quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Bem vindo ao deserto funkeiro do Real.

O HORROR NO FUNK
SABOTARAM MEU COPO
(MC Priscila \ MC Magrinho)

Ela puxou perdeu a linha
Tirou a calcinha de uma vez só
Ela ficou desnorteada.
Sabotaram meu copo fudeu
E tacaram balinha
Eu não sei o que aconteceu
Só sei que acordei numa treta de luxo
Com uma ressaca desgraçada
Pra onde eu olhava havia piroca
E eu com a buceta toda inchada
Eu não sei o que aconteceu
Calma calma Priscilinha só rolou uma surubinha.
Eu dei na salinha? (Deu deu)
Eu dei no quartinho? (Deu deu deu)
Eu dei no banheiro? (Deu deu)
Eu dei na cozinha? (Deu deu deu)
Eu dei de quatro? (Deu)
Eu dei de lado? (Deu)
Eu dei por cima? (Deu)
Eu dei por baixo? (Deu)
Caralho o frango assado quem me comeu?
Eu eu
Quem me comeu?
Eu eu

Essa é uma das mais fortes expressões do horror que pode conter o funk carioca. É difícil até de começar a pensar em qual elemento de barbárie é o pior nesse caso. O mais terrível de todos talvez seja justamente o tom de celebração. Estamos bem no meio de uma típica orgia que o gênero celebra como espaço de ostentação. Nesse caso, porém, com condicionantes específicas que tornam as coisas ainda mais terríveis. De início temos a voz do estuprador a se gabar do seu feito: colocou um boa noite cinderela no copo de uma moça e a levou para um quarto para ser estuprada coletivamente. Em seguida temos a voz da própria vítima, que se de início se espanta com o que vê, logo começa a descrever tudo com precisão típica do estilo, enumerando didaticamente as partes do corpo e o que era socado onde. Essas descrições no funk fazem parte de sua dinâmica e de sua coreografia, e são basicamente celebradas como lugar da libertação do corpo para o prazer, tanto do homem quanto da mulher. Nesse sentido, pode-se dizer que da perspectiva feminina encenada na canção, acontece uma celebração do estupro coletivo enquanto orgia  e “putaria” (um das categorias centrais do funk). Apenas não se nomeia como tal, mas é exatamente disso que se trata. Estupro, puro e simples – aquilo que a “crueza” e “precisão” sintomaticamente pode descrever em detalhes, mas nunca nomear. A emancipação do prazer feminino serve aqui diretamente a mais pura barbárie.

Para ampliar a dimensão do horror, acrescenta-se aqui uma condicionante de classe. Sabe-se que no funk a cultura do dinheiro a todo custo é louvada  - o mais explícito evidentemente é o funk ostentação, mas é possível encontrar essa celebração no gênero como um todo. Ter dinheiro, estar ao lado de quem tem status, ser o rei do camarote, tudo isso é cultuado pelo funk como condicionantes da “putaria”. Prazer e consumo participam da mesma cadeia semântica.  Em “Sabotaram meu copo” é esse o vetor que vai tornar possível a celebração do estupro por parte da vítima e dos estupradores, uma vez que tudo acontece em uma “treta de luxo”. O poder do capital justifica os atos dos estupradores, liberando-os da culpa, ao mesmo tempo que faz da vítima uma mulher de sorte, por ter sido escolhida pelo topo da cadeia social. Tudo se justifica, afinal, trata-se de relações de mercado. Vivemos no melhor dos mundos.

É claro que o gesto imediato de qualquer um que minimamente considera o que se expressa nessa canção uma afronta a própria concepção de “humanidade” é de recuar horrorizado. Aliás, uma ótima ideia é estabelecer limite de idade para o funk, assim como se faz com os filmes. Contudo, justamente em nome do “humano” é que devemos tentar o caminho oposto, e avançar mais pelo interior da barbárie. Acredito que esse é o verdadeiro gesto emancipatório aqui: encarar o fantasma e atravessa-lo. Para isso, deve-se evitar as duas posições que formam um par de oposição complementar.

A primeira é a defesa da barbárie em nome de certa aceitação cultural cosmética. Os defensores do funk contra os ataques “elitistas” sempre usam o relativismo cultural como argumento final. Ninguém tem o direito de definir o gosto, o funk faz parte da cultura da periferia e, como tal, deve ser respeitado, qualquer ataque ao funk deve ser recusado como um gesto elitista, etc. A postura liberal de aceitação da diferença nesse caso procura infantilizar aquilo que aparentemente defende: é porque não nos diz respeito que o funk deve ser aceito e protegido enquanto expressão cultural. Mas ao contrário do pressuposto dos defensores “culturalistas” o que se deve rejeitar em “Sabotaram meu copo” não é a identidade periférica em construção, e sim a celebração do estupro, que precisa ser nomeada e encarada enquanto tal, como expressão de horror daquele outro que está em nós. É só assim, inclusive, que o funk revela sua força, quando passamos a encara-lo não como uma expressão cultural qualquer da periferia, e sim como um olhar gestado na periferia que diz respeito ao conjunto das relações sociais como um todo. É da periferia, mas diz respeito aos que não são, ou melhor, é por ser da periferia que precisamente diz respeito ao conjunto da sociedade atual. É por ser o avesso da “Sociedade” que o funk é o lugar de sua verdade, aquele resto de Real que não se presta aos mecanismos de identificação e retorna como fantasia perversa.

Só assim é  possível superar a indiferença da relativização cultural e, ao mesmo tempo, libertar-se do risco da postura que lhe  é oposta e, em certa medida, complementar, o ódio absoluto e o desejo de eliminar o gênero da face da terra, para o bem da humanidade. Essa postura é também muito comum, como pode ser lido em diversos textos da internet, como esse caso de um tal Fernando Toledo, que afirma que o funk não é música, e muito menos arte.

     “Para que o fenômeno musical ocorra, três elementos devem estar presentes: ritmo, melodia e harmonia. E, nesse pretenso estilo, somente o primeiro se manifesta. O funk carioca se baseia, simplesmente, em frases entoadas ao longo de uma base rítmica, sem que haja um sentido horizontal (notas em série) ou vertical (notas sobrepostas, constituindo acordes). Dessa forma, não é música. […]  Assim sendo, pode-se afirmar, sem medo, que o funk carioca não é manifestação artística legítima de gueto nenhum, visto que, simplesmente, não é música, nem mesmo arte. E que opera numa esfera muito distante do humano”.

Aqui o mecanismo ideológico mal se disfarça, sobretudo pela definição primária e quase infantil do que seja o tal do fenômeno musical, saltando aos olhos o desejo contido do autor em afirmar que pobre funkeiro é sujo e não deveria existir, pois o que eles fazem é lixo. O ódio que ameaça saltar o texto deixa entrever o estado de ânimo por onde escapa a justificativa moral que, no limite, aprova o extermínio de funkeiros como Mc Daleste.

Ora, diante dessas duas opções - a aceitação pós moderna do horror no funk (que acaricia, mas quer manter separado por grades de aço maciço) e sua rejeição neopentecostal como coisa do capeta que deve ser eliminada da face da terra (em nome do amor divino) - qual o caminho a seguir? Obviamente que o par de oposições é falso, sendo necessário traçar um terceiro lugar a partir da percepção do mecanismo de sustentação oculto que estrutura as duas escolhas. A força do funk, seu impacto, o poder de penetração e toda agressividade apaixonada das respostas que gera deve-se ao fato óbvio de que ele participa de dimensões profundas da realidade, o fantasma da “sociedade brasileira”,  aquele resto obsceno que não se deixa eliminar e que guarda o “segredo” profundo da significação. O pequeno objeto a lacaniano, aquele resto de Real que sustenta-se enquanto vazio no interior da estrutura simbólica. O funk diz respeito a todos nós, justamente por concentrar-se agressivamente na dinâmica periférica. Por isso, tenta-se a todo custo enquadrar narrativamente seu potencial disruptor enquanto desvio da normalidade, de modo a justificar a dinâmica da barbárie que o próprio funk enuncia. É evidente que o gênero não expressa somente relações “degeneradas” ou “autênticas” da periferia. A cultura do estupro celebrada em “Sabotaram meu copo” é o fundamento não explícito de toda a sociabilidade em sua dinâmica contemporânea. Daí o esforço dos setores que querem conservar a “normalidade” das coisas para enquadrar a barbárie funk como um elemento externo que perturba a normalidade, enquanto mal ocultam que o funk é a representação que pauta a própria normalidade.

