaniana (Tudo o que você sempre quis saber sobre Lacan, mas tem medo de perguntar para Hitchcock – infelizmente sem tradução para o português). Pois é certo que acompanhamos a exposição do processo de construção dessa história estapafúrdia, fantasiosa, na qual embarcamos na maior boa vontade junto com o pobre detetive. Mas o filme coloca em discussão ainda um segundo aspecto: o que acontece então quando essa ficção claramente construída nos é tirada abruptamente? A resposta é dada por aquela cena que mais parece uma viagem de ácido - outra ousadia técnica do filme, que utiliza inclusive animação – depois do julgamento do reino masculino do qual o detetive é banido por incapacidade (o desmoronamento da ficção do macho romântico protetor). É a perda da fantasia – e isso é fundamental - e não a perda da realidade, que causa o Trauma na personagem. O trauma é o fim abrupto da fantasia, a emergência do Real. A mensagem do filme não é portanto a de que o cinema é uma ilusão em que o espectador é levado a um simples processo de fuga da realidade. Mais complexo que isso, a idéia que se sobressai é a de que essa fantasia (incluindo a cinematográfica) é uma componente estrutural fundamental de nossa realidade, dando forma a nossos desejos. A rigor não existe realidade sem o suporte da fantasia. O oposto da fantasia não é a realidade, e sim o Real, traumático.
Na sequência do filme, pós-trauma, acompanhamos o distúrbio psicológico do detetive, que teve sua vida arrasada, ficando por um longo período internado. Mas mesmo após receber alta, percebemos que ele não consegue se recuperar completamente, vivendo sempre a procura de tudo que possa lembrar Madeleine, sem conseguir dar um rumo para sua própria vida, e muito menos descobrir alguma verdade por detrás dos acontecimentos passados. Acompanhamos uma subjetividade estraçalhada, não um homem preso num mundo de fantasias, mas um home sem fantasias. É aí que Hitchcock opera uma inversão genial no gênero policial - em seus grandes filmes ele sempre insere um elemento que rompe com o gênero em algum nível – ao fazer com que o protagonista descubra a verdade e se recupere do trauma não indo atrás de vestígios e buscando pistas que permitirão a dedução lógica da verdade (modelo policial clássico), mas fazendo o caminho inverso, mergulhando outra vez na fantasia, reconstruindo-a como ela foi, enquanto farsa. É só quando ele consegue reconstruir Madeleine tal qual ela era para seu imaginário - o que implica em um processo de violência masculina e de submissão da mulher a esse imaginário, pois o olhar que se constrói no filme é masculino, e culmina com a negação mais absoluta da mulher, sua morte no momento em que encarna por completo o papel que a nega e constitui - é que pode finalmente superar seu trauma, conseguindo desvendar a verdade, com resultados também trágicos, diga-se de passagem, especialmente para a mulher. O filme trata do processo de construção da fantasia, e da fantasia cinematográfica pelo olhar, mas trata também do grau de realidade dessa fantasia, seu caráter de estruturação simbólica do mundo. Como mostra a cena do museu, nada existe para além da multiplicação infinita dos olhares e das representações, sendo a verdade a própria constituição desse processo. A realidade enquanto construção ficcional, ideológica, e o grau de realidade dessa ficção. O cinema e a Indústria Cultural não como máquinas produtoras de fantasias, e sim de realidades.
É pela complexidade das questões que suscita, sem perder seu caráter de entretenimento dos bons, que Vertigo é considerado um dos melhores filmes da história.
DOWNLOAD VERTIGO + LEGENDA (TORRENT)

terça-feira, 2 de novembro de 2010

A EXPERIÊNCIA DE ASSISTIR METRÓPOLIS COM ORQUESTRA

A experiência de assistir a um clássico do cinema mudo com acompanhamento ao vivo, remetendo à experiência cinematográfica de tempos passados nesse caso valeu mais pela projeção do filme em tela grande do que pelo aspecto musical. Não digo que esta de nada valeu. Valeu sim, especialmente por seu caráter de fetiche, a busca por uma experiência cinematográfica mais autêntica, tal qual vivenciada nos cinemas de antigamente, bem ao gosto pós-moderno de reatualização descafeínada da história. Isso sem falar que participar de uma sessão ao ar livre de um filme cult acompanhado por uma orquestra sinfônica é o suprasumo da “elevação” espiritual e bom gosto\nível sócio cultural – capital simbólico de sobra, o que não é pouca coisa e pode decidir eleições. Quanto à experiência em si, pode-se dizer que depois de alguns minutos o expectador nem sente mais a diferença entre o acompanhamento com orquestra e aquele que estamos acostumados no DVD, tornando-se óbvio do porque daquilo se chamar música de acompanhamento – algo semelhante acontece quando vamos assistir a algum filme em 3D, e após alguns minutos o seu cérebro deixa de apreender aqueles efeitos enquanto novidade, o que inevitavelmente acaba retirando um pouco da graça do esquema, caso o barato do filme seja exatamente o “efeito pelo efeito”. A execução da partitura pela orquestra não ocupa o primeiro plano e, caso o ouvinte mantenha nela sua atenção, é provável que se sinta desapontado, pois a partitura não é assim tão boa – tem uns jazzinhos aqui, outra coisinha ali, mas nada de mais. Acredito que seria melhor para o filme se o som de acompanhamento fosse algo mais experimental, futurista. Não algo radical como atonalismo ou música serial – ninguém merece 3 horas de atonalismo - mas alguma coisa caída para um Varèse, ou Shostakovsky.
Mas, se a novidade da orquestra não é lá tudo isso e desaponta um pouco pelo exclusivismo, a experiência cinematográfica por sua vez vale muito a pena: tudo em Metrópolis é grandioso e monumental. Sua produção durou quase um ano e meio e envolveu cerca de trinta e sete mil figurantes, sendo o maior orçamento na Alemanha até então. Além disso, seu fracasso foi tão estrondoso quanto sua ousadia, e o filme passou longe de obter o sucesso de bilheteria esperado, levando a produtora Universum Films, quase à falência. Sem dúvidas que isso se deve muito ao alto grau de ambição do projeto. O filme sobrepõe camadas múltiplas de significação, operação que pode parecer ao espectador atual bem evidente, quase didática, mas que na época deixavam o desenvolvimento da narrativa bastante truncado. Além do que, diz a lenda que o original possuía mais de 3 horas de duração, tempo extenso mesmo para os padrões atuais. O filme ainda investe em outras camadas de estranhamento, como o visual não realista, nos moldes do expressionismo, e em tomadas pouco usuais, próprias de uma época em que os caminhos cinematográficos não estavam ainda tão demarcados.
No geral, o esquema básico do enredo pode ser definido como uma boa ficção científica político-cristã. Aliás, é a mistura de ambas as dimensões, a política permeada por alegorias cristãs e seu imaginário infernal - o reino subterrâneo das máquinas e dos trabalhadores é o tempo todo relacionado ao inferno - que propicia alguns dos melhores momentos do filme, como a cena de dança bem psicodélica de Maria\Andróide, simbolizando um ritual de submissão à luxuria, ou a cena de acidente dos trabalhadores, em que a máquina é convertida na representação de um Deus pagão.
O filme é bastante longo (mesmo mutilado e com seqüencias perdidas) e seu início, centrado no entrelace amoroso entre o mocinho filho do empresário capitalista malvado (Freder) com a doce Maria, liderança espiritual dos operários cuja função é pregar a paz cristã e social, é bastante arrastado. Centra-se muito no padrão romance romântico água com açúcar, importante para o desdobramento posterior, mas que hoje em dia seria bem mais dinamizado. O filme porém vai ganhando em dinâmica na medida em que a tensão entre trabalhadores do subterrâneo x elite vida mansa se acirra, a tal ponto que a sequência final de destruição da cidade ainda hoje pode servir de paradigma para filmes-catástrofe, sendo bem melhor que muitas películas de destruição e desastre atuais. A longa sequência final lembra inclusive o mega blockbuster de qualidade duvidosa Titanic, e seu longo plano final de naufrágio. O filme de Fritz Lang consegue ser superior a este pelo uso de soluções de planos inusitados e técnicas que fogem ao padrão realista de representação, trabalhando com outros pólos de tensão e significação que o tornam mais dramático e estéticamente interessante. Os angustiantes e brilhantes cenários e tomadas expressionistas comparecem no filme com toda força, garantindo a permanência de algo de seu impacto.
Para além desses pontos de interesse mais formais, o filme apresenta, do ponto de vista ideológico, algumas complicações de grande interesse histórico, ao sustentar como meta uma perigosa aliança social democrata, risco mais claramente apreendido se tivermos em mente que a película chega aos cinemas em 1936, perigosamente próxima pois da emergência do nacional socialismo alemão, cujo padrão discursivo também apoiava-se na defesa de um elemento mediador entre proletariado e grande capital. Nas célebres palavras que fecham o filme e conduzem seu enredo: “O mediador entre a cabeça e as mãos deve ser o coração”. Pode ser também um certo Adolfinho, por que não? Tanto que, após assistir ao filme, Hitler convidou Lang para ser o cineasta oficial do regime. O católico filho de mãe judia Lang se recusou e foi pros EUA. Circula inclusive por aí, à boca pequena, que na verdade o final tal como conhecemos desagradava o diretor , sendo obra de sua mulher, esta sim nazista assumida. Por algumas razões essa solução que facilitaria imensamente uma análise ideológica mais chapada é de difícil aceitação. A solução conciliatória, por exemplo, é construída desde o início do filme, e não apenas no final. Além disso, a personagem mais malvada, feia, boba e terrível do filme, o diabo encarnado, é um cientista maluco judeu - Rotwang - que tem em seu laboratório uma estrela de David, ousa brincar de ser Deus e, o que é pior, quer desvirginar a virgem Maria.Ora, que ato pode ser mais definitivamente malvado do que desvirginar a própria Virgem Maria? A Virgem – mãe de todos! Inferno nele. A crítica ao capital empreendida pelo filme não tem origens socialistas, mas nacional-socialista, mais próximo do nazi-facismo, que retoricamente também fazia severas críticas à exploração do homem pelo capital.
Curioso pensar também que seria essa a ideologia do filme caso fosse filmado no Brasil contemporâneo, com a diferença de que o comportamento agressivo bestializado dos pobres não seria representado, dando espaço a uma figuração mais positiva, e algo paternalista. É o que acompanhamos nos inúmeros filmes de temática social adocicada, indicativos da permanência do desenvolvimentismo entre nós, mesmo que apenas em nível estético, talvez já como anacronismo. Mas aí já é outra questão. O que vale é que a ficção futurista de Lang (que não é a sua melhor obra) faz juz em permanecer como um marco na história da sétima arte, seja por seus pontos imediatamente positivos, seja por suas ambigüidades – como a sempre complicada questão de saber se uma obra estética ideológicamente reacionária pode ter valor artístico.

