terça-feira, 4 de setembro de 2012

OS MEUS DISCOS DE METAL PREDILETOS I (e não algo como os melhores discos de metal da história)

Que tal um passeio pela mente de um assassino em série de crianças? Por sessões de necrofilia, tortura, e satanismo entre leprosos? Ou ainda, deliciar-se com a mente de um mutilado de guerra que tem seus braços e pernas inutilizados, e não consegue pedir para que o matem porque seu rosto foi completamente desfigurado? Com vocês o suavemente agradável reino da verdadeira celebração multicultural: o metal.(agora seguido por comentários de um parceiro que leu o texto, e que já publicou excelentes posts nesse blog, como o sobre a propaganda da Renault e sobre o novo disco da Gal Costa, disponíveis AQUI e AQUI.
METALLICA – MASTER OF PUPPETS (1986)
O paradigma absoluto, que forneceu as coordenadas de como se cantar a insanidade do mundo. Creio que o diferencial do grupo desde o início foi sua – que depois o aproximaram cada vez mais do modelo de canção pop - incrível capacidade de unir canções épicas altamente agressivas, com forte teor de denuncia, a um lirismo que personaliza e singularizava aquela experiência devastadora que está sendo cantada. Suas canções, quando acertam o ponto, são radicalmente poderosas, pois condensam uma multiplicidade de sentidos. Diferentemente do Slayer, que vai se aproximar da morte, loucura e dor como quem olha de fora e aprecia o espetáculo (A causa secreta, de Machado de Assis), o Metallica vai muitas vezes contar a experiência da perspectiva de quem a sofreu, seja alguém que foi completamente mutilado na guerra, seja alguém que narra a partir da cadeira elétrica, etc. Isso insere uma dimensão lírica nas letras que é transposta para a estrutura, no interior da agressividade, sobretudo pelo talento do guitarrista Kirk de transmitir emoções distintas e matizadas em seus solos. O ponto de vista do Metallica é bem mais humanizado que o do Slayer: se Angel of Death fosse composta pelo Metallica, provavelmente a perspectiva escolhida não seria do médico nazista, mas de alguma vítima judia (e provavelmente a canção perderia a força terrível que tem). O solos de guitarra não são nem instrumento de tortura como no Slayer, e nem exibição narcísica como no Megadeth, mas gestos de verdadeira simpatia, um desejo de fazer com que a guitarra expresse a voz daquele sobre quem se canta.
A canção Master of Puppets é absolutamente genial, porque consegue condensar o que de melhor o rock psicodélico e progressivo produziram (com suas variações climáticas que produzem multiplicidade de sentido) com a agressividade hardcore mais estrema. Poucos grupos conseguiram alcançar esse grau de equilíbrio, e por isso o Metallica é um dos mais brilhantes grupos de rock da história.
ONE – clip legendado que revela muito da perspectiva “humanista” da banda.

