sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Razões estruturais para o insucesso de Ed Motta


Primeiro, deixemos claros que estamos tratando daquele Ed Motta mais pop, que vai até os anos 2000, e não daquele que se propõe a fazer discos mais difíceis, de forte influência jazzística. Aquele que opera com ritmos dançantes, grandes melodias de forte apelo somático, e que tem um cuidado no arranjo que raramente se vê na música pop nacional, seguindo de perto o padrão Montown, e que canta absurdamente bem. Ed Motta é sem dúvida um grande autor, e que não tem aquele ranço brasileiro idiota de trabalhar com a cultura de massa – a que, no fundo, melhor nos representa. Ele se propôs, como o tio Tim, a fazer música pop. E de excelente qualidade. Fica então a pergunta, sendo tão talentoso e com um grande nome de família, guardando semelhanças físicas e vocais mas sem se tornar uma cópia mal feita por encontrar um estilo próprio (o que não aconteceu ainda com a Maria Rita, por exemplo), apesar de fazer Black music de qualidade, porque não se tornou um sucesso? Porque o baixo retorno do público, que desiludiu o compositor a ponto dele abandonar seu lado pop em nome de uma obra mais hermética?

Ao invés de nos concentrar em fatores “externos” também importantes (mercadológicas, industriais, gosto), vamos partir de um dado interno de sua prática cancional, a enunciação, que comporta não apenas a interpretação, mas também a criação das linhas melódicas (já que ele é o compositor de suas canções) em relação com as letras. O momento em que tudo isso se conjuga na forma canto. Acreditamos que um das causas mais importantes para o insucesso de Ed Motta, a despeito da alta qualidade de seu trabalho (e descartamos por enquanto o juízo preconceituoso de que o brasileiro não sabe apreciar um trabalho bem feito, o que é uma besteira sem tamanho mas que guarda um momento de verdade com relação à música pop, que não segue no país uma tradição de elaboração industrial como nos estados unidos, em parte por não termos os mesmos recursos tecnológicos, em parte porque nossos recursos efetivamente “toscos” não interessam em um mundo voltado para o grande capital, do qual fazemos parte na condição de primos pobres, em parte porque nossa atenção se volta para aspectos mais artesanais da canção, esses sim, de grande complexidade. Em suma, aspectos da nossa famosa incapacidade criativa de copiar) esteja no tipo de tratamento melódico que ele confere a suas composições.

Ed Motta cria típicas melodias de linhagem americana (mas com incrível senso de musicalidade do português, é importante dizer, pois cria grandes canções e não pastiches de músicas importadas) em que os torneios vocálicos importam tanto quanto a mensagem do texto, por vezes, inclusive, perdendo-se a mensagem em nome da voz. A voz que canta se sobrepõe à voz que fala. Entre parêntesis lembro de um quadro do Casseta e Planeta que se chamava “música para quem não fala nada”, e os dois modelos eram justamente o Ed Motta e o João Bosco, cantando Papel Marche, por conta dos improvisos melódicos que estes conferem à suas composições. Esse padrão segue sentido oposto ao padrão enunciativo da canção brasileira, que nunca perde de vista aquilo que se diz, a mensagem dita por alguém no interior de uma melodia. Nossos maiores intérpretes não são os que realizam maiores marabalismos vocálicos, mas os que conseguem dizer com precisão o sentido que a melodia\texto quer transmitir. Mesmo Tim Maia – paradigma local de black music - jamais perdeu o texto em suas canções. A vocação da canção brasileira é voltar a ser fala – seu lugar de origem – e dessa zona intermediária em que não se torna música mas deixa de ser mera fala é que, com exceções, retira sua força.

Por mais que tenhamos grandes cantoras, jamais teremos uma Sarah Vaughan, ou uma Ella Fitzgerald, cantoras que tratam a voz como um instrumento, e que podem cumprir a função de um sax, ou de um trompete, quando a música assim o pedir. As melodias das canções negras americanas pedem o improviso, são complementadas pelos floreios vocálicos, perdem significação caso não o tenha – como as composições de Ed Motta, que não tem sentido na voz de outro intérprete menos “potente”. O potencial vocálico das cantoras nacionais é “constrangido” pela linha melódica que tem vocação para fixar-se, e seu talento consiste em procurar a interpretação definitiva, pouco propensa ao improviso que a descaracterize. Não se trata de juízo de valor: a qualidade é que está em outro lugar, em encontrar a versão definitiva (“Águas de março”, na versão Elis, “Carcará” na versão Bethania, “Malandragem” na versão Cassia Eller) para a canção. Torná-la uma peça única, apesar de sua vocação coletiva, comum aos gêneros populares. Encontrar o jeito mais adequado de cantar aquele texto, adequando a voz ao texto, ao invés de transfigurá-lo pela voz.


O padrão canto/improviso instrumental negro americano.

Temos também exemplos de cantoras com voz-instrumento, mas todas acabam por se adaptar à estrutura cancional brasileira, com risco de não “pegar” no país (como o caso de Leny Andrade). Lembremos as sambistas Alcione e Elza Soares. Mesmo na tradição da música romântica, em que no geral o sujeito da enunciação precisa aparecer tanto quanto ou mais do que o próprio texto, ainda assim este não se descaracteriza – a não ser em parte de certa tradição operística – Vicente Celestino - que anda bem em baixa (embora não tenha desaparecido de todo, basta acompanharmos o programa Raul Gil). Ainda assim, a tendência aqui é que a voz reforce as indicações passionais indicadas pelo texto (melódico e linguístico), ao invés de se sobrepor a este. No caso dos cantores da era do rádio, que cantavam sambas com timbre operístico, muitas vezes deformando o sentido melódico, ao poucos foram adaptando seu timbre ao sentido indicado pela canção, criando um modelo nacional de interpretação, a ponto de um Orlando Silva já conseguir transmitir as gingas melódicas perfeitamente bem, mesmo na tradição do bel-canto. E mesmo a tradição romântica moderna, pós Roberto Carlos, já adequa muito mais tranquilamente as expansões sentimentais no interior da curva enunciativa.