sábado, 2 de outubro de 2010

O conceito de ideologia em Zizek e algumas implicações políticas e críticas.






O impressionante nos escritos de Slavoj Zizek é o quanto há neles de aparentemente simples que acaba se revelando extremamente complexo - o que, aliás, está em pleno acordo com sua noção de que o mais superficialmente ideológico é por vezes mais Real que a própria realidade, dando uma reviravolta no conceito clássico de ideologia, mas já estamos adiantando as coisas. Por isso ele consegue tratar, em um mesmo artigo, da noção de suplemento do Derrida, da dialética hegeliana, do conceito de luta de classes em Marx e em Althusser, das diferenças entre as privadas européias e do Schrek. É certo que existe algo de espetacular nesse movimento, de jornalismo popstar, mas mesmo esse movimento é coerente com uma reformulação do olhar sobre aquilo que antes se podia descartar como mera "ideologia", no sentido de uma falsidade que oculta a verdade das coisas. Movimento que não é invenção do crítico, mas que nele atinge proporções e desdobramentos muito interessantes, sendo uma delas, e não a menos importante, a possibilidade de ser um intelectual genial e, simultaneamente, um popstar.

Por exemplo o conceito\coisa de "café sem cafeína", ou "cerveja sem alcool" funciona de modo bem claro, entre outras coisas, como atualização da noção debordiana (isso soa muito pedante, transformar o sobrenome de alguém em adjetivo) de sociedade do espetáculo, do real como materialidade sem substância. Uma imagem de apreensão quase imediata e dotado de uma atualidade bem jornalística, que deverá -para se manter - ser substituída sucessivamente por outras. Um conceito descartável, que perde em força na medida em que perde atualidade. Mas por conta disso, é mais imediatamente compreendido e transmitido do que a noção de sociedade do espetáculo, que já não é nenhum conceito metafísico incompreensível como "absoluto" ou "imperativo categórico". E a descartabilidade não é incompatível com a idéia de que os conceitos materialistas devem impregnar-se de historicidade, sendo a necessidade de atualização uma necessidade intrínseca.

Apesar de sua maior intelegibilidade imediata, as consequências que Zizek extrai de seus conceitos operam verdadeiras reviravoltas em algumas categorias clássicas, revelando assim, grande complexidade - complexidade que, por seu estilo midiático, é tornado espetáculo, exatamente o jogo por ele proposto de encontrar o Real do ideológico. O exemplo do café descafeinado, por exemplo, é mobilizado para dar conta da nova situação da ideologia nas sociedades pós-modernas, aonde as coisas perdem sua substancialidade, tornando-se mera imagem espectral. As coisas surgem desprovidas de peso, de materialidade, e isso coloca um problema para a idéia de que o ideológico é aquilo que oculta o real, cabendo à crítica desmitificar a máscara ideológica e descortinar a Verdade; nesse atual estado de coisas o real acaba por se tornar, ele próprio ideológico. Fazer a crítica da ideologia mostrando o real por detrás das aparências termina por justificar a própria ideologia que, cinicamente, se constitui a partir dessa apropriação do real.

Nesse contexto surgem dilemas éticos complicados. Por exemplo, denunciar um caso de pedofilia e revelar suas motivações econômicas e sociais, mostrando o quanto esse gesto de negação sadomasoquista do outro tem relação direta com o modo que se estrutura a sociedade capitalista, pode estar absolutamente correto do ponto de vista de sua verdade histórica. A questão é que essa denuncia, essa historicização acaba cinicamente por servir como justificativa do ato - no limite, a questão não é a ação do pedófilo, mas o próprio Capital, que exige uma reformulação de todo sistema, etc. A historicização serve como justifica para relativizar o horror do gesto, que é históricamente determinado, evidentemente mas precisa, em nome de certa postura ética, ser tomado enquanto absoluto. Talvez a postura ética mais adequada nesse caso seja dar uma caráter trancendente ao ato, se recusando a historicizá-lo. Ou seja, agir ideologicamente, de maneira deliberada, talvez seja a única forma de se atingir a verdade. Creio que é por aqui que podemos entender a "defesa" que Zizek faz do fundamentalismo (o que não quer dizer que ele opte por ele).

Uma coisa parecida se dá com relação as cotas para negros e pobres na universidade pública. O principal argumento contrário é aquele que diz que a questão deve passar por uma reformulação total do ensino básico, e que as cotas seriam um mero paliativo. De fato pode ser isso mesmo, essa é a verdade - a coisa pode parar por aí, no paleativo - mas como a verdade é já em si, ideologia (a realidade simbolicamente constituída), a transformação da realidade passa por uma re-ficcionalização; a criação de uma ficção (medida paliativa) em que negros e pobres entrem na universidade sem a transformação das condições de base do país pode ser o meio (apesar disso não ser uma garantia) pelo qual essas condições se transformem. Ao menos, uma transformação mais rápida do que esperar por uma mudança espontânea das bases.

Portanto, a simplicidade da imagem\conceito de Zizek carrega consigo uma refuncionalização profunda, via Lacan, dos conceitos de realidade e ideologia - a realidade enquanto simbolização comporta intrinsecamente um movimento ideológico de ocultamento do Real, que retorna enquanto fantasmagoria. Retorno esse que pode assumir a forma de... ideologia.