Como o rap deixou bem evidente, a periferia é o lugar de verdade da nação a partir do desmantelamento dessa categoria, o lugar de ser de seu projeto fracassado. A passagem do rap para o funk enquanto produção “hegemônica” na periferia é assim profundamente reveladora de novos dinamismos sociais que tomam forma na sociedade. Pode-se dizer que o funk é o sintoma do fracasso do rap em realizar seu projeto emancipatório. O funk recusa a dimensão ética (Racional) que para o rap é condição de emancipação, e retorna agressivamente ao gozo e ao corpo, que haviam sido moralizados como em nome da promessa de libertação dos “irmãos” mediante uma tomada de consciência periférica, condição para sobreviver no inferno. Libertação que não aconteceu, ainda que tenha trazido avanços, é importante dizer. O funk mergulha na mesma barbárie exposta pelo rap – a nossa miséria social – mas sem comportar um projeto de emancipação periférica. Não por acaso, ele reina na dimensão do gozo que foi colocada em segundo plano pelo rap. 

Essa passagem, regressiva nesse aspecto (mas que revela o avesso obsceno do rap, a necessidade de moralização do gozo que é um dos limites internos de seu projeto de emancipação, e que torna-se explícito por exemplo na condição inferiorizada que a mulher ocupa no gênero), está longe de ser um aspecto circunscrito ao funk. Pelo contrário, seu interesse profundo consiste na capacidade de materializar formalmente a nova dimensão da catástrofe social que nos atinge, e o estado de espírito a ela correspondente. “Sabotaram meu copo” diz respeito a todos nós, revela o modo como a cultura do estupro permeia o conjunto das relações entre gêneros no Brasil. Não se trata de um desvio de norma a ser condenado: seu interesse consiste em mostrar claramente (versão hard do cinismo) qual é a regra que nos pauta, e é nesses termos que deve ser recusada. Essa mesma dinâmica é registrada em muitas outras instâncias do entretenimento brasileiro. Os exemplos são muitos: a passagem do mecanismo de exploração da miséria via caridade em programas como o do Gugu e do Silvio Santos (eu exploro os miseráveis porque me compadeço e quero lhes dar uma oportunidade, casa, dinheiro) para a exploração pura e simples sem justificativa que não a própria exibição da humilhação em programas como Pânico na TV e o Big Brother (recomendo fortemente o trabalho fantástico de Silvia Vianna sobre o reality shows); a passagem do padrão jornalístico imparcial coxinha do Jornal Nacional para o modelo ultra conservador do jornalismo Datena; a passagem do modelo de humor de representações baseadas em caricaturas que segue o padrão Chico Anísio ou do Viva o Gordo para o modelo de mera humilhação dos marginalizados, seguido por Danilo Gentile, Rafael Bastos, entre outros;  um modelo de crítica mais à esquerda, ou que pelo menos considera relevante processos históricos e sociais para compreensão da sociedade, para um padrão conservador ultra direitista de interpretação, representado por figuras como Lobão, Pondé, Diogo Mainardi, Reinaldo Azevedo, de grande sucesso editorial; a agressividade da ética neopentecostal, etc. Todas essas transformações culturais, vistas em conjunto – e seu momento chave é o sucesso estrondoso do Tropa de Elite, com a adesão em massa ao olhar conservador do Nascimento - são profundamente reveladoras de um novo estado de espírito local, cuja dinâmica é preciso identificar.

(E cabe aqui a perguntinha teórica que não quer calar: como fica a crítica imanente, se todos esses objetos são recusados por ela, uma vez que seu interesse não está em se contrapor à  barbárie, mas em sua ritualização?)  

Manter o sentimento de horror diante de “Sabotaram meu copo” (e não do funk como um todo) é uma postura de maior identificação simbólica com a periferia do que passar a mão na cabeça falando como é fofinha e bonitinha a cultura dos favelados. É o oposto da falsa identificação de Dickens com os mais pobres, que são sempre lindos, cheirosos, inteligentes e esperançosos -  uma imagem as avessas de um lorde inglês, o verdadeiro objeto de admiração, que deve amar os marginalizados como prova da própria superioridade. Diga-se de passagem, a mesma falsa identificação presente em  “Gente humilde”, da dupla Chico\ Vinicius. Deve-se, antes, pautar-se pela identificação imaginária de Chaplin com as crianças. Chaplin as bate, engana, briga, não por ser superior e mal, mas justamente porque se identifica com o olhar infantil. É mais um deles, está junto e misturado.

É claro, esse sentimento de horror é também em tudo oposto ao que considera o funk um lixo desprezível a ser eliminado. Aqui entra em cena um personagem kafkiano, o pai de família que se encontra diante do mistério de Odradek, e o contempla com ódio, por ser incapaz de compreender como “aquilo” pode respirar, pode conter vida. Como algo tão nojento e abjeto pode ser chamado de vida (ou de cultura)?  O que horroriza o pai de família kafkiano é a dimensão do desejo do Outro, que é inapreensível, e que ressurge enquanto experiência do horror absurdo, aquilo que é preciso eliminar no Outro para que possa garantir-se a integralidade imaculada do meu próprio ser. 

O que deve nos horrorizar, então? É a revelação do absurdo em nós, a compreensão de que o funk é o lugar mesmo de nossa própria barbárie, a revelação daquilo que nos constitui, atualmente, enquanto sociedade. O que deve desaparecer e ser eliminado não é o funk bode expiatório, e sim nós mesmos. O funk é nosso modo de formalização (poder de revelação do entretenimento rebaixado, não autônomo e a-crítico) da miséria do presente.

A verdade em que o funk se assenta, e que assusta a gente de bem, é sua consciência de que a realização plena do projeto brasileiro de inclusão por via do consumo só é possível para os excluídos na condição de contravenção – daí a valorização de conteúdos pulsionais obscenos e violentamente marginais como sequestro, assaltos, tráfico, pedofilia, sexualidade agressiva. Essa consciência agressiva é, simultaneamente, tanto o que faz com que os funkeiros sejam perseguidos e, no limite, mortos, pela Sociedade de bem, quanto a condição mesmo de seu aprisionamento ideológico, uma vez que a posição marginal é ainda o lugar reservado para o pobre nos projetos higienistas de “formação nacional”, a “brecha que o sistema queria” para legitimar-se. O funk é assim o lugar mais vivo dessa contradição estrutural da sociedade brasileira. Para os excluídos, a tomada de consciência funciona como elemento de aprisionamento e mitificação, enquanto que a “Sociedade” celebra\rejeita a barbárie funk enquanto elemento exterior fantasmático que garante a coesão social. 

A marginalização do funk é um sinal claro da falência da sociedade, um sinal gritante de que o presente mecanismo social é falho. Contudo, a alternativa geralmente apresentada de “aceitação culturalista” dos valores expressos no gênero deve ser rejeitada como falsa. Aqui é preciso inverter a equação: é porque esses valores já são nossos desde o início que devem ser recusados, o que implica em uma “recusa” da própria Sociedade, e não dos funkeiros como o Outro a partir do qual legitima-se a “normalidade”. Um caminho em tudo oposto a proposta higienista de proibir os bailes. Que a barbárie do funk é do mesmo tipo da normalidade social obscena não resta a menor dúvida: num certo episódio do Pânico da TV, comemorou-se o aniversário de Sabrina Sato. De presente os participantes do programa atearam fogo na moça enquanto os rapazes cantavam Parabéns pra você. Em outra oportunidade, enterraram-na viva. É claro, o programa não é exceção: poderia tranquilamente se tratar da prova do líder do Big Brother. Até que esse mecanismo de identificação – negativo - tenha condições efetivas de se realizar (e aqui a articulação política dos funkeiros pela regulamentação dos bailes, em contraposição a política proibicionista absurda dos governos cariocas e paulistanos assume uma posição decisiva), tanto a aproximação quanto o distanciamento serão gestos que deixam intacto o núcleo perverso do gozo estruturado pela fantasia social.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

All the single ladies: trilha sonora pra balada black (block?) pop quase atual.