SLAYER - REIGN IN BLOOD (1986)
Depois desse álbum já apareceu coisa mais suja, rápida, agressiva, satânica. Mas todas soam como repetições. Primeiro como tragédia, depois como farsa, diria algum barbudo. Diferente do Megadeth e mesmo do Metallica, onde os solos aliviam a opressão e abrem espaço para a subjetividade respirar, ou mesmo o Sepultura, que encontra um ponto de referência no protesto, nesse album o massacre e a desilusão são completos. Começando pelo grito inicial – que pensamos ser uma nota da guitarra - o que poderia se lido enquanto símbolo de poder - e logo percebemos que se trata, na verdade, de um grito de desespero que se confunde com a guitarra. Todo o álbum vai ser um desdobramento desse grito inaugural. Os versos são despejados, como se o sujeito fosse morrer assim que acabasse de falar, ou como se a fala fosse a própria antecipação da morte. O narcisismo desaparece: os integrantes do Slayer não estão brincando. O solo aqui não é libertador, é mais um instrumento de tortura no campo de concentração. As letras falam (ou antes, descrevem com altas doses de sadismo) de morte, religião, insanidade, assassinatos, e Auschwitz em 28 minutos de violência extrema. O inferno deixa de ser uma metáfora: “Auschwitz \ o significado da dor \ o jeito que eu quero que você morra”. Esse é o começo do disco, que não alivia em nada depois. Apologia? O grupo mergulha o mais profundamente possível nas regiões mais tenebrosas do mundo, pra vomitar de volta. Mas o sentimento em relação a essas regiões é profundamente ambíguo, misto de fascínio e desilusão. Mas é no mínimo estranho que um grupo com tendências facistas tenha como vocalista um chileno...
Pra sentir o desconforto gerado pelo disco, segue esse clip bem instrutivo e didático feito por um brasileiro.
MEGADETH - RUST IN PEACE (1990)
Um disco que instala-se brilhantemente entre o trash e  o heavy metal. A diferença básica entre os dois estilos está na ênfase dada à individualidade, sobretudo ao Guitar Hero, mas também aos outros elementos, como o baixo ou o vocal altamente estilizado. Por isso é comum o heavy criar personagens e climatizações muitas vezes ridículas (embora o trash também possa adentrar esses extremos caricatos, como o Death Metal e seus temas diabólicos fake), que recriam uma atmosfera de poder (vikings, vampiros, zumbis) que levam a extremos seus mitos, cercando o gênero de uma aura fantasiosa (que nos melhores casos cria uma atmosfera ficcional altamente consistente que produz múltiplos sentidos e escapa do tom de charlatanismo).
O trash surge para corrigir esse apelo “ficcional” do heavy, e recolocar o peso e agressividade em relação ao pesadelo da própria realidade. Ao invés dos solos, a ênfase recai sobre os riffs e a relação de poder estabelecida entre os vários elementos de forma concisa, aproximando-se do hardcore. Dave Mustang tem a forte tendência narcísica de se representar como gênio incompreendido, e isso tende a transparecer nos discos do Megadeth. No caso de Rust in Peace, entretanto, a fórmula funciona, criando um álbum potente e realmente intermediário entre o peso do trash e o narcisismo do heavy. Músicas cuidadosamente trabalhadas e complexas, cheias de solos sensacionais do Friedman, sem abdicar do peso dos temas e riffs pesados, que a maioria das vezes se sobrepõem.

COMENTÁRIOUma distinção entre o Metallica e o Megadeth que vc não pegou seria importante pra reforçar um desdobramento estrutural da virtuose: a capacidade do Mustaine de inventar riffs um pouco mais complexos e cantantes. Isso desligou a banda do speed metal (ficou como vestígio em "High speed dirt" e "The desintegrator") e do metal clássico (não sobrou nada). Isso levou eles numa direção que se transformou num campo inteiro do gênero (o metal melódico e derivados), apoiado por bandas como Halloween, a vertente melódica do roque de guitarrista (Yngwie Malmsteen, Joey Tafola, etc). É por isso que os fãs true começam a torcer o nariz pro Megadeth a partir do "Countdown to extinction". 
Clip Holy Wars legendado:
SEPULTURA – ROOTS (1996)
O grupo de mineiros já havia conseguido, com Arise, o feito extraordinário de emplacar um sucesso mundial a partir da periferia do capitalismo, conquistando um lugar de respeito ao lado de grupos como Slayer e Antrax. De fato, o Sepultura nesse álbum de 1991 se aproxima da virulência apocalíptica do clássico álbum do Slayer postado aqui. Mas a contribuição original do grupo ao cenário mundial irá acontecer quando eles por assim dizer tiveram um choque de encontro com a realidade brasileira, não só com aquilo que eles próprios deixaram de fora de sua obra, mas aquilo que é relegado a segundo plano pela própria cultura oficial do país – cultura essa que era o objeto principal da crítica do grupo, dirigindo-se especialmente contra a religiosidade oficial conservadora e a linha evolutiva da MPB. Podemos arriscar e dizer que Roots é uma retomada ao inverso do projeto Tropicalista, juntamente com uma proposta de engajamento radical (assim como faz, no mesmo ano, o Chico Science e Nação Zumbi). Um encontro com o recalcado na cultura nacional, que deglute a informação estrangeira e a renova na medida em que se recria – estruturalmente, as guitarras deixam de se pautar na velocidade para criar uma pegada “berimbau”, tirando seu peso da reiteração agressiva. Um projeto que, no limite, desloca radicalmente os sentidos do que seja o nacional, o local ou o tradicional, e clama por um reencontro consigo mesmo para além das fronteiras, constituído a partir dos despojos do terceiro mundo.
O Sepultura realiza uma proposta profundamente inovadora e um dos grandes momentos da música brasileira a partir de uma matriz que lhe é “exterior”, problematizando a própria noção de identidade. Nos termos de Idelber Avelar: “a nação inicialmente é vista como território hostil, codificado em formas que, por definição, excluíam o metal. Era, portanto, um território para ser atravessado e transgredido. Graças a reflexão inteligente, o constante aprendizado e o sucesso internacional da banda, ela passa a ver o Brasil por outro ângulo. A nação torna-se uma fonte de linhas de fuga, colaborações e experimentos imprevistos. Ao redefinir as fronteiras do metal, o Sepultura também redefiniu o que se entendia por música brasileira”.
Ao invés do disco de estúdio, posto esse show feito no ano de lançamento do álbum, e que dá uma boa ideia do poder da banda ao vivo, ainda com os irmãos Cavalera.