Esse é o segundo movimento conceitual, ainda mais complicado que o primeiro. Na verdade, trata-se de seu desdobramento lógico: se a realidade é, em si mesma, ideológica, isso significa que o ideológico - tchan nan - é, em si mesmo, real. Com isso chegamos na cultura de massas, para alterar radicalmente a questão que se coloca para aqueles que procuram interpretá-la. Tomemos um caso de amor comum numa novela de Manoel Carlos ou qualquer outro, daqueles que superam a separação entre as classes, por exemplo. A crítica ideológica tradicional iria mostrar (o que é um passo necessário e fundamental, revelar o obsceno do ideológico) que, longe de superar a distância entre as classes, aquele tipo de amor, na medida em que é expressão do modo de construção da subjetividade burguesa, é a condição mesma da separação entre as classes, seu reverso inconfessável. Essa seria, pois, a verdade da ideologia, o lado obscuro da novela, sua mensagem subliminar.

O que Zizek propõe é que esse é apenas um primeiro movimento de aproximação da ideologia, pois, seu reverso - lido aqui enquanto verdade - é revelado também enquanto ideológico pela verdade expressa no amor da Rede Globo. A questão radical é compreender o que o amor rede Globo comporta em si de Real - não conseguir ver como o amor Global e a miséria dos pobres são complementares, mas como nesse Amor está inscrito as marcas daquilo que, em seu nome, não pode ser revelado. Qual o evento traumático inscrito no amor global e em seu reverso complementar, a miséria capitalista, e que não se resume a nenhum dos dois. A crítica da cultura de massa deixa, assim, de ter uma função de denúncia - pois a denúncia é hoje a base da ideologia (e aqui no Brasil, desde sempre a crítica de do caráter meramente ideológico da cultura dos e para os pobres tem servido para uma exclusão sistemática dessa cultura de um campo de reconhecimento simbólico) - para ter uma função de reconhecimento. Não a realidade por detrás das aparências, mas o Real da aparência, da realidade que se constitui ao redor de seu trauma fundamental, oculto\expresso nos intervalos do ideológico e da realidade.

"Estamos lidando aqui com a topologia paradoxal em que a superfície (a "mera ideologia") está diretamente vinculada com - ocupa o lugar de, representa - aquilo que é 'mais profundo que a própria profundeza', mais real que a própria realidade" (ZIZEK - "O espectro da ideologia").

O que um beijo hetero, branco, num casamento de uma novela das oito tem a nos dizer - não aquilo que ele oculta, os negros, os pobres, a falsidade ideológica do matrimônio, mas aquilo que ele mostra - que escandalizaria e forneceria os pressupostos para o esfacelamento de toda a sociedade burguesa? Esse é o verdadeiro desafio.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

O que ocorre hoje com a USP ?

Texto de um outro camarada, sobre os rumos cinzentos que vem tomando a maior Universidade da América Latina.



O paradoxo de se estudar na universidade pública hoje é que ela é ruim, mas você não pode falar pros outros, primeiro porquê em geral os outros lugares estão piores, a tal ponto de achar que você está na Suíça e segundo porquê isso atinge o próprio processo de financiamento de onde estamos. Mas quando você acha que dá pra avançar num debate mais qualificado sobre o que se quer de fato e para onde vai essa velha senhora, a USP.
Aparece um maluco rodopiante cujo projeto é por todo mundo no bolso do paletó e colocar etiqueta de preço pra fazer média com algum velho esclerosado que não percebeu que o neoliberalismo não deu certo no mundo como modelo de gestão e você se descobre envolvido numa luta infinita para manter o que resta de bom, útil e público, pois, na verdade, esse lugar e o que ele faz é de todos aqueles do qual foi extraído trabalho pra esse lugar existir.
E público = político, mas aí você se vê brigando com uma cadeia de pessoas numa hierarquia um do outro que, mesmo aparentemente parada e que vai ficar deixando a coisa como está, pra não melhorar e nem piorar, descobre que toda essa organização caminha para se autodestruir, saltando noutra coisa indefinível no momento, mas que se apresenta como alienação política (das decisões dos próprios destinos) e teórica dos rumos dessa instituição que vai se tornando um trambolho gigante destruindo o que estiver no caminho.
Isso produz uma tensão que faz convergirem às vezes mesmo os de interesse puramente científico e acadêmico que prefeririam o sossego para trabalhar que lhes é propício para a tarefa, mas, mal percebem estes que vão sendo enredados por malha...s de procedimentos burocráticos que os impedem de fazer qq coisa. Mas como tb odeiam militantes e gente que se move muito rápido, preferem apostar na inércia, o que nem sempre ocorre.


A USP prefere se ver como uma instituição medieval, apesar de ter 75 anos, o que atestam alguns hábitos. Mas isso é pouco tempo para uma instituição que pode se esvair no ar, miraculosamente, numa canetada que atinja o ponto certo , do mesmo modo que surgiu.Por outro lado os militantes tem perdido espaço, especialmente quando se tratam de questões que envolvem salário e assistência estudantil, pois valores pressupostos como sociais, não são mais evidentes, assim como a identificação com quem sofre, é agredido ou sofre punições arbitrárias.
Para se manter tal qual uma avestruz, com a cabeça no buraco, respostas agressivas aparecem, dando um apoio passivo a esta nova fase aparente sem entender que o que fazem dá margem a atuações de representantes que fazem um papel de Arakiri coletivo, no centro do orifício decisório.Acaba assim a especificidade das áreas, assim como seus tempos de trabalho, reflexão e interação, assim como a perda de contato entre gerações. E aquilo que pressupunha: certa liberalidade, certa troca, certo fazer conjunto em grupos de estudo e outros. Tempo em que o saber e o fazer tinham um sentido conjunto.
Hoje olhando os jovens, tristes e cansados, parece que todos desistiram de tudo e ninguém mais acredita uns nos outros, dando margem aos lobos à solta, agora, ainda mais, em que igualmente não dispomos também das velhas corujas e raposas vigilantes ao nosso favor, sábias que eram em identificar o macete das estruturas e os advinhas das coligações do poder em ato.
Talvez porquê ninguém queira saber mais e, de fato, o que deveriam fazer, caso as coisas ficassem como estão é muito importante e é o resultado do trabalho de uma vida. Mas elas não ficam, não quando as rodas giram no sentido anti-horário. e não se entende onde se está, para onde se vai e o que está se fazendo.
O tempo passa e as estruturas se fecham, são ciclos longos os das instituições, mas eles, quando se completam, parecem inflexíveis. E sem estas fendas e ranhuras onde as pessoas se encontravam e esticavam o rosto para buscar oxigênio de fora ou pra fazer passarem coisas de uma lado para outro do muro que cerca este estranho jardim, o quê fazer ?

Ainda mais quando, se qualquer um se mover, será alvo da execração geral. O que ocorre ? 

Porquê há algo como uma fobia contra a ação contrária aos avanços do apodrecimento proposital desta estrutura ou ainda que força ganhou esse medo de agir que tomou a opinião dos estudantes em geral num grande grau de desligamento entre as coisas que, em sua essência política, social e financeira, estão ligadas, como a pauta de reivindicação política do financiamento que é público e do que se faz com ele, do conteúdo e dos pressupostos políticos da pesquisa aplicada, ou seja, como o estudante e o professor aqui, assim como muitos funcionários se distanciaram daquilo que eles fazem e da reflexão sobre o que fazem para agir ?