Pela primeira vez na vida fui convidado pra montar uma trilha sonora para adolescentes. E acreditem, isso pode ser a coisa mais difícil do mundo se você já saiu da adolescência faz um tempo, e consequentemente não faz a menor ideia do que se passa no universo sonoro dos caras, uma vez que marcar essa diferença temporal é um dado fundamental pros adolescentes. É lógico que eu já ouvi falar de Rihana e Beyonce, por exemplo, mas até então não fazia a menor ideia se havia alguma diferença significativa na sonoridade de ambas, ou se tratava-se mais de uma simples diferença de marca, como Claudia Leite e Ivete Sangalo. Outros nomes eu simplesmente nunca tinha mesmo parado pra ouvir, como David Gueta, Bruno Mars, Maaron 5, e outros ainda eu já tinha ouvido bastante, mas sem saber se existia algum nome por trás do som, como é o caso do Dj Pitbull, que faz versões de canções já desgastadas na periferia e as coloca pra bombar no centro.
Enfim, a grande dificuldade pra fazer uma trilha pra adolescentes não sendo um é que você não pode se pautar apenas nos grandes hits do momento, primeiro porque muito provavelmente você não os conhece, e depois porque é bem provável que você não se divirta muito com eles Não adianta, a gente se diverte mesmo é com as canções da nossa própria adolescência, os afetos musicais em sua relação com a formação da própria identidade se concentram aí. Por isso a indústria fonográfica é tão voltada para os jovens, em primeiro lugar, e para os homens, com sua imaturidade congênita. Daí o curioso dado de que a trilha criada por você para os adolescentes de agora sempre acabar se parecendo em alguma medida com a trilha sonora da sua própria adolescência, ao menos até onde isso é possível. É interessante jogar com esse mecanismo de distanciamento e aproximação, tanto de sua parte (que de repente descobre que o pop de hoje não se afastou tanto daquilo proposto pela Madonna e pelo Michael Jackson, só acrescentando-se um pouco mais de Hip Hop) quanto da parte de seu público alvo, que pode descobrir que aquela música da hora do Seu Jorge é uma gravação de um velhinho simpático chamado Chico Buarque, ou que aquele arranjo da hora do Bruno Mars é quase igual ao que se fazia nos distantes primórdios. O mais legal (e mais difícil) é que não dá pra focar só naquilo que você gosta e conhece (é preciso então dar uma mergulhada no universo dos grandes sucessos de 2013), mas também não ficar só no sucesso mais óbvio.

Escolhi fazer uma trilha black porque rock ficaria mais restrito (estava pensando nos meus alunos) e eu não manjo muito do pop eletrônico de hoje pra saber o que presta e o que é só mais do mesmo. Para essa versão final mudei algumas coisas. Exclui por exemplo as músicas mais de pixta, idênticas ao tal do poperô que tocava na Overnight, boate da minha adolescência no interior, e que eu nunca podia ir porque pegava mal com os amigos da igreja. No fim a proibição social até que foi uma coisa boa – preservo a imagem do proibido em mim, que provavelmente se apagaria completamente se eu tivesse ido e percebido o quão longe do extraordinário era aquele lugar. A Overnight que não fui ganhou contornos fantasmáticos, tal como a sala dos professores aparece para alunos do ensino fundamental, e que ajuda a preservar o encantamento necessário para a mise en cene do processo de aprendizagem.

    1- Survivor – Destiny Child (Survivor)
    2 - Brown Girl (feat. Brick & Lace) – Jurassic 5 (Feedback)
    3 - Crazy in Love (feat. Jay-Z)  - Beyoncé (Dangerously in Love)
    4 - The Real Slim Shady – Eminem (The Marshall Mathers LP)
    5 – Sucrilhos – Criolo (Nó na Orelha)
    6 - Negro drama – Racionais MC’s (Nada como um dia após outro dia)
    7 - Gangsta's Paradise – Coolio (Dangerous MInd Music)
    8 – Represent - Orishas (A lo cubano)
    9 - Mas Que Nada – Jorge Ben\Black Eyed Peas\ Sérgio Mendes (Greatest Hits)
    10 - Get Lucky (feat. Pharrell Williams) – Daft Punk (Random Access Memories)
    11 - Single Ladies (Put a Ring on It) – Beyoncé (I am Sasha Fierce)
    12 – Jump – Rihanna (Unapologetic)
    13 - Cotidiano (Part. Esp. Marcelinho Da Lua) – Seu Jorge\Chico Buarque (Perfil)
    14 – Treasure – Bruno Mars (Bruno Mars)
    15 - Mo Money Mo Problems (feat. Mase & Puff Daddy)  - The Notorious B.I.G. (Live after death)
    16 - Rap da Felicidade – MC Cidinho e Doca (Rap Brasil)
    17 - Bucky Done Gun  - M.I.A. (Arular)
    18 - Wanna Be Starting Something – Michael Jackson (Trilher)
    19 - Take Back the Night  -Justin Timberlake (The 20\20 experience)
    20 - Blurred Lines  - Robin Thicke (feat. T.I. & Pharrell)  -
    21 - Ready Or Not  - Mato\Fugges (Hip Hop Reggae series vol. 2)
    22 – Exodus – Bob Marley (Legend)
    23 - Root Down – Taggy Matcher\beastie Boys (Hip Hop Reggae series vol 1)


    24 - Viva! (Melô dos vileiro) – Emicida (Doozicabraba e a revolução silenciosa)
    25 - Independent Women – Destiny Child (Survivor)


    26 - Ambitionz Az a Ridah – 2Pac (Collection)
    27 - Um Bom Lugar – Sabotage (Rap é compromisso)

    segunda-feira, 7 de outubro de 2013

    Ainda é cedo, de Nelson Gonçalves, e a atualidade do bolero.

    Para José Virgínio, talvez o último romântico verdadeiro.