OS MEUS DISCOS DE METAL PREDILETO II (e não algo como os melhores discos de metal da história)

RAGE AGAINST THE MACHINE - RAGE AGAINST THE MACHINE (1992)
Desde que apareceu aproximando o heavy metal do hardcore, o trash estava esperando alguém que fizesse a ligação entre o engajamento mais niilista e pulsional do estilo com o protesto mais racionalista e conseqüente do rap. E o grupo que consegue realizar essa fusão com perfeição é o RATM, injetando novo gás no gênero, sobretudo graças ao extremamente criativo e competente guitarrista Tom Morelo. Um desses raros casos em que um disco já nasce clássico. O álbum todo é excelente, e ainda possui uma das mais poderosas canções dos anos 90, Killing in the nameFuck you, I won't do what you tell me!

KILLING IN THE NAME, ao vivo e legendado:
IRON MAIDEN – LIVE AFTER DEATH (1985)
O início da Donzela de Ferro apresenta uma mistura poderosa do virtuosismo e estetização do heavy metal com a agressividade veloz do hardcore. É, porém, com a entrada de Bruce Dickinson nos vocais que o grupo assume definitivamente suas características principais. O vocal de Bruce acrescenta uma dimensão passional às melodias do Iron Maiden, uma tendência do romantismo brega típico dos anos 80 (existe, inclusive, certa semelhança entre algumas linhas melódicas do Iron Maiden e do Roupa Nova, por exemplo) que é essencial para compor o clima de terror que o grupo procura, e cujo momento mais inspirado talvez ainda seja The Number of the Beast. Um clima de terror que é bem diferente da angústia e desespero dos grupos trash. A canção The number of the beast, por exemplo, foi criada por Steve Harris após ter tido um pesadelo com um filminho de terror. É esse o clima que o grupo procura transpor para suas canções: adolescentes com medo do escuro que procuram dar forma para suas fantasias sobre monstros. O grupo cria mitos que operam na chave da infantilidade masculina: estão lá as fantasias de super herói, a potencia sexual, a fraternidade masculina, os monstros, o mascote, a recusa em crescer. Nessa chave tem de ser compreendida também o suposto “satanismo” do grupo: tudo se passa como em uma grande partida de RPG. Caso não fosse assim, não teria o sucesso e a abrangência que tem. Mas essa dimensão fake ostensiva não é uma fraqueza. Ao contrário, é quando assume, com Bruce Dickinson, toda essa tendência para o brega anos 80, o kitch mais descarado, é que o grupo encontra o caminho do sucesso e faz escola.
Dois fatores principais ajudam a explicar o grande sucesso do Iron Maiden na América Latina, para além dos anos 80. O primeiro é aquilo que justamente os fãs radicais de metal procuram rejeitar a todo custo, ou seja, a tendência passional brega de suas canções\encenações. O universo de poder masculino no Iron é completamente rasurado por forças infantis e “femininas” que criam um universo de fantasia e imaginação que tem ampla aceitação entre os ouvintes, suprindo essa carência dos metaleiros que não abrem mão de uma sonoridade mais “pesada”. Além disso, todo o clima “religioso” que a banda evoca, com seus demônios e símbolos satânicos, não constitui propriamente um anti-cristianismo absoluto, se aproximando muito mais de uma forma de culto cristão herético, e que encontra bastante ressonância no modelo de cristianismo não ortodoxo que se cristalizou pelas Américas. É preciso compreender melhor o anti-cristianismo do Iron, que é sobretudo um protesto a partir do ponto de vista da história (Tanto Harris quanto Dickinson são formados em história, e a utilizam o tempo todo em suas composições). Nas canções do grupo, aqueles que verdadeiramente cultuam a Deus são punidos por uma igreja associada ao Poder, que é o nome próprio do Demônio. Nesse sentido, o mascote Eddie não se confunde com alguma força infernal. Ele está acima do Tinhoso, como se pode observar na capa do álbum de 1982. Talvez um anjo, ou a face oculta do próprio Deus, que aparece como figura angelical na mitologia cristã que promove mortes, genocídios e guerras em seu nome. Veja esse refrão, que poderia constar facilmente em algum hinário católico