E mais ainda, porquê as ações se tornaram espetacularmente radicais sem atingir o âmago das questões da decisão política e acadêmica da universidade e criando uma aversão nos demais estudantes e professores ? Porquê toda e qualquer pauta menor, desde salarial ligada a promessas não cumpridas, logo, contra o engodo, a injustiça nas questões cotidianas e outros são levadas a uma radicalidade a ponto de dividir parte da comunidade acadêmica, mesmo que esta se intitule esquerda e ligada aos trabalhadores ?
Sabemos do isolamento das esquerdas na USP, mas porquê elas se isolaram ? Porquê não formam e informam mais ? Ou elas é que foram isoladas por um novo perfil estudantil e professoral ?
É um sinal dos tempos, da mudança do interesse político que se volta à direita, ao contrário do comportamento do resto da população que tende à se identificar vagamente com uma esquerda institucional e aparentemente diminuindo o espaço e aprovação popular da direita institucional ? (A universidade então seria em seu perfil intelectual o negativo da sociedade ?)
São os grupos políticos que se tornaram sectários e se fecharam buscando apostar sempre na atuação brusca enquanto outros grupos preferem investir em questões eleitorais externas à universidade ? Se é isso, de fato, ao longo dos anos mudaram seu comportamento ou não ?
O quê aconteceu ?
Após as últimas decisões do C.O. É importante refletir sobre isso, pois tempos novos virão e quando todas as estruturas se moverão, será impossível ficar parado e buscar uma posição será uma opção em movimento, mesmo que não se perceba.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

O fantasma da pequena área (1\2)



GALERA, SEGUE UM TEXTO DE UM CAMARADA QUE ERA PRA SER PUBLICADO AQUI NA ÉPOCA DA COPA, MAS QUE EU VACILEI E ESQUECI COMPLETAMENTE. MAS POSSO GARANTIR QUE ELE NÃO PERDEU EM NADA SUA ATUALIDADE, NEM MESMO PÓS POLVO PAUL E MICK JAGGER FDP.
Este texto surgiu como comentário à notícia sobre a mais recente briga de Kaká e Juca Kfouri. Segue abaixo o link

http://g.br.esportes.yahoo.com/futebol/copa/blog/daredacao/post/Kak-sai-do-tom-e-ataca-Juca-Kfouri?urn=fbintl,250361#mwpphu-container

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1.Futebol, política e entretenimento
Futebol e religião se misturam sim no Brasil. E, nessa mistura, são mais políticos do que as coisas públicas por aqui. Se política quer dizer "a maneira como a população trata assuntos de interesse público", no futebol seus desejos estão muito mais bem representados do que na política e no noticiário noturno. Inclusive com base na história recente. Há restos de demanda popular no Corinthians; é possível ler o processo de ascensão social dos imigrantes italianos no Palmeiras; a Portuguesa tornou-se um time menor ao mesmo tempo em que o sobrenome português tornou-se um detalhe irrelevante nas certidões de nascimento; todo mundo no "interior" do Brasil é flamenguista justamente porque o Flamengo é o time do povo só no Rio, estado-síntese do espírito malandro nacional. E, finalmente, o elitismo democrático sãopaulino equivale à aura cosmopolita do estado carro-chefe - a voraz locomotiva - do país.

Não dá pra ignorar esse tipo de "coincidência" entre o que se chama a "tradição" dos times e a maneira como cada brasileiro se compreende. São marcas do processo histórico. É disso que se constituiu aos poucos a firme relação entre o jogo e as identidades no Brasil. A ignorância sobre a função simbólica do futebol torna-se portanto um problema do ponto de vista da compreensão do país. Uma problema porque outras diversões chegam à rodo com a internacionalização do mercado e desempenham funções emelhantes; porque hoje falar de futebol não significa necessariamente não ser preconceituoso e compreender bem a cultura popular.E, finalmente, porque o próprio futebol já não é o que era antes, já não está mais tão evidentemente ligado à vida prática no país, e, nessa falta de vínculos, serve melhor à indústria do que a quem quer entender o futebol.

Ou seja, se hoje em dia muito pouca gente torce pelo seu time pelos motivos acima elencados, esse é um processo induzido que enceta também a dificildade de compreendê-lo como fenômeno real. Quanto mais o futebol se torna um espetáculo gigantesco; quanto mais ele produz trilhões e segmenta-se em mil formas de fruição, menos o ritual dos campos tem a ver com a vida real das pessoas que, no entanto, sustentam-no com um esforço de dedicação afetiva jamais visto. Justamente isso é que permite dizer que, sim, o futebol é político, mas com a ressalva de que, no futebol como na política, as decisões que compõem as verdadeiras regras do jogo estão cada vez mais além da consciência das pessoas que cada vez mais o sustentam como espetáculo.

2. Sob o viés de quem veste a camisa

Pois bem. Compreendido sob o viés do torcedor (ou fã - fanático - do futebol), esse processo coincide exatamente com o da transformação do "futebol-arte" em jogo multimilionário, globalizado e já não tão baseado no talento. Choram todos os que veem partidas medícores durante o ano inteiro: nenhum jogador hoje em dia tem o talento que tinha um Pelé. De fato, isso é uma verdade. Coerentemente, os torcedores já não são como antigamente, conhecem as regras, têm camisetas, vão aos estádios no ônibus da organizada, mas entendem quase nada das minúcias da "grande arte". Pouco se pode apagar desse fato. E justamente por isso as queixas dos fãs são tão inócuas quanto o senso de realidade dos comentaristas que manda valorizar o jogo médio atual (e assim conservam seus empregos).

Entretanto, por mais que o futebol tenha se tranformado em uma diversão razoável à custo de tornar-se incompreensível, sobrevive ainda no ato de torcer justamente a mesma parte de idealização que caracteriza as queixas dos antigos pelo fim dos "tempos áureos". No fundo, é como se a casca de truculência e encantamento ficasse e o próprio futebol se esvaísse. Ora, isso só faz provar o quanto mesmo o menos encarniçado torcedor não pensa nas coisas que sempre sustentaram-lhe o alto valor na cultura brasileira. Discute-se superficialmente as partidas; comenta-se com tédio a política; a religião parece uma prática arcaica, e o espetáculo continua.

Claro. Pensar sobre futebol contraria a própria essência do costume de "torcer", com a qual, para gostar desse esporte ao mesmo tempo democrático e de tudo ou nada, cada simpatizante precisa se comprometer. Afinal, foi para estar afinado com a vida no país que seu "espírito" procurou o futebol. E ele não há de abandonar o achado tão cedo.

Não é culpa dele. O poder dessa crença, em si um poder profundamente político, é grande demais. Ao empolgar-se com futebol, o torcedor carrega para dentro de si essa magiquinha que reforça o vínculo instintivo e misterioso entre a beleza dos chapéus do Pelé e o espírito profundo do Brasil, cuja imagem mais perfeita está naquele passado de tolerância, labilidade e desrecalque que fez a glória da cultura brasileira como um todo. Por sua vez, essa mesma imagem, através da inconsciência e do ardor amador do torcedor contemporâneo, sustenta ilusões preciosas para a manutenção do status quo no presente. E isso tanto mais quanto menos se encontra nas ruas um rastro sequer do belo país.

Nesse sentido, não é mesmo permitido a nenhum torcedor tocar no passado do futebol. A todo preço deve ficar incólume o tempo em que meninos de rua, curtidos na cultura local, transformavam-se do dia para a noite em semi-deuses do esporte. Sim, no fundo sempre houve e sempre haverá um anjo dormindo no espírto de cada grande craque do passado. E todos sabem que a substância divina que anima os anjos é coisa secreta, inacessível a olhos e escrutínio humanos. Quando convém à ordem divina, no máximo Deus manda descer seus emissários à pequena área. E ali, tocando de súbito o ombro de uma jovem promessa, eles fazem irromper uma dessas jogadas que, hoje, não deixam de trazer um quê irremediável de saudade dos velhos tempos.

Inútil sugerir que em tal mistificação entra tanto de religião laica quanto entra nos gordos dízimos que Kaká envia todo mês para a Universal do Reino de Deus. Isso não parece chamar a atenção de ninguém. Exceção feita ao público que, muito embora não veja graça no jogo, involuntariamente acompanha um pouquinho de futebol, já que, afinal de contas, da graça e da desgraça divina ninguém consegue se esconder. Pois bem. Por todas essas razões arrisco dizer que somente a esse público recalcitrante está dado enxergar como de fato funciona a religião futeboleira lá dentro do coração do torcedor. E mais: juro de pé junto que justamente por isso é que Juca Kfouri, o anacoreta do futebol, persegue o impulso supostamente desespecializador de Kaká (aliás, seus comentários automaticamente lançam contra o jogador os mais ferozes leões da mídia eletrônica impessoal, arena onde nenhuma difamação é forte o bastante).

3. Nas trevas do coração do guerreiro

Então, vamos lá. Como se comportam esses 150 milhões de corações?