    Em seu último álbum, Ainda é Cedo, lançado em 1997 pela BMG Ariola, Nelson Gonçalves aproxima-se da música jovem, o pop rock padrão anos 80\90 que foi a febre daquele período. Aproxima-se, contudo, sem abrir mão de sua identidade clássica, inclusive no fato de que essas canções já são peças de museu a seu modo, tocando principalmente em festas e programas de rádio estilo revival. Não é o pop rock que faz a cabeça dos jovens de hoje: é a geração que anda beirando os trinta que considera essas canções como música de jovem, no que vai um acerto do Nelson, pois é esse o público alvo que ele deve ter em mente, que já não é assim tão jovem, e que portanto pode aceitar mais facilmente seu padrão de canto operístico pré anos 60.
    Em todo caso, a mistura funciona bem, em alguns casos até melhor que o original, o que nos permite tirar uma série de conclusões - e fantasiar umas outras tantas. Por exemplo, que o defunto nunca esteve assim, tão morto quanto se diz, e que o mal cheiro dele vinha de outro lugar, lá das bandas do inconsciente freudiano. Unheimlich. O padrão bolero operístico que dominou a cena entre os anos 40 e meados dos anos 50 nunca chegou a ser devidamente enterrado, mas mudou de forma e continuou na ativa. O seu principal descaracterizador não foi João Gilberto – esse criou uma outra coisa realmente, um novo padrão – mas Roberto Carlos, que forjou um novo tipo de canção romântica, de padrão melódico mas entoativo e pulsional (ou temático, para sermos técnicos). Um romantismo mais pé no chão, digamos assim, pós João Gilberto. Foi essa basicamente a principal transformação que Roberto Carlos trouxe para a canção brasileira, via rock, o que significa também que uma das principais características do rock entre nós é ser uma atualização do bolero, ou seja, propor um modelo de canção romântica moderna. Por isso, quando o rei deixa de fazer ieieie, depois de passar um tempo perdido na black music (sua melhor fase), para se tornar o modelo hegemônico de música romantica, não se trata de uma ruptura completa (encareteamento carlista) mas, sobretudo, de uma continuidade. E é por isso que um dos aspectos principais do Brock nos anos 80 é também propor um padrão de música passional, atualizando o rei e tirando a primazia da MPB. Legião Urbana é, antes de tudo, um grupo de música romântica, por isso, inclusive, o seu sucesso. O mesmo pro Lulu Santos< Kid Abelha e outros.
    Ou seja, por mais que se escreva a história como uma série de rupturas, o que em geral acontece é melhor compreendido como um conjunto de migrações e negociações contínuas que deslocam os objetos para outros lugares. Bora lá observar esses deslocamentos então. E, de quebra, fazer uma listinha classificatória, que é a parte divertida da coisa.
    O POST ABAIXO É PARA SER LIDO AO SOM DA NARRAÇÃO DO MILTON LEITE. QUE BELEZA!
    1) COMO UMA ONDA NO MAR (NELSON GONÇALVES X LULU SANTOS X TIM MAIA)
    A gravação do Nelson nos revela aquilo que a canção sempre almejou ser: um bolerão. Pontos pra ele. Nelson não altera significamente o padrão de interpretação, no que vai outro acerto, uma vez que “Como uma onda” foi criada por Lulu Santos como hit imediato. Mas ela acerta em um ponto que Lulu deixa escapar, na medida em que aceita integralmente seu padrão romântico. Enfim, na versão do Nelson a beleza é ressaltada. Contudo, a canção se torna um lamento, enquanto que no Lulu está em jogo a aceitação do caráter transitório da existência. A canção é mais solar do que pede a interpretação do Nelson, e aí é ponto pro Lulu. Mas não é por isso que ela deixa de conter essa passionalidade proposta pelo bolerão. No limite, trata-se da diferença entre um jovenzinho encarando as mudanças da vida, para quem cada mudança representa a abertura de novas alternativas, e um velho senhor, para quem cada mudança comporta um sinal negativo, o rumo inevitável para a morte.  A versão do Tim Maia fica num meio termo que me incomoda, carregando em clichês no arranjo, como a bateria eletrônica e o string. Pois é, Tim Maia é pior do que Lulu Santos nesse caso.  A principal vantagem da versão do Nelson é o arranjo, livre das convenções carregadas dos anos 80, substituídos por uma bem vinda ênfase no violão. Contudo, apesar da versão do Nelson ser mas bela, existe uma dimensão importante que se advinha na do Lulu. Daí o empate técnico. Segue o jogo. 

    NELSON 1 X LULU 1 X TIM MAIA 0
    2) FAZ PARTE DO MEU SHOW (NELSON GONÇALVES X CAZUZA)
    Aqui o Nelson apanha. Principalmente porque o Cazuza acerta muito na composição melódica dessa canção, e cria uma Bossa Nova debochada (meio Bossa Nova e Rock’n Roll). O padrão de interpretação é mais pra João Gilberto, portanto, o que exige certo despojamento que escapa ao Nelson, o que implica no padrão melódico ser mais propriamente enunciativo (falado) do que cantado, a não ser no refrão. A genialidade do Cazuza nessa canção está em ter acrescentado uma ironia perversa à letra, uma canalhice deslavada, compondo uma anti canção de amor com cara de música romântica. Nelson tenta transformar em canção romântica propriamente dita, e perde a mão. Ponto pro Cazuza. 
    NELSON 0 X CAZUZA 3
    3) DE MAIS NINGUÉM (NELSON GONÇALVES X MARISA MONTE E ARNALDO ANTUNES)
    Marisa Monte, junto com Arnaldo Antunes, se arriscam a fazer um choro canção. E não fazem feio, principalmente pelo arranjo com um regional que casa muito bem. Só que aqui, parceiro, é o Nelson Gonçalves jogando em casa com o apoio da torcida. O arranjo é basicamente o mesmo (escolha acertada de repertório, com uns toques mais abolerados, como o restante do disco), só que com as cores carregadas do samba canção. Ou seja, saem os miados da Marisa para entrar o peso das cordas. Aqui não tem a ironia do Cazuza, onde o Nelson se perde: é a Marisa fazendo aquilo que o Nelson é um dos grandes mestres (ou seja, o deslocamento temporal nesse caso sofre um achatamento, e o caráter fake de releitura despojada se perde). Ponto pro Nelson, que acerta ao carregar na passionalidade do arranjo, rompendo com o despojamento MPB da Marisa (mas, para sermos justos, esse despojamento faz bem para sua versão). A dor do Nelson é mais doída.
    NELSON 1 X MARISA MONTE E ARNALDO 0
    4) MEU ERRO (NELSON X PARALAMAS)
    O modelo escolhido por Nelson nesse caso deixa escapar uma dimensão importante da canção original – essa era a principal crítica feita a esse padrão operístico, que aqui revela seu fundo de verdade. Na versão do Paralamas adivinha-se certo desespero ansioso de um jovem que está tentando se convencer a todo custo, uma dimensão de ansiedade que a versão original deixa mais evidente, assim como o caráter de falsa resolução da primeira parte. Essa falsidade fica clara quando a batida ska perde centralidade após a invocação a Deus, quando o sujeito assume (mesmo que colocando no passado) que tudo o que ele queria era estar ao lado do outro. Enfim, tem um duplo movimento entre o desejo de afastamento e a dor do afastar-se (formalmente, uma diferença de tom entre a primeira parte e o refrão. Quase didaticamente, a guitarra é o Herbet Vianna, o teclado é a moça que quer voltar. No Nelson, que é mais macho, a moça desaparece) que a versão do Nelson acaba por chapar, enfatizando sobretudo a dor da separação (a passionalidade de sua interpretação, que sempre remete ao afastamento do objeto). Perde-se assim uma tensão importante da música, que a versão do Paralamas propõe e mantém, mesmo que com um acompanhamento musical que poderia ser muito melhor.

    NELSON 0 X PARALAMAS 1
    5) AINDA É CEDO (NELSON X LEGIÃO URBANA)
    Ainda É Cedo by Nelson Gonçalves on Grooveshark
    Ainda é cedo by Legião Urbana on Grooveshark
    O maior acerto do disco. Essa é uma que o Renato Russo gostaria de perder pro Nelson Gonçalves, sendo talvez o primeiro a reconhecer, com prazer, sua superioridade. A versão do Legião soa como aquilo que ela é: um pastiche de pós-punk, decalque do The Cure, com uma historinha de amor vomitada as presas que soa pouco convincente. Aqueles casos, comuns no Brock, em que o original parece uma cópia mal feita. A do Nelson, ao contrário, soa como aquilo que ela deveria ser: música de cabaré. A versão traz um frescor de originalidade, vinda de um veterano máximo da MPB, em estilo pré Bossa Nova. Aqui, de fato, estamos em uma relação de mútua escravidão, e o “Ainda é Cedo” do refrão soa como um grito perdido em um filme do Tarantino. A versão do Nelson ganha em clareza,  o distanciamento do tempo da rememoração, do sujeito que pesa os acontecimentos, e que verdadeiramente aprendeu a lição da moça. A do Legião quer parecer madura (aliás, essa não é uma boa definição pra toda produção do Legião Urbana, que insiste em se apresentar como mais madura do que efetivamente é, sendo que sua qualidade principal não está em sua maturidade?) mas soa fake e afobada em diversos momentos, apegando-se excessivamente ao pós punk, como um clichê. Coisas de banda iniciante (ainda era cedo). Renato diz que uma menina ensinou quase tudo o que ele sabe, e ao fim da canção fica-se com a impressão de que ele não aprendeu quase nada (talvez seja isso mesmo, e a partir do segundo disco ele ia revelar que aprendeu muito mais com homens do que mulheres). Quem sabe mesmo é o Nelson, que inclusive divide o refrão (que contém a moral da história) com vozes femininas… O Ainda é cedo da Legião soa como marca do não saber, que permanece, enquanto que no Nelson, é um estágio já superado. É claro, cantores com longas carreiras também se apegam aos mais diversos clichês, mas não é o caso dessa versão, que soa como um tipo de canção de cabaré com toques etéreos, quase psicodélicos – cairia bem com Jefferson Airplane. É como se o Nelson resolvesse pegar a historinha do Renato Russo: dá aqui, moleque, deixa eu contar isso direito porque você ainda não aprendeu a lição. A música ganha em densidade, camadas, o jogo com o coral e a percussão fazem o arranjo crescer. Enfim, um baile.
    *O gol do Legião que o juiz marcou é porque sua versão não é inadequada. O fato do refrão ser aquilo que o sujeito dizia pra moça antes de aprender a lição demonstra consciência da dimensão fake da afirmação de que tal lição foi aprendida. Mas a versão do Nelson, que percebeu faz tempo que um pé na bunda não é o fim do mundo, mas a própria condição humana, mostra que seria muito melhor se a lição fosse aprendida.