O sinal da cruz \ o nome da Rosa \ um fogo no céu \ o sinal da cruz
Ou a canção Revelations (entre outras) toda ela profundamente marcada por um olhar cristão.
Escolho o álbum de 1985 por ser um registro vigoroso da melhor fase da banda, logo após a entrada de Dickinson. Um apanhado de grandes clássicos do metal e que influenciou muita gente.
REVELATIONS legendada:
PANTERA: OFFICIAL LIVE: 101 PROOF (1997)
Num certo sentido, talvez por conta de sua tragetória mais heterodoxa (os 4 primeiros álbuns do grupo nada tem a ver com a sonoridade conquistada pelo grupo já nos anos 1990, sendo um certo tipo de glan rock, um dos gêneros assumidamente menos másculos do metal), o Pantera é o grupo que se aproxima de certa tradição sabbaniana de uma maneira bem distintas dos grupos tratados até aqui. Esses uniam à temática dark e sombria uma agressividade própria ao hardcore, que se baseia na velocidade de power chords tocados na velocidade da luz, numa demonstração de força e agressividade. No caso do Pantera, o peso e a agressividade são conquistados ao modo Tommy Iommy, com uma sequência de notas secas fincadas ao chão, sem frescura, geralmente células curtas, de poucas notas, continuamente reiteradas.
Se uma das categorias centrais do metal é o poder, o Pantera não o exibe por meio da velocidade alucinante (embora saiba muito bem usar esse elemento como efeito de sentido, basta ouvir Suicide Notes II), tocando uma alucinante sucessão de notas. A categoria central aqui é a de PESO, como se cada sequência de acordes dos riffs poderosos fosse o equivalente dos urros do Phil Anselmo. Aliás, é interessante comparar os gritos de agonia humana do Tom Araya (vocalista do Slayer) com os que exaltam certa potência animalesca e libidinal primitiva do Pantera. As vezes a mesma nota é tocada, insistente e agressivamente. O peso de certas passagens das canções muitas vezes se dá pela diminuição do andamento, e não o contrário, como seria de se esperar. Outro efeito de sentido importante vem da distorção (sobretudo da voz e da guitarra) e mesmo os solos se organizam mais a partir de sequências de ruídos que pela profusão de notas. Talvez por esses fatores, o jogo que se estabelece entre o som e o silêncio, a contenção e a distensão seja fundamental na configuração do som da banda. Cabe aqui um exercício interessante: ouvir a canção War Nerve prestando atenção em apenas um elemento, seja a voz, a bateria ou a guitarra, reparando na quantidade de vezes que cada um deles alterna o sentido do que estava sendo proposto, e na relação de complementariedade que essas alterações estabelecem entre si.
Agora uma palavrinha sobre o “Fuck the world!” que caracteriza a canção. É sabido que sobre o Pantera também recaem acusações de facismo e conservadorismo, aparentemente confirmadas, que não raro acompanham essas manifestações de ódio não direcionadas. Ao ouvirmos alguém gritar a pleno pulmões “foda-se o mundo”, ou “que se foda essa porra toda”, é bem provável que por detrás desse aparente nilismo não objetivado esteja em ação mecanismos de direcionamento bem precisos. Daí que para alinhar esse ódio e ressentimento com modelos de explicação conservadores não é preciso muita coisa. O risco disso foi sentido na própria pele pelo grupo, da maneira mais terrível: seu ex-guitarrista foi morto em um show por um fã da banda, que matou mais quatro pessoas antes de ser morto por policiais. O que não tem nada a ver com o argumento conservador de que as canções do grupo incitam a violência (seria muito mais honesto, embora também impreciso, afirmar exatamente o contrário, que a violência do mundo incitam as canções). Se a relação fosse assim tão direta, porque diabos John Lennon foi morto?