Bom, exatamente como a religião hoje faz menos, o futebol desvia a suas mais intensas vontades para o além-morte da arena sagrada, o estádio, onde ocorre a disputa pela honra que, na Terra, é impossível não macular. Ou seja, o fã de futebol, exatamente como o crente, nunca é um fã desinteressado. Ele toma parte em apenas uma forma de salvar-se inimiga de todas as outras, mas à brasileira, em esfera imaginária e com duvidoso respeito pluricultural às diferenças. Mesmo ciente de que aquilo não definirá sua vida real, ele se vê bem representado pelo seu proselitismo a cada campeonato. Pois se as brigas frias e diárias da vida não guardam rastro das grandes aventuras que o torcedor planejava quando menino, as dos jogadores preferidos conservam-nas oniricamente. Mas o movimento entre sonho e vigília é duplo, neste caso. O fato de o torcedor se empenhar na contemplação do rito sem poder abrir mão da distância contemplativa cobra direitos na vida real. Daí porque, mesmo sem saber para que time torcem os que lhe cruzam o caminho (ou quem são exatamente eles), o torcedor decodifica a vida enquanto embate geral entre o bem e o mal, onde guerreiros constituídos segundo tradições diversas estão brigando para cavar suas vitórias tanto quanto ele. E para alcançar tal fim valem tanto as boas obras quanto o arbítrio de Deus.

Em suma, admitido como uma diversão inocente, afirmado como disputa real pela felicidade imaginária, o futebol termina por ratificar a tomada de posição do torcedor na guerra incruenta sobre a qual se sustenta a vida semi-civilizada das camadas médias no Brasil. E nesse processo troca todas as formas modernas de se conceber a sociedade - com suas liberdade e opressões reais - pelas pré-modernas, ligadas às raças, tradições e compromissos culturais. Brincando um pouco, a agregação dos negros pela afirmação racial pode ser um sonho desmentido pela políticas culturalistas que trasnformam seus louros em formas de luta individual; o cultivo de tradições familiares pode ter se tornado uma piada no brechó da Vila Madalena cujos proprietários são uma família de gaúchos; os bolivianos são escravizados no Bom Retiro só porque são os mais recentes imigrantes. Mas o futebol ainda vive de fazer crer que o espírito brasileiro está na ginga do capoeirista; que o sul é um monobloco cultural separatista; que os bolivianos são os verdadeiros nativos da america latina e, como tais, cativos do poderio eurocêntrico.

Na terra em que brasões sempre foram exibidos para encobrir as negociatas e humiliações que as familias emigradas tiveram de cometer ou sofrer, esse é o verdadeiro espírito heráldico do torcedor.

O fantasma da pequena área (2\2)




4. O apelo comunitário do futebol - futebol e religião antes de 1960.

Mas se o futebol é como a religião, também a administração do futebol é (e sempre foi) como a das “repartições religiosas” – as igrejinhas e associações espiritualistas. A alucinação diária do torcedor não é sem fundamento. O próprio futebol espraia-se como instituição real. Sem deixar de ser um rito esportivo, mas tornando-se objeto de valor exatamente por isso, este jogo troca trabalho de fé por rendimentos.

Já trocava quando o Brasil ainda era uma feirinha de bairro e ainda troca agora que ele é uma loja de conveniência. Estou falando do dízimo, sim, que os ateus, os católicos e os orientalistas tanto criticam, mas também e principalmente de toda a estrutura de subsistência real da fé que é pressuposto mundano de qualquer atividade religiosa. Aos times de futebol antigos equivalem as irmandades e os terreiros; aos times modernos equivalem as grandes igrejas evagélicas atuais. Algum segredo nisso? Acho que não. Entretanto, a maneira como essa esquisita relação entre espiritualismo e futebol no caso do Kaká enerva a mídia e os torcedores "esclarecidos" tem algo de "secreto". Algo que a história do futebol (e do país) soterrou e que, de repente, vem à tona. O que será isso?


Vamos ao passado, então. E segure-se, coração patriota... Como se vivia a religião no Brasil antes da esmagadora ascensão das igrejas evangélicas? A nossa geração só vai se lembrar disso, lembrando como na infância as igrejinhas de bairro e as sacristias agrupavam o pessoal das redondezas em uma cultura comum. Vestígios dessa verdadeira rede de relações sociais de classe média sobreviviam nas barraquinhas de bingo e de tiro ao alvo das quermesses que hoje se realizam em pátios de igreja só por costume. Em meio às barracas de pipoca e algodão doce, entre uma e outra dentada no pãozinho com carne de panela, sempre aparecia Dna. Marta com uma rifa. E a vizinhança fazia o sinal da cruz esperando que a prenda fosse gorda. Função semelhante, acredito, desempenhavam (e, talvez continuem desempenhando) os terreiros e os sambas em bairros mais pobres, onde a vida religiosa, como no centro, nunca pôde se despregar dos pequenos empreendimentos. Mas como estamos, neste caso, nos anos 80, é claro que tudo isso já tinha a cara de diversão inocente, feita para esposas e crianças. E é claro também que a ela correspondia - como coisa mais séria e viril - o futebol.


Acontece que essa maneira "comunitária" de se viver a religião no Brasil não tem nada de gratuíta. Ela vem do abismo entre a cultura da elite e dos escravos, da separação entre o culto sério e o culto vulgar, do hiato entre a religião santa mantida às claras na capelinha do sinhô e a que sempre esteve imiscuída em negócios de providência miúda. Uma divisão que se tornou definitiva quando a igreja foi cortada dos assuntos públicos, processo que aqui nas nossas bandas foi levado à cabo pelo Marques de Pombal, ainda no século XVIII.
A hora era perfeita. Constatava-se o desenvolvimento do mercado e das camadas médias ligadas à mineração. Constatava-se igualmente que a igreja continuava suprindo essa nova gente de recursos e assim tornava-se mais importante do que a coroa - que só queria saber de derramas e outras extorsões. Ora, feito o desligamento, retirava-se da igreja a capacidade de articular a gente miuda das lavras aos bens de usufruto público que mais e mais ela iria reclamar. Não custa lembrar que a concessão esclarecida vinha depois de outras tentativas de pacificação menos sutis - como o esquartejamento do oligarca que, para pensar melhor, propagava ideais republicanos no Brasil colônia, Tiradentes.


Mas cortando a cabeça da igreja, nem por isso os membros deixavam de funcionar. Noutras palavras, sob a proibição da coroa, a religião como administração comunitária de benesses sobreviveu sob a forma daquilo que até hoje se pode constatar muito presente em Minas Gerais: as irmandades. Em que consistiam as irmandades? Em agregações filiadas santos padroeiros, por sua vez correspondentes a coordenadas "mudanas" como raça, pertencimento local, ofício, etc. A igreja não provia mais os filhos de mascates, tropeiros e mineiradores de escolas, mas a comunidade ainda sobreviva nas trocas de bens menores e outros socorros. Sendo menos neutro, as irmandades eram organizações que de maneira tão pouco declarada como a do Estado - só que nas esferas que o Estado já abandonava - tinham a função de "salvar e abandonar" conforme critérios de identidade e interesse próprios. Em suma, sob a base comum de crença, dentro da qual os grupos divergiam na interpretação do culto, a religião desenvolvia-se de acordo com as redes de identidades muito complicadas que se desenvolveram neste país multirracial e de contorno de classes pouco claros. E nesse contexto, a cada comemoração, as facções pugnavam em torno da salvação celestial, que, na prática, equivalia à ajuda mútua e a favoritismos. Daí porque, longe de compartilharem a riqueza, sob formas de juízos tão seguros e equânimes quanto o jogo e senso de solidadariedade cristã, as pessoas competiam pelos prêmios que, dependendo da situações, permitiam sobreviver ou desoneravam a renda incerta das lavras de alguns poucos gastos. É óbvio que quem tomasse maior parte nos negócios carolas garimpava às bênçãos mais generosas.
Pois bem. Acontece que a mesmíssima coisa, um século e meio mais tarde, dava-se em torno dos times de futebol de várzea. Alguns devem se lembrar da aura revestindo um tio ou primo que batia uma boa bola. No interior e nos bairros operários de São Paulo isso é muito frequente. Para os netos e bisnetos dessas potestades da várzea local de 1940, esses seres eram criaturas de exceção. Eles superaram as adversidade da má origem e ganharam a vida às custas do talento que Deus lhes deu, blablablá. Um pouco por isso, ainda em 1980, quando o filho nascia, cada família "torcia" para que o moleque fizesse pelo menos 30 embaixadas de olho fechado. Claro. A tal dádiva de Deus tinha um significado muito preciso: o talento do menino há pouco implicava também possibilidades na vida. As notícias de pobretões furando as condições e chegando a times de vulto internacional eram, obviamente, muito escassas; assim como havia sido um dia a distância entre a vendinha do seu Zé e, digamos, o truste dos Rothchild. Noutras palavras, como o capitalismo antigo não era internacional na escala que é, o futebol ficava na pequena escala que sempre ficou enquanto estava dividido como passatempo de grã-finos e cultura popular: como exceção, era caminho de intensa possibilidade de ascensão social (Garrincha, Pelé); como regra, era uma forma de gerir os restos da produção nas camadas médias e baixas. Mesmo no século XX, quando os grandes times começaram a se desenvolver, essa cultura local é que dava sentido ao grande espetáculo ouvido com fervor nos radinhos de pilha. E por isso, acompanhar o rito diário do grande futebol significava reforçar como legítima a outra prática: a das peladas semanais que, se botavam pouquíssima gente pra jogar com Pelé e Rivelino, salvavam muita gente de apuros e, principalmente, condenavam à mendicância e à cadeia um outro tanto.