    NELSON 4 X LEGIÃO URBANA 1
    6) VOCê É LINDA (NELSON GONÇALVES X CAETANO VELOSO)
    Você É Linda by Nelson Gonçalves on GroovesharkVocê é linda by Caetano Veloso on Grooveshark
    Bom, aqui o advbersário é duro, tipo encarar o Anderson Silva, porque o Caetano é talvez o maior mestre nesse tipo de canção pop de amor na MPB. E o cara é simplesmente brilhante quando se trata de interpretação, de decantar aquilo que a canção, delicadamente, exige. E quando ela não exige nada, Caetano cria um tipo de interpretação que ora revela o que ali se ocultava, ora escancara contradições internas à forma, que de outro modo passariam desapercebidas (o caso célebre de Carolina). Em suma, é difícil fazer uma interpretação melhor que a do próprio Caetano (o mesmo vale pro Chico Buarque, diga-se de passagem, um puta intérprete). O que nao quer dizer que seja impossível, primeiro porque Caetano erra (sobretudo porque arrisca), segundo porque em canção é assim que funciona: nada é definitivo. Mas não é esse o caso. Nelson carrega nas cores do bolerão, e o tom Bossa Nova (mas é importante dizer que a canção guarda distância da Bossa Nova, sobretudo se repararmos bem no violão contínuo de Caetano, sem swingue nenhum, quadradão, acentuando os 4 tempos)  de aceitação da beleza da moça como um dado natural, como letra, música e ritmo, se perde. A interpretação do Nelson é excessivamente passional e chama atenção para o intérprete, enquanto que Caetano esforça-se para dar uma imagem precisa (concretude) de seu objeto – moça, mar, abaeté, a própria canção. O “você” do título ocupa o primeiro plano, e toda canção é uma busca pela adjetivação precisa, solar, desse objeto. Mas Nelson é malandro e não descaracteriza a canção, por isso a vitória não é, assim, de lavada.

    NELSON 0 X CAETANO 2
    7) BEM QUE SE QUIS (NELSON GONÇALVES X MARISA MONTE)
    Novamente o embate do Nelson com a última musa da MPB – de certo modo, a negação da possibilidade de musas na MPB. Uma versão de Nelson Motta para uma canção francesa, que foi um grande sucesso nos longínquos anos 90. No primeiro embate Marisa foi jogar no campo do adversário, e até que se saiu bem, mas acabou perdendo. Já aqui se trata do jogo de volta, e é o Nelson que vai se arriscar nesse terreno pop quase pagode (não é a toa que o Exaltasamba gravou a música, que ficou pior que as duas – deixou tudo quadradão) que Marisa domina bem. O resultado é que sua interpretação não consegue se adequar à naturalidade exigida pela canção, sobretudo no seu refrão. A canção se estrutura de uma forma bem convencional de modo a ser toda ela uma preparação para o extase sexual do final, extase esse que exige uma naturalidade entoativa que se aproxime da pulsão corporal. Ou seja, no refrão a melodia tem que ceder espaço para entoação porque é o corpo que vai entrar em cena. Esse é o único charme da canção, aliás, bem pobre – todo o pagode mais convencional se baseia exatamente nesse movimento, assim como parte do repertório romântico mais sexualizado do Roberto Carlos e seus seguidores, como Wando. Mas, ao não conseguir realizar esse mínimo deslocamento, a versão do Nelson fica desconjuntada. Me dói admitir, mas pontos pra Marisa por conseguir simular o orgasmo no final. O Nelsão dá uma brochada.

    NELSON GONÇALVES 0 X MARISA MONTE 1
    8)CASO SÉRIO (NELSON GONÇALVES X RITA LEE)
    Rita Lee era ótima para fazer boleros que soassem modeninhos. Um dos melhores é “Mania de Você”, uma canção excelente, naquele modelo de romantismo sacana que o Tim Maia adorava. “Caso Sério” é um outro exemplo da série, só que aqui marcado por certo certo distanciamento irônico, como se o flerte com o bolerão cafona não pudesse ser assumido integralmente, a não ser mediante ironia. Daí o porque do “Românticos de Cuba” ser pronunciado em portunhol, e de aparecer um “misto quente” que desloca o romantismo da cena com uma imagem de declarado “mal gosto”. Ora, Nelson Gonçalves não tem problemas em fazer a canção soar como um bolero deslavado, retirando qualquer traço de ironia da interpretação (por isso o misto quente fica tão estranho na sua versão), assim como ele já havia feito com Cazuza. Só que aqui o movimento funciona perfeitamente, pois a ironia que Rita aplica não é estrutural, mas antes um certo receio ou vergonha de fazer um bolero deslavado (o que não vai ser problema em “Mania de Você”, que assume integralmente sua sensualidade de Cabaré). Ao fazer a canção assumir integralmente sua vocação, a versão de Nelson supera a original, conseguindo soar ainda mais sensual – e não é muito fácil superar a Rita Lee nesse campo. 

    *Só pra servir de contraponto, e pelo prazer do sadismo, acresento uma versão muito inferior -  ainda pior porque quer aparecer como releitura cult. Aqui, a canção desaparece totalmente para ceder lugar a um violão sofrível e a torneios vocálicos absolutamente gratuítos. Nem beleza nem ironia, apenas uma egolatria desnecessária. Agradecemos ao senhor Ed Motta pela pérola.
    NELSON GONÇALVES 1 X RITA LEE 0
    ED MOTTA rebaixado para a série C do campeonato.
    9)NADA POR MIM (NELSON GONÇALVES X MARINA LIMA E PAULA TOLLER)
    Nada Por Mim by Nelson Gonçalves on GroovesharkNada Por Mim by Marina on GroovesharkPot-pourri nada por mim fullgás by Emilio Santiago on Grooveshark
    Uma canção pop romântica do Hebert Vianna, típica dos anos 80. Aqui ganha quem parecer mais sincero sendo um capacho. A canção por si não possui grandes atrativos, por isso em todos os casos o arranjo e a interpretação são bastante convencionais. A interpretação de Marina Lima e da Paula Toller seguem os clichês definidas por cada uma, e a de Nelson também segue seus próprios cliches. A versão ao vivo de Paula Toller com voz e violão segue o mesmo padrão adocidado das cantoras MPB contemporâneas. A submissão é adocicada e se apresenta sem resistência em todos os casos. A canção não é mesmo grande coisa, e mesmo um grupo péssimo como Sorriso Maroto consegue fazer uma versão que não compromete, porque não tem nada ali para ser comprometido. Talvez a melhor versão seja a do Emílio Santiago, que pelo menos é mais sincero ao revelar despudoradamente todo prazer sexual presente naquela situação de submissão masoquista, em sua versão soul-pagodeira. Enfim, o jogo é bem ruim, sem gols e sem emoção.
    NELSON GONÇALVES 0 X MARINA LIMA 0
    10)SIMPLES CARINHO (NELSON GONÇALVES X ÂNGELA RORO X SIMONE)
    Essa destoa um pouco das outras composições do album pois é uma música cuja base não é o pop rock anos 80. É uma canção de João Donato, com letra de Abel Silva – professor universitário que se tornou letrista por sua aproximação com Raimundo Fagner - e que coloca uma questão interessante. Acredito que exista uma ligeira incompatibilidade entre a letra e a música nessa canção, pois me parece que a letra é mais passional do que o exigido pela melodia. Pra quem não conheçe, sugiro que comece ouvindo a versão instrumental do João Donato, e procure imaginar sobre o que poderia ser a letra. A meu ver, a música tem certa leveza que as cores carregadas da letra (“Amar é sofrer”) fazem perder. E as interpretações acabam por focar mais no sentido da letra do que no da parte musical, até chegar no excesso passional (equivocado) da interpretação da Simone. Elas não são ruins, mas perdem algo da dinâmica proposta pelo João Donato. Aqui, portanto, o problema é anterior as gravações, ainda que a Simone peque por um excesso de passionalidade.