Voltando podemos dizer que o “problema” de Ed Motta – e que por uma lado é a razão de sua força estética – é que ele americaniza a linguagem cancional brasileira, enquanto seu tio (tomando lições com Roberto Carlos e com o samba) abrasileirava o padrão americano. Poucas canções de Ed Motta poderiam se tornar bem sucedidos pagodes (como no caso de “Você”) ou axés (“Não quero dinheiro”, com Ivete Sangalo), embora muitas poderiam ir para as pistas, como o “Descobridor dos Sete Mares”. A impressão que temos ao ouvirmos seus discos é que, por sua acentuação e divisão rítmica, as melodias são americanas, apesar de que, por se tratar de um sujeito extremamente talentoso e com ouvido privilegiado, as letras em português não soem desconjuntadas – como acontece em muito Black brasileiro dos anos 70 – como se fossem adaptações forçadas. As letras são cantadas em português adequadamente, mas soando em uma estrutura americana, um processo de transfiguração altamente complexo que atesta a qualidade de seu autor, e contribui para seu isolamento, pois são poucos os que possuem esse talento, que exige no mínimo um ouvido primoroso e um senso rítmico e melódico acima da média. Por ora, lembro de Gilberto Gil, um de nossos maiores gênios. Ou seja, as canções de Ed Motta tem encanto mas pecam em eficácia, as duas dimensões fundamentais para uma arte de tipo industrial como é a canção popular urbana, segundo Luis Tatit.


A música do tio famoso, agitando o Maracanã.

A Black music que pega no Brasil é a que se converte em outra coisa, assim como o rock, o reggae, o blues, o jazz... Ou passa por uma transfiguração radical que o converte em um outro, como Jorge Ben, ou sofre uma ressiginificação profunda de modo a que se faça música brasileira com jeitão black, como Tim Maia. Ed Motta tentou trilhar outro caminho, fazendo black music em português, o que aliás, realizou de forma muito bem feita. Só que não pegou, ou seja, não se mostrou eficaz e não frutificou, e nem poderia, por caminhar em sentido contrário à necessidades históricas internas do país. Uma forma bem acabada esteticamente mas que gira em falso por não se ancorar em um significado estrutural nacional – nossa linguagem cancional, sempre em transformação e com infinitas variedades a serem criadas, mas com presença e força incontornáveis, tanto para as músicas boas quanto para as ruins. E que o público brasileiro rigorosamente exige. O que não significa que não existam músicas nada a ver, pastiches ruins (quase todas as versões de Beatles em português, por exemplo) que façam sucesso. Mas no geral, são grupos de um só sucesso, ou então que fazem isso mas criam (ou recriam) também outras composições mais adequadas e melhores, como é o caso de Chitãozinho e Xororó.

O resultado final é que a linguagem de Ed Motta é pop, mas um pop difícil, sofisticado, jazzístico, que os americanos estão acostumados, mas o Brasil não – inclusive pelo caráter elitista da cultura no Brasil, que despreza a cultura de massa, além de outras razões que levantamos acima, e que nada tem a ver com a ignorância e mal gosto do pobre. Parece que, no fim das contas, Ed Motta sofre da mesma síndrome de Manuel, o personagem de seu primeiro grande sucesso: “se eu fosse americano minha vida não seria assim”.


O fenomenal pop sofisticado de Ed Motta.

Como presente, um disco em que Ed promete nos ensinar algumas lições de como fazer um grande baile. Um disco excelente, cheio de swing e com produção esmerada, que não deve nada aos grande mestres pop americanos, como o saudoso Michael. O único equívoco de Ed é não ter assimilado (ou ter optado por não considerar, porque ele foi progressivamente transformando sua linguagem em direção ao pop-jazz internacional) que a estrutura dos bailes e festas brasileiras é outra, e que toda transformação que almeje vingar por aqui precisa partir de dentro, para o bem e para o mal. Porque, ao contrario do que se diz, a música tem pouco de universal.


DOWNLOAD: Manual prático para festas, bailes e afins

Como contraponto, um disco de um mestre do pop nacional com estrutura similar a esse projeto do Ed Motta, (com a grande diferença de ser pop rock dançante, mais tosco, e não um disco Black), e que fez grande sucesso, recolocando o autor no topo. Lulu Santos é um dos grandes criadores da reformulação por que passou a canção romântica brasileira nos anos 80, no fim, a contribuição mais importante (produtiva) dada pelo rock Br.


DOWNLOAD: Lulu Santos – Assim Caminha a Humanidade


Menos "sofisticado", mas parece que o que bota o povão pra
dançar por aqui é outra coisa.

3 comentários:

  1. Olha, uma coisa é uma música ter uma estrutura complexa, outra coisa é ela ser chata.

    Acho que a chave que você usa para analisar é bem útil e deve te dar uns bons resultados se você a continuar usando, mas outra coisa é ser metido a besta, que nem o Ed Motta.

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  2. Certo Boni, eu até entendo, mas esse conceito de chato é meio complicado pra explicar.. nada mais metido a besta que João Gilberto e Tom Jobim que, no entanto, pegaram bem por aqui, com forte influência posterior inclusive...

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  3. A questão é o ritmo, o tempo e as acentuações da melodia da letra. É nisso que está a diferença. A música que faz sucesso é aquela que apresenta algo primitivo para o público. Nada mais primitivo que o rítmo. Boa noite.

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