Ora, é justamente essa base social nada romântica do futebol que sumiu de vista. Não só da consciência do torcedor como também da fachada limpa e apresentável do jogo atual. Neste exato momento, cada homem que veste uma camisa de time de bairro procura a iluminação súbita de seu craque multimilionário, cujos lances mais memoráveis ele tem gravado em cassete para os dias em que o mé não basta. E haja mé: se antes, exatamente como as irmandades, os times de várzea propiciavam ganhos a partir de uma disputa amigável por favores, hoje, o futebol de várzea (tanto quanto o profissional) não rende nada ao cidadão de classe média, rendo migalhas aos pobres e enriquece apenas aos grandes jogadores e aos empregados das sucursais internacionais da mídia (que vivem como cracas no queixo do tubarão). Aliás, exatamente como a igreja só rende mesmo aos pastores (e tanto mais quanto mais ruidosos e politiqueiros sejam e mais malas de dolares possas carregar para a Suíça).
Instalado como passatempo de sinhozinho, o futebol penetrou tanto no Brasil justamente porque, pouco a pouco, tornou-se um jeito de os pobres negros e a miserável classe média branca "agregarem valor". Valor aliás arrancado legitimamente de si mesmos (já que tinham e não tinham como sobreviver com um mercado interno tão escasso quanto o que havia no Brasil antes da década de 40). Era como o carteado. Era como o jogo do bicho, o lugar em que cada pobre diabo "fazia sua fezinha" e às vezes tirava a sorte... média. Com a modernização, essa pré-história do futebol-macumbeiro-jogo-do-bicho-semi-marginal foi obliterada. À despeito, é claro, de continuar acontecendo nos lugares em que a condição de vida é semelhante, sem os ganhos correspondentes. Nada contra, não fosse o fato de a pelada do fim de semana não salvar mais ninguém da pobreza. E isso é tão mais triste quando a gente percebe que seu lugar de providência foi tomado pelo terceiro setor e o narcotráfico, e o de despêndio, pelo crediário das Casas Bahia, esse esfolador barulhento.

5. O ebó moderno de Káká x a fúria independente do torcedor esclarecido
Dito isso, o que tem Kaká a ver com toda a historia?
Pois bem. Marcelinho carioca era crente, muitos jogadores são crentes. Mas quando Kaká - jogador branco, criado no São Paulo e parecido com o boneco Ken - acende uma vela para seja lá qual for sua igreja, ele está mexendo nas regras do futebol esclarecido. Não só nas do espetáculo maroto de todas as noites (cujo horário a Globo determina), como também nas da própria indústria futeboleira. O caso não chega a ser grave, mas é suspeito. Ronaldinho com suas noitadas transsex provocou piadas, mas não conseguiu semelhante façanha. Pois, diferentemente dele, Kaká não só se presta como imagem (ou "santinho") para um comercial da Nike, como também está trazendo para o seio do futebol contemporâneo uma prática escancaradamente arcaica, duvidosa. Se o país fosse o mesmo, alguns milhões de suas contas bancárias estariam - ou só na imaginação dos torcedores estariam - tirando famílias da pobreza. Mas como a religião e o jogo populares já não têm o poder que tinham antigamente, quem leva seu bocado é uma outra indústria que não produz nada além de esperança para os pobres. Essa religião é que o assinante da Placar ataca. Primeiro, porque ela não rende nada a quem já anda a perigos. Segundo, porque a esquisitisse arcaica traz reminiscências da sobremesa cavada a gols pelos mais velhos...

O poder de choque disso só podia ser muito maior do que o da quebra de qualquer tabu sexual por um jogador excêntrico, já meio gordo e, ademais, menos branco. O ebó moderno de Kaká é forte demais. Suas preces e seus milhões correndo para o bolso dos gangsters da salvação fazem com que o público pagante e assinante da ESPN torça o nariz vendo ali, bem diante dos seus olhos, aquilo que com muito custo foi reprimido pelos seus ascendentes justamente a fim de que, para seus filhos, o futebol pareça ser isso que parece ser hoje: uma diversão democrática e a laica. O susto com as demonstrações públicas de fé vem, é claro, para reprimir qualquer tipo de aproximação entre o passado do futebol e as teatralidades correlatas que os crentes pobres da Universal de Deus fazem em pequena e desesperançada escala. E o ranço que recai contra isso é o ranço de gente que não gosta de ver um costume de pobre invadindo aquela que essa mesma gente cinicamente considera a mais democrática das diversões modernas. As caríssimas camisetas oficiais, o canal de assinatura com cobertura completa, as alas vips, as copas mundiais, bem como a discussão com peritos existem exatamente para manter bem estabelecida a distância

6. Epílogo - fim do fairplay ou Pai, se me abandonares ao triste 0 x 0, eu ainda com mais sofreguidão te servirei.

Faz sentido. Se o torcedor, hoje, sob a desculpa de cultivar um hábito querido, procura distintivos de classe que o comprovem como um torcedor mais competente, é justamente porque, tanto quanto os menos competentes, ele já não pode tirar a sorte miúda na "caixinha de surpresas". Nem daí, nem do truco, do poker, da cacheta, do bingo. Em certo nível confuso de sabedoria, todo torcedor sabe disso e enxerga no futebol uma dessas forças que magicamente fazem com que a violência instituída se justifique quanto mais lhe favoreça o livre usufruto do roubo coletivo e menos lhe pesem os desconfortos de consciência decorrentes. Tomando a forma de jogo, isso não tem mal nenhum. Alí, em terreno sublimado, cada um pode dizer que quer ver os outros chafurdarem na derrota e assim gozar as glórias de ser campeão.

É assim que o futebol tem funcionado no Brasil, desde sempre. O problema, no entanto, começa a aparecer quando a dificuldade da salvar-se da miséria geral já está tão forte que já não permite que o torcedor confie apenas em seu amor pelo esporte. Esse, desde que a indústria fez do futebol um sítio de pequária intensiva, já não proporciona por si só grandes emoções. Ou então, a gente poderia dizer que os sufocos da situação de subemprego e desemprego superam-nas, obrigando o dito cujo a esforços de fanatismo displicente que nem mesmo seu avô compreenderia. Consequentemente, o amante de futebol, em nome de manter acesa a chama, precisa cada vez mais se recobrir da aura de destreza e determinação com que a propaganda reveste os craques de futebol. A contemplação distante do espetáculo se torna tão mais imperiosa quanto mais seu subtexto obsceno ameaça romper à luz do dia. Justamente por isso é preciso relativizá-la, encurtar imaginariamente a distância, fazer com que cada um, conoisseur ou não, tome parte no campo, leve às ruas as cores do time amado. Esse é o trabalho realizado pelo merchandise, que estende sob preços diversos até ao mais comum dos mortais badulaques futebolísticos.