    NELSON GONÇALVES 1 X ANGêLA RORÔ 1 X SIMONE 0
    11) ESTÁCIO, HOLLY ESTÁCIO (NELSON X LUIZ MELODIA X MARIA BETHÂNIA X MARTINÁ’LIA)

    Um dos grandes intérpretes da MPB, em uma canção que está em um dos maiores discos da música brasileira de todos os tempos (Pérola Negra, 1973). Aí o negócio fica difícil. Contudo, essa música não deixa de ser um belíssimo samba canção, ainda que fale de morte e tenha sua dose necessária de esquisitices. E é claro, são essas mínimas sutilezas esquisitas  que ajudam a compor seu brilhantismo, assim como é claro que vão ser a primeira coisa a desaparecer na interepretação mais canônica do Nelsão. Sua versão vai propor uma suavização das arestas proposta pelo maldito Luis Melodia  - o que demonstra o equívoco das interpretações que dizem que esse modelo é sempre exagerado e passional, incapaz de sutilezas. A versão de Nelson Gonçalves prima pela beleza, enquanto que a de Melodia flutua entre beleza e violência (morte, maldição, ódio). A original é mais adequada aos sentidos propostos, mas a de Nelson é uma belíssima interpretação. Como bônus fica a versão da Maria Bethânia em um disco produzido pelo Caetano (Drama), que faz questão de reforçar as “esquisitices” da versão original, e o dueto de Luiz Melodia com Martiná’lia, que é a versão mais equilibrada, belíssima. Ponto pro compositor, que criou essa jóia.
    NELSON 1 X LUIZ MELODIA 3 X MARIA BETHÂNIA 2 X MARTINÁ’LIA 3
    12) ME CHAMA (NELSON GONÇALVES X LOBÃO)


    Lobão é um reacionário conservador com opiniões cada vez mais medíocres (aliás, quem da geração do rock anos 80 se salva? Esse é o preço pago por uma rebeldia juvenil de classe média desvinculada de uma base social concreta. O abismo desa geração para anterior  (MPB) e a posterior (RAP) em termos de alienação é impressionante. Eis o resultado da rebeldia enquanto produto de grife apenas). Dito isso, é preciso reconhecer que ele é o grande intérprete de suas canções (e ele tem algumas excelentes) e que suas interpretações vão ficando cada vez melhores com o passar dos anos. Aqui Nelson perde a mão – como havia acontecido antes com Cazuza – porque a canção ganha muito com um tipo de interpretação mais rock n’ roll. Na voz do Lobão, os versos ganham a intensidade do desespero, que os tornam muito mais contundentes: é óbvio que se a moça não telefonar, o cara vai ter uma overdose de cocaína, que a propósito já deve ter começado. Para o Nelson, é uma dor como qualquer outra, tanto que ele padroniza a distinção que tem entre a segunda parte e o refrão (e que nas versões primárias dos anos 80, do Lobão e da Marina, é reforçada descomedidamente). Nessa interpretação Nelson erra a mão e elimina o desespero que faz a graça da coisa, submetendo-se aos clichês de interpretação. 
    Dito isso, meus senhores, é claro que tem a versão do João Gilberto pra essa música… O baiano transforma o desespero da interpretação do Lobão em dado formal, transformando-o em uma relação entre melodia, fala, arranjo e harmonia. O desespero se torna um traço da composição, que faz com que a própria canção se dissolva. É chato de ouvir, não dá pra cantar junto, o desespero angustiado de roqueiro veterano se converte em depressão profunda. É só ler os comentários decepcionados dos fãs do Lobão no youtube pra saber que a visão que João tem da situação cantada é bem desagradável. Enfim, não vou colocar o João Gilberto no jogo, porque ele instaura um outro patamar na canção, difícil de ter termos de comparação… Não se trata de uma fuga, ou de aliviar a barra dos dois de forma condescendente. Mas é como se estivessemos num concurso de literatura contemporânea e de repente alguém dissesse que o Machado de Assis escrevia melhor. Possivelmente é verdade, mas não deixa de ser um disparate. 

    NELSON GONÇALVES 0 X LOBÃO 3
    …e a BOSSA NOVA É FODA
    10\2013

    segunda-feira, 26 de agosto de 2013

    A insustentável leveza dos pequenos gestos

    TEXTO PUBLICADO ORIGINALMENTE NA PÁGINA DA TORCIDA BAMBI TRICOLOR, SOBRE A FOTO PUBLICADO NO INSTAGRAM PELO JOGADOR EMERSON SHEIK, DO CORINTHIANS, EM QUE ELE APARECE DANDO UM SELINHO EM UM AMIGO.

    Quando a sueca Emma Green Tregaro mostrou suas unhas pintadas com as cores do arco-íris, recebeu da supercampeã russa Isinbayeva uma reprovação forte: "É desrespeitoso com o nosso país. É desrespeitoso com nossos cidadãos porque somos russos". Isinbayeva se referia, então, à legislação que cerceia direitos dos homossexuais na Rússia, como adotar crianças ou "fazer propaganda homossexual". A imprecisão desse conceito serve bem à homofobia, como ficou claro na tentativa de explicação que Isinbayeva deu, após a repercussão de suas palavras: "Quero expressar de maneira firme que me oponho a qualquer discriminação contra a comunidade gay a respeito de sua sexualidade (...). Se nos permitirmos promover e fazer esse tipo de coisas, tememos muito por nossa nação porque nos consideramos normais, com um padrão. Nós apenas vivemos com homens ao lado de mulheres, e mulheres ao lado de homens. Tudo deve estar bem. Isso vem da história. Nós nunca tivemos problemas assim na Rússia. E não queremos ter problemas assim no futuro."

    A homossexualidade seria, portanto, um desvio de conduta, um problema, uma anormalidade que ameaça o futuro e o estilo de vida russo que, segundo Isinbayeva, se calca na existência de casais heterossexuais exclusivamente. Numa lógica de tal forma opressora e contrária à diversidade, não admira que um gesto tão simpático à causa LGBT quanto simples - unhas pintadas com as cores do arco-íris - adquira esse superpoder de contrariar e desrespeitar uma nação, suas leis, seus cidadãos, seu projeto de sociedade, seu futuro. Esse temor pelo diferente, essa necessidade de que ele permaneça escondido, inaudito, invisível, isolado é, ora pois, a raiz primeira da homofobia. E a homofobia, como projeto político, depende de amarras tão apertadas, de um discurso tão restrito que basta um gesto positivo em relação aos LGBT, por menor que ele seja, para que se exponha seus limites e fissuras, sua artificialidade (a despeito de toda pretensão "naturalista" que o homofóbico evoca). Esses gestos apontam, quando não criam, os espaços de resistência que não permitem, afinal, que o discurso homofóbico seja o único possível, ainda que muitas vezes ele seja proferido pela maioria.

    Não é muito diferente do beijo do Sheik no amigo. Há quem relativize o gesto sob o argumento de que Sheik não é gay, não saiu do armário, chamou os são-paulinos de "bambis" há pouco tempo, etc. Que seja. Vamos primeiro estabelecer uma coisa: o Brasil não possui leis que proibem "propaganda homossexual" mas sustenta discursos muito alinhados com esta lógica. Basta lembrarmos da presidente Dilma no episódio da cartilha anti-homofobia retirada do programa escolar, da nossa atual Comissão de Direitos Humanos da Câmara, dos casos de agressões e assassinatos provocados por homofobia. Num país em que pai e filho são interpretados como casal gay por demonstrarem afeto publicamente e, por isso, são espancados, um selinho entre dois homens ganha dimensões de resistência. Não importa se Sheik é hetero, gay ou bi pois a ordem primeira é dissolver a ideia de que há eles, os gays, e nós, os normais, o padrão (essa é a conversa da Isinbayeva, aquela que não discrimina gays, lembram?). Dissolver a ideia que essas demonstrações de afeto entre homens é da alçada deles, os gays. Que beijar um homem implica em declarar-se gay, sair do armário, assumir uma opção. Pode ser isso, mas não precisa ser só isso. A possibilidade de que homens, independente de sua orientação sexual, executem gestos de afeto publicamente é algo que nós devemos celebrar e cultivar. Especialmente se esse gesto vem de um atleta, imerso num dos meios mais homofóbicos da atualidade (como temos discutido), consciente da repercussão que causará (como a legenda da foto demonstra). A definição da orientação sexual do jogador não importa em absoluto, importa o beijo.

    A reação (de boa parte) da torcida corinthiana lembra um pouco a Rússia de Isinbayeva. "Aqui é Corinthians" é o grito de ordem, a necessidade de delimitar o espaço da interdição e lembrar que, ali, naquela torcida, "não há esse tipo de problema". Que isso é "coisa de bambi". E não nos enganemos, se fosse um jogador de qualquer outro clube, receberia as mesmas chacotas de rivais e a mesma rejeição dos seus. Uma comunidade homofóbica, seja uma nação ou uma torcida de futebol, depende dessa "defesa" de sua honra, dessa manutenção de sua "pureza", uma vez que homossexualidade é defeito de caráter, vergonha, nojeira. Defender-se da acusão de ser gay e, ao mesmo tempo, lançá-la sobre o outro e torná-lo fraco, ridículo, humilhado é a lógica dos discursos dos rivais, e talvez isso explique porque "o bambi" é sempre o outro.

    Na nossa cultura, é difícil provar o teor nocivo de uma piada preconceitosa. Nossa maneira de lidar com o riso, com o esculacho, nossa postura acrítica aos discursos "politicamente incorretos" tornam complicada a tarefa. Não raro as mesmas pessoas que reproduzem piadas homofóbicas são aquelas que, diante de agressões físicas contra LGBTs, percebem ali o limite: bater não, tirar sarro sim. Então é preciso entender que, diante de racionalidades e falas em disputa por legitimidade política, é esperado que algumas contradições se apresentem - dentro de certos grupos, de sociedades, de pessoas. Talvez seja o caso de Emerson sheik, que usa a expressão "bambi" pra provocar os são-paulinos e depois posta uma foto dando selinho num amigo e dizendo não se importar com as piadas preconceituosas (que ele sabia que viriam). Isso não diminui seu gesto, apenas torna mais tortuoso o quadro geral dos acontecimentos. Não nos deixa esquecer que assim como "o gay" é sempre o outro, "o homofóbico" também o é; que ninguém está livre de expressar esse tipo de raciocínio negativo quanto à sexualidade, por melhores que sejam minhas intenções.

    Reconhecer em si o preconceito, admitir e trazê-lo à tona, tentar desmontar seus mecanismos... nada disso é fácil. É preciso, no mínimo, um ambiente que apresente argumentos, interpretações, possibilidades diferentes das tradicionais, das "normais". E, nesse sentido, o beijo do Sheik, sendo tão único no contexto do nosso futebol, vale muito mais do que suas provocações homofóbicas, que se juntam aos milhões de piadas homofóbicas repetidas e cristalizadas por aí. Todo gesto positivo é bem-vindo.

    Domingo na Marcha – uma reflexão do coletivo passa palavra sobre o Fora do Eixo ou, de boas intenções o inferno está cheio…

    Para quem está a fim de ficar por dentro do debate sobre o Fora do Eixo, e tiver tempo e paciência para ler cinco artigos densos, vale a pena acompanhar essa série em cinco partes (parte 1, parte 2, parte 3, parte 4 e parte 5) do coletivo passa palavra, de 2011. Os textos são uma resposta bastante séria, com um nível intelectual altíssimo e radicalidade de pensamento de esquerda muito bem vindos, a um ARTIGO bastante fraco da Ivana Bentes em defesa do Fora do Eixo. Um artigo que pode-se dizer que representa o pior daquele pós estruturalismo que, revestido de defesa do novo, na verdade é uma roupagem descolada e cool para a boa e velha manutenção de privilégios.

    De quebra, o texto tem uma análise curta do Tropicalismo que é a melhor que eu já vi sendo feita pela esquerda, rompendo com os esquematismos fáceis. Algo assim: o projeto liberal ou libertário do Tropicalismo na época era uma verdadeira alternativa a esquerda, considerando que direita e esquerda coincidiam em diversos aspectos, com seu teor nacionalista, autoritário e ideólogo da modernização. Como tal, foi rejeitado por ambos e não se realizou politicamente, embora fraturasse irremediavelmente a cultura nacional. Passado quarenta anos, a esquerda não mudou (ou pior, aquela esquerda de lá é o Estado de hoje), e o capitalismo passa a se realizar a partir do gerenciamento de agendas libertárias - o imperativo do gozo. Ou seja, o grande nó ideológico do nosso tempo: que o capitalismo realiza-se ali mesmo onde seria o espaço de sua contestação, sendo que a esquerda se converteu em espaço de cooptação e a crítica progressista é o modo mesmo como o capital se realiza. Ou seja, é por ser um novo modelo libertário contestador que põe em cheque práticas regressivas que o Tropicalismo se realiza a direita (posto que a esquerda entra em cena como organismo de cooptação burocrática). É por ser crítico e avançado, e não por ser alienado ou conservador, que realiza mas perfeitamente o desenvolvimento do capitalismo, que adora uma boa inovação crítica. Um belo exemplo de como a verdade é o lugar próprio da ideologia. [As consequências dessa visão são perturbadoras, pois se é a radicalidade que realiza o capitalismo, como fica a questão do valor, uma vez que o mais crítico pode ser o mais reacionário e vice versa?]

    Depois desse começo fantástico, os artigos são uma verdadeira aula de como se fazer crítica radical contundente, sem apelar para esquematismos ligeiros e sem fugir das contradições. A questão vai ser como o capitalismo passa a funcionar na pós-modernidade a partir de um modelo de cooptação de suas críticas, que se transformam em novos modelos de comportamento e padrões culturais. Como a contracultura se converte em seu contrário, na medida mesma em que traz avanços para a luta em relação a métodos engessados e aparelhamentos da esquerda. É nessa chave que é lido o FdE, a partir de uma análise cuidadosa da transformação do modo de articulação da indústria cultural (entra aqui até uma análise do mercado do tecnobrega), que funciona a partir do princípio de flexibilização e gerencialmente de mercados descentralizados, modelos agora menos lucrativos. Uma forma de concentrar saber e poder e, sob a desculpa de produzir novos modos de “viver” e “fazer”, criar nichos de mercado, dominar técnicas de acesso a recursos públicos que pretende se legitimar socialmente usando as Marchas da Liberdade como meio. Além disso, o artigo mostra como essa novidade do FdE se articula com o projeto de precarização da cultura no governo Lula, sob o ministério de Gilberto Gil.

    Essa série de artigos é fantástica porque oferecem uma resposta consistente para aqueles que acusam a esquerda de preservar velhos dogmas. Aqui fica mais do que claro e evidente que não se trata de negar a radicalidade do novo, e sim reconhecer o problema fundamental da sociedade pós fordismo, pois que é nessa radicalidade que o capitalismo melhor se realiza. Hoje, mais do que nunca, é como se o inferno fosse povoado apenas de boas intenções, a tal ponto que, desprovido de função, o paraíso deixasse de existir. Ou seja, não se trata de negar que esses novos modelos não operam transformações importantes que podem ser lugares desicivos de contestação. Mas compreender que o capitalismo atual não funciona a partir da negação do princípio do prazer, mas antes ressignificando o gozo a partir de seus parâmetros, transformando os 0,30 centavos em espasmos de gigante adormecido.
    Para acessar a página do PASSA PALAVRA, clique AQUI.