Exatamente por essa democratização compesadora da imagem do futebol, seu caráter de luta baixa vem à tona. Quanto mais o torcedor compra gato por lebre, mais a imagem arrojada e bela do passado futebolístico - cuja força vinha da imagem de belos corpos atléticos constituídos como que espontaneamente - reverte-se no seu contrário. Um breve passeio pelas ruas em épocas em que o futebol não é uma histeria geral demonstra que a preferência por adereços de futebol desponta nos "manos" de subúrbio (não os de verdade): nos filhos de donos de microempresas. A pletora das bandeiras recobre preferencialmente hoje essa diversidade de lumpen-classe-média-baixa que não esconde a disposição de ir às vias de fato nem mesmo quando fala. Só neles a camisa veste bem - não no playboy que conhece todos os resultados de jogos desde 1930; não no moleque de rua que ostenta no peito a marca adidas. Neles, os que, recém-emersos do abismo, para não cairem de novo no fundo do poço, praticam a violência vulgar que nos demais toma a forma de assaltos ou de finas ironias. Ora, exatamente por isso, a imagem do futebol como um todo evoca a figura que constitui o maior pesadelo de tal espécime: a dos aposentados e desempregados que lotam as praças de subúrbio com suas velhas caixinhas de dominó - a inadequação da imagem residindo apenas no fato de que uns, cientes da própria situação, já perderam a voz e outros, na esperança de algum olheiro divino ou de ensurdecer o vizinho, ainda gritam.

Disso tudo se tira o seguinte: as esperanças que eram remediadas no futebol de várzea antigo de fato sobrevivem na torcida pelo futebol high-performance, mas como um fantasma. E esse, justamente, é que é o seu demoníaco sentido político. Um sentido que só tem na religião sua melhor expressão porque a religião nada mais é do que a protoforma reprimida da política moderna, precisamente a que medrou nos países em que a desigualdade extrema instalava os pobres e as classes médias como marginais da vida pública. Como se sabe, em contexto diverso, a religião era a forma de política que predominava na Europa, antes que a famigerada burguesia, uma vez completamente instalada no poder, inventasse a primeira estratégia de dominação baseada no consenso consciente dos dominados: a democracia.

Pensando nisso, a gente poderia dizer que, encantado com o jogo que já não tem nada de magia e desesperado com o risco de tornar-se um derrotado, é justamente a favor dos dribles que a vida dá na sua consciência de cidadão abandonado e de peça sem valor no mercado de trabalho que o torcedor grita "gol".

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Ainda sobre Guimarães Rosa: notas sobre o conto “Nada e Nossa Condição”, ou a utopia presente.

Só para complementar o post anterior sobre Guimarães, baseado em uma conversa que tive com um amigo, gostaria de deixar anotado aqui algumas reflexões para um aprofundamento posterior, talvez um futuro texto mais arredondado. É certo que tratar Guimarães como um escritor de direita é um reducionismo, e que os caras que assim o fazem sabem disso, tanto que não publicam coisas nesse sentido, só comentando em certos eventos, aulas, conversas de corredor… Mas é certo também que o fato de existir certo “silêncio” – que alguns críticos mais novos vem tentando romper – em torno do autor, por parte dos críticos dialéticos, demonstra que existe uma questão real, de difícil elucidação a partir de um paradigma marxista-dialético.

No conto “Nada e a nossa condição”, do Primeiras Histórias, vemos a personagem de Tio Man’Antonio, um fazendeiro escravista, ser elevado à condição de herói mítico. A partir de um paradigma machadiano, essa admiração seria desconstruída, seguindo o modelo do cunhado Cotrin, que é admirado por Brás Cubas como modelo de grande homem, tanto no espaço público quanto no privado. Mas a admiração de Brás é construída por Machado de forma a deixá-la insustentável: ao admirar Cotrim como um excelente pai de família e ao mesmo tempo, por seu trato “vigoroso” com suas propriedades, os escravos, Machado a um só golpe desmonta a barbárie da escravidão, os vínculos perversos das relações patriarcais, a conivência dos poderosos com nosso atraso, e ainda sobra para o leitor que cair na armadilha.

No caso de Guimarães, não temos esse distanciamento. Tio Man’Antonio é admirado mesmo, de fato. E isso sem ocultar suas relações com o escravismo. Ele é tomado como uma figura algo mítica e positivada enquanto tal. A literatura rosiana não se contrói a partir da denúncia das relações sociais, do cálculo por detrás das aparências. Isso aparece, mas não é o centro da composição, como no caso do Machado, em que esse é o conteúdo mesmo da idéia fixa. Mas o que, afinal, se admira em Tio Man’Antonio? Ele é simplesmente um senhor de escravos, e o que se admira nele é esse poder? Caso a resposta seja negativa, como então é possível admirar uma figura dessas, a partir de qual perspectiva torna-se viável sua mitificação? A resposta é óbvia e ao mesmo tempo altamente complexa: Tio Man’Antonio é e não é um fazendeiro escravista. O processo em questão não consiste exatamente em elevar o fazendeiro à condição de herói mítico, mas lidar com um fazendeiro que é também herói mítico. Concentrar-se radicalmente nesse lugar em que uma coisa aponta para outra sem negar-se, eis o ponto em que Guimarães é imbatível.

O conto trata do trabalho de luto de Tio Man”Antonio que, após a inesperada morte de sua esposa – dando notícia da chegada inevitável do Anti-Sujeito - centra sua vida na administração dessas perdas. Ele é admirado pelo narrador porque ao fim sabe dar um sentido para essas perdas, torna-se em grande medida senhor delas, de seu destino. Aceita o caminho irrefutável para o fim e torna-se destinador de si próprio. Ao final, ele mesmo se morre, vencendo o grande mistério ao aceitar a condição de fugacidade da existência, e preparar sua permanência no mundo, sua perpetuação da maneira que é possível. Tio Man’Antonio encaminha o futuro de suas filhas, depreende-se delas e as direciona ainda em vida, e também dá um sentido para a perda da suas propriedades. Diante da perda inevitável do processo de existência, o viver para a morte, Tio Man’Antonio resolve administrar essas perdas, eliminando em vida o caráter de surpresa da morte. É ele quem pega a morte de surpresa, ele é quem irá controlá-la, aceitando-a em sua radicalidade – bem distante da concepção de assepsia moderna, em que podemos controlar nossa morte, afastando-a de nossas vidas. “Até que, ele, defunto, consumiu-se a cinzas – e, por elas, após ainda encaminhou-se, senhor para a terra, gleba tumular, só; como as consequências de mil atos, continuamente”. Tio Man’Antonio é admirado porque aprendeu a não ser, dando um sentido “Faz-de conta, minha filha, faz de conta” para sua experiência a partir de seu não direcionamento.

A forma dessa permanência não é escamoteada por Guimarães – o fazendeiro “doa” sua propriedade para seu ex-escravos mas, e esse é o ponto, não sai do lado deles, não permitindo que eles façam dela o que quiser – como vender – de modo que agindo no presente, ele perpetua a sua influência até o futuro. Ele quer determinar não só o seu futuro, mas o futuro de suas propriedades – extensão de si. E apenas um senhor poderoso tem condições de fazer isso, o que Guimarães não ignora ou oculta. Aqui coloca-se o ponto delicado: para os que conhecem a história do Brasil em seu lado perverso, sabe-se que essa permanência do passado, a famosa modernização conservadora, é causa direta da tragédia nacional. O país que avança sem avançar, a sociabilidade criada a partir dos limites, nas brechas, em tudo isso pode-se ler a miséria brasileira. Imediatamente, dentro dessa perspectiva, se coloca a questão, bastante adequadamente: ao exaltar a permanencia do passado do presente, o indefinível entre o eu e o outro, o entrelugar, não estaria Guimarães louvando a nossa tragédia, e elevando nossa miséria a categoria de exaltação, ao invés de crítica? O mito das relações pacíficas do país, da cordialidade em sentido positivo? Como pode Tio Man’Antonio ser um herói se seu projeto consiste em fazer com que seus escravos não sejam senhores de seu próprio destino? A resposta não é simples – também não resolve o problema, e meu amigo está certo, dizer que Guimarães é de esquerda – e envolve muitas dimensões da obra rosiana, a começar da linguagem, mas acredito que a resposta passe pela consideração de que todo o universo rosiano existe enquanto possibilidade no interior do concreto, sem nunca vir a ser completamente, ao mesmo tempo em que possui concretude quase sensorial. Tio Man’Antonio não expressa o mundo que existe, ao mesmo tempo em que só pode existir nesse mundo. É o nosso real enquanto virtualidade. Não é o fazendeiro e a barbárie do sertão que se admira, é o que nela, e tão somente nela, está inscrito enquanto possibilidade de redenção, ou de ser um outro.