    Algumas notas sobre a canção (Tropicália, MPB, Roberto Carlos, Funk)

    Para marcar na agenda: é preciso deslocar a leitura hegemônica da história da canção brasileira, que busca qualificar seu momento "heroico" a partir da oposição entre MPB e Tropicália, cabendo ao público qualificado escolher com qual dos dois lados se identifica, o da “crítica reformista” tropicalista ou o do “engajamento elitista” da mpb. A história é entendida a partir de pares de oposição: a Bossa Nova cria a forma que é ampliada em todos os níveis pela MPB e, na sequência, rompida pela crítica tropicalista, que desvela seus limites. Pode-se compreender a ruptura tropicalista como avanço ou retrocesso. Em todo caso, nesse momento houve uma fissura, e o festival da canção aparece como polo de interesses políticos irreconciliáveis.

    Contudo devemos instaurar um terceiro elemento nesse par de oposição, aquele elemento ausente da narrativa hegemônica, cuja presença invisível (sua rasura) determina o sentido desta, estruturando-a. Trata-se, evidentemente, do fator Roberto Carlos. Esse é o "verdadeiro" elemento de oposição da polêmica, em torno do qual os outros dois fatores entram em disputa por hegemonia (de uma perspectiva mais macro, o grande elemento ausente não é a disputa política - alto modernismo MPB ou pós modernidade tropicalista - mas a disputa pelo mercado, que não era apenas uma reivindicação Tropicalista). A história, contada a partir dessa irrupção carlista, apresenta outro esquema. A ampliação do fator Bossa Nova promovida pela MPB - que a coloca como o gênero mais vendável da época - é interrompida pelo surgimento de Roberto Carlos como elemento alienígena (produzido pelo mercado), abrindo o campo para uma disputa por hegemonia. A Tropicália, assim, não é oposta ao padrão MPB, mas é a forma mesma que a MPB precisou necessariamente assumir para continuar sendo o gênero hegemônico no sistema, expulsando o paradigma proposto por Roberto Carlos do campo. Dois pólos de um mesmo modelo que se transformam para permanecer no topo.

    A relação entre MPB e Tropicália é, sobretudo, de continuidade. Uma disputa entre pares, por assim dizer. Tanto que, após esse momento heroico de confronto (que evidentemente tem uma dimensão política, atravessada, contudo, pelo mercado, como aliás enfatizava o tempo todo o próprio tropicalismo), fazer música com guitarra elétrica passa a ser um privilégio da MPB que, desse modo, torna-se a música pop (desdobramento do padrão rock) por excelência do Brasil, até os anos 80, quando o paradigma da formação nacional começa a ruir. Roberto Carlos é expulso do campo e, imediatamente 'envelhece', passando a trabalhar com materiais marginalizados como serestas, boleros, gêneros de matriz latino-americana, etc... Ou seja, sua passagem para esse campo romântico\brega não se deve apenas a um desejo mercenário do rei para aumentar suas vendas, e sim ao fato de ter perdido a disputa pelo gênero pop para a MPB (durante um tempo, entre 68 e 71, Roberto até tentou integrar-se ao campo aberto pela Tropicália - é quando produz seus melhores discos - mas aí seria para sempre um sócio menor, e não o rei). Diga-se de passagem, ele revolucionou os padrões da música romântica brasileira, introduzindo alguns aspectos propostos pela... Bossa Nova (mais Tom Jobim do que João Gilberto).
    Tanto a MPB quanto a Tropicália podem ser compreendidas como participantes ativos de um mesmo processo geral de fundamentação da música pop Brasileira a partir do paradigma da Bossa Nova. Sua oposição não é absoluta, tratando-se antes das tensões decorrentes dos mecanismos de adaptação na disputa por hegemonia, um esquema de adaptação ao mercado fonográfico (em seu interior, contra e a favor), para não ficar pra trás. A disputa foi, efetivamente, vencida, mas a fratura retorna, por assim dizer, pela porta dos fundos: o enigma da majestade do rei - e de tudo aquilo que, com ele, foi marginalizado e, incorporado pelo mercado enquanto tal - é uma das questões mais espinhosas da canção brasileira.
    *****
    Voltando a distinção polêmica, nos termos colocados pela Ópera dos Vivos, da Cia do Latão. Construção, do Chico Buarque, para alguns o momento de seu amadurecimento, é seu disco mais Tropicalista (não é a toa que o arranjo da canção Construção é de Duprat, e segue o mesmo esquema dialógico dos arranjos tropicalistas). Significa que ele consegue romper com o conservadorismo tropicalista com as armas do inimigo, ou que ele se vendeu, mas depois entra nos eixos? Tom Zé, aquele do comercial da coca cola, é tropicalista. Quer dizer que o Tom Zé é mais conservador do que parece, ou que a Tropicália é mais a esquerda do que se assume? Os mutantes também são tropicalistas. Em que sentido o som que eles fazem pode ser classificado como uma regressão ao mais mercadológico e comercial da canção? Clube da esquina e Novos Baianos só existem via tropicalismo, ou não? E se desautomatizassemos esses pares de oposição, não seriam mais produtivas as leituras? Ou estaríamos sendo por demais tropicalistas (uma reedição no campo da canção do que no plano intelectual aparece como negativismo marxista versus positivismo pós moderno, enquanto Zizek, Jameson, Stuart Hall, Ramond Willians, Spivak, Judith Butler tão dando risada na nossa cara...)

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    Se o funk carioca é um gênero que, ao que me parece, consegue dizer mais sobre aquilo que o país se tornou do que o excelente último disco do Chico Buarque, ou a ainda melhor trilogia Cê do Caetano ou o excepcional disco de estreia do Metá Metá. E se, além disso, o gênero causa mais incômodo aos setores conservadores da sociedade (MC Daleste foi morto por sua música, assim como John Lenon e Fela Kuti, e aos que afirmam que ele foi morto pelo posicionamento 'político' e não pelo potencial estético, a rigor, regressivo, pode-se argumentar que uma das complexidades do funk - e do rap, com as correspondentes diferenças de grau - é justamente a promiscuidade entre as dimensões ética, estética e política), gerando um quiproquó valorativo em que esquerda e direita concordam que a Bossa Nova é foda (e é mesmo) e esquerda e direita concordam que o funk é esteticamente 'pobre', ou mal estruturado (em certo sentido é quase uma ilustração didática do caráter regressivo da canção de massa adorniana, em termos de organização dos materiais. E é mesmo). E se ambos os juízos estão, em seus limites, corretos - não se trata de falar que o funk carioca é avançado esteticamente, negando suas limitações - pode ser que o que tenha mudado fundamentalmente seja a própria possibilidade de atribuir valor a partir da relação entre qualidade estética e posicionamento crítico (o fundamento da crítica imanente?). O que não é o mesmo que dizer que de nada serve mais atribuir valor (o mercado sempre atribui valor) mas, antes, que a própria noção do que seja valoração pode ter mudado radicalmente (é claro que isso não é novidade, mas é claro também que a tradição crítica brasileira está devendo em termos de crítica séria da cultura de massas - a mais rasteira - para além dos diagnósticos já conhecidos). Ao menos, essa relação entre forma avançada e crítica radical já não está dada de antemão, sobretudo quando o capital nivela tudo, reproduzindo-se tanto pela crítica mais radical quanto pelas formas mais conservadoras. Nem sempre a qualidade estética é progressista ou menos insignificante por ser foda (mas isso nós sabemos, não é, embora ainda se trate problemas formais em termos de insuficiência de radicalidade) e (aqui é mais complicado de aceitar) nem sempre o que é progressista é o que se precisa no momento para fazer a sociedade avançar em termos progressistas (ainda que as definições precisas sejam, mais do que nunca, necessárias. Afinal, o gigante acordou).