Guimarães Rosa não ignora as contradições da realidade brasileira, ao contrário, as trata minuciosamente, com riqueza de detalhes. Não oculta as diferenças entre as classes - o narrador do Grande Sertão: veredas é herdeiro, letrado, e macomunado com o doutor e o leitor, existe claramente um lado vencedor, que se impõe por sobre os outros e do qual participa o literário; tio Man’Antonio não tem o mesmo estatudo de seus escravos: o tempo todo são marcadas essas diferenças sociais no universo rosiano, é um universo em constante tensão gerada a partir daí. Nada daquela visão humanista conciliatória que procura romper com as diferenças sociais, em Guimarães os homens não são iguais. Ao contrário, seu olhar vai se especializar em aprofundar a compreensão da diferença, a tal ponto que esta pode inclusive tornar-se o seu oposto, o que não raro ocorre. Toda denúncia da barbárie da jagunçagem está em Guimarães para quem quiser ler, mas o que o autor procura não é fazer uma denuncia direta (embora isso esteja lá também, a conciência da necessidade de se negar ambos os pólos, e a específica relação brasileira entre ambos) do atraso ou da modernidade. Ele procura sim se concentrar na negação daquilo que se apresenta no momento mesmo em que é visto, ao ser encarador de perto, assumindo outra forma que lhe nega os contornos e determinações. O maior equívoco crítico é considerar que a fusão promovida por Rosa tem o intuito de apagar as contradições, quando na verdade toda sua operação consiste em levá-las as suas últimas consequências, até o ponto em que elas se perdem de si e revelam outras dimensões.

Uma de suas questões, por exemplo, é encarar o espaço em que o mítico se une ao racional. Seu mundo une assim, radicalmente, macumba e critianismo. Para criar essa fusão, entretanto, ele parte de um lugar já constituído no mundo, por exemplo, o kardecismo. Ele não vai criar um outro espaço, inexistente. Mas vai radicalizar a tal ponto essa fusão que o kardecismo já não se sustenta enquanto tal, sendo um espaço de contradição permanente, e não de apaziguamento. Em suma, será um outro kardecismo, mas que parte do que existe, é o que existe radicalizado. Dessa forma, ele cria outro mundo, mas estreitamente vinculado com o nosso, é o outro dentro do já dado, uma espécie de utopia concreta, tão reveladora quanto a distopia Machadiana. Uma utopia com cara de Brasil, quase um país radicalizado.

Isso faz com que o autor, ao mesmo tempo que não ignora a face social, procure em seu interior, aquilo que dela escapa, enquanto possibilidade. Ou seja, aquilo que, sem ser outra coisa, é o outro, aponta para o outro. Aquilo que está e não está no real, enquanto possibilidade, aquilo que na lógica brasileira aponta para um outro espaço de constuição dos sujeitos, um espaço que não existe concretamente, mas que, ao mesmo tempo, depende absolutamente do espaço local para se constituir. Uma utopia que só pode ser brasileira. A terceira margem do rio só pode existir em um rio brasileiro, é um universal, mítico, que é local. O sertão é o mundo. O Brasil de Rosa é o país enquanto potencialidade, não é que o que existe é bom e justo, mas o que é que possa vir a existir de bom e justo só pode surgir daquilo que aqui está dado. Um lugar que não é ainda, um espaço em que inclusive nossa linguagem – a base de constituição do ser e do mundo – precisa ser absolutamente reestruturada, mas cuja reestruturação só faz sentido e só pode realizar-se a partir daqui. O paradoxo que institui a obra rosiana é ser o mais bem feito e minucioso registro etnográfico da literatura brasileira, ao mesmo tempo em que nada em sua linguagem, sequer a própria linguagem, existem.

Desse modo, a aceitação do negativo em si – tema de Nada e Nossa Condição e de Rosa no geral - é o caminho para a aceitação do outro em relação ao eu. Caminho que na literatura rosiana só pode acontecer em um espaço em que as relações sociais se dão ao redor do espaço simbólico das leis, sem nunca alcança-las em definitivo, conduzindo a uma indiferenciação – perversa e amistosa, cordial – entre eu e outro. Em suma, só pode acontecer aqui e agora, mas num espaço outro do aqui e agora, como naqueles livros de ficção científica em que cada momento da realidade possuí um universo paralelo próprio, que só adquire consistência em sua relação com esse real, numa multiplicidade infinita de universos, tantos quanto são os momentos da realidade.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

A ORIGEM - quando a estrutura faz perder o essencial

A ORIGEM - Tinha tudo pra ser bom, mas... Quer dizer, não que não tenha coisas boas no filme. Eu assisti lembrando daquela cena do Amadeus em que Mozart explica pro rei, perplexo, por quanto tempo ele conseguiria introduzir novos personagens em uma cena de ópera. A Origem faz isso que melhor que nenhum outro filme que eu lembre.
Não se trata de montagem paralelas, isso tem de monte no cinema, mas de rupturas que rompem com a sequência narrativa e lhe imprime novas camadas de significação. Como se o diretor perguntasse pra nós: quantas novas narrativas eu sou capaz de fazer voce engolir sem que (e isso é importante) se rompa o fluxo de temporalidade radicalmente, em negativo. Ou seja, para que continuemos em Hollywood, e não passemos para Godard. Para que seja um filme do gênero assalto, sem tornar-se cinema experimental. E são muitas as camadas envolvidas, de fato... a melhor eu acho que é a relação estabelecida com o cinema, como no fundo todos os efeitos e enredos milaborantes não passam de uma forma de introduzir uma idéia bem simples em nosso subconsciente, encomendada por um megaempresário poderoso. Essa é boa porque não aparece tão mastigada quanto outras, mas diluída na própria ação do filme.

O problema do filme é justamente que, para sustentar sua arquitetura faraônica e mirabolante o diretor tem que chamar a atenção para ela, a estrutura, incessantemente. Tem que repetir o filme inteiro que a mente que adentramos é na verdade do Di Caprio, que é ele tentando superar um trauma. Os demais personagens acabam se tornando rasos, mera engrenagens, dispositivos que fazem caminhar o talento egocentrico de Nolan, que se sobrepõe à obra. A arquitetura do filme é sobrevalorizada, colocando em segundo plano o conteúdo. É só comparar a falta de carisma e profundidade dessas personagens (mesmo Di Caprio é menos profundo que o esquema em que se envolve) com as do Cavaleiro das Trevas, em que a grandeza do enredo de ação contribui para aprofundar ainda mais a relação de complexidade entre as personagens. No caso da origem, todos são coadjuvantes. Daí o paradoxo da estrutura ser complicadíssima ao mesmo tempo que esforça-se por tornar óbvia as camadas de profundidade e relações feitas, sem deixar espaço para um questionamento do expectador. O filme é um quebra cabeça estrutural (muito bem feito, e que tem sentido, ao contrário do que andam falando), que ao ser resolvido deixa tudo como está. De novo, bem diferente do coringa, um ponto de vista que não pode ser levado até o fim pela Indústria.

O problema estrutural básico do filme é que à complexidade radical da forma não corresponde uma complexidade de conteúdo, ou ainda, a complexidade formal só se sustenta por uma atonização do conteúdo. A forma que Nolam escolhe para manter o expectador por dentro do que está acontecendo sem se perder é deixar por demais evidente o que está acontecendo. O óbvio ululante, um quebra cabeças de mil peças, mas que ao final é uma imagem do cebolinha com a mônica, exagerando um pouco. Ele se prepara para questionar a estrutura do cinema, mas produz um espetáculo grandioso em que o sujeito (no caso, Nolan), em sua forma espetacular é celebrado - de novo, não é por ser um filme hollywoodiano, o Cavaleiro das Trevas também é e consegue ser bem mais questionador, sem deixar de ser o mais empolgante filme de ação do ano. A Origem não consegue se decidir. Não que não existam surpresas, o filme é feito de surpresas, mas essas são preparadas por um caminho bem posto, tranquilo até certo ponto. Algo do tipo, ó aqui parece ser só ação, mas também tem a questão psicanalítica, viu, olha aqui a mulher reprimida. O filme peca por didatismo em vários momentos, por personagens que tem função didática, por um enredo que também mantem, apesar de tudo, certo didatismo: o chato do Di Caprio tentando superar seu próprio trauma, do jeito mais mirabolante possível.