COMENTÁRIO
A leitura do Pantera, em geral, tá boa. Mas tem uns erros e ela para no meio do caminho.

1) sim, alguns solos do Dimebag são ruídos, mas o que o distingue é uma musicalidade à "moda antiga". Capacidade de invenção de riffs tão assombrosa quanto a do Tommi Iommi; um senso melódico impressionante, viabilizado por uma técnica limpa, impecável (ex.: o solo de "Cemetery Gates" poderia ser tocado num trompete). Ele quase nunca despeja notas, porque ele consegue ser preciso na escolha e na execução.

2) Explorando tendências de bandas mais técnicas do Death Metal (Morbid Angel, Canibal Corpse), eles inauguram possibilidades "tecnológicas" e técnicas que depois vão irradiar pro gênero, ampliando a fronteira do peso (isso é importante, vc vai ver porque no item abaixo) - todas as bandas de "technical trash" de hoje dependem disso (Messhugah, Job for a cowboy, Lamb of God até certo ponto). Afinações mais baixas, amplificadores que não eram os transistorizados dos 80, mas sim potencialização dos valvulados dos anos 70; um modo mais variado de tocar bateria com dois bumbos; um tipo de entonação de vocal entre o melódico e o gutural seco médio - isso é o que faz o som deles, num equilíbrio muito próprio. Enfim, o Slayer precisava ser sujo para ser pesado. As bandas do thrash metal old school anteriores a eles (Death, Antrax, Napalm Death no começo) também. O Pantera não. Eles inauguraram a precisão nos estilos pesados porque não precisavam "fazer barulho".

3) O sentido da violência neles tem um corte mais específico. É um ato de afirmação do homem forte, inculto, rude, provinciano contra o cosmopolita, emasculado, enquadrado na moda, fã de pop, imerso na cultura das celebridades. Isso pressupõe a saturação da cultura dos anos 90 bem como a ressaca com relação aos anos 80 - o mesmo sentimento que fez brotar o grunge, que seguiu no sentido da depressão e da euforia esvaziados. Então, acho que o esforço de conjugar aumento de intensidade e simplificação, via Sabbath, é sinal da intenção deles de depurar, voltar ao simples, afirmar-se por cima das diluições. O sentido político disso talvez esteja implícito nos títulos dos dois últimos discos. E não coincide mesmo só com fascismo, pois não tem diretamente carga racial, só indiretamente, em função da história do sul dos EUA, a supremacia branca etc que, até onde vejo, não aparece nas letras ("Temporada sulina de caça às modas ", "Reinventando o aço").

É irônico que eles tenham conseguido revitalizar o metal cru do Sabbath sendo melhores tecnicamente. E segue no mesmo sentido que eles o tenham feito em virtude de um progresso tecnológico que também propiciava os megashows dos Backstreet Boys (ou seja, aquilo que eles odiavam). As letras explicam muito bem disso. São como que a pura reversão do complexo de não ser famoso, uma tomada de posição agressiva e ambivalente (porque a reversão se vira contra as vítimas) quanto ao modo como o showbusiness organiza a identidade de um homem que está fora dele, se constituindo pelos seus efeitos: "você cogita uma guerra de nervos/mas não pode atravessar o reino./ não pode ser o que seus ídolos são./você chora pra compensar/_ eu te peço, por favor, me dê cinco minutos sozinho" (5 minutes alone). Sempre fiquei me perguntando: isso quer dizer que ele bate no peito e diz que em 5 minutos ele arrebenta esse outro ameaçador? Ou ele está pedindo uma trégua desses sentimentos, 5 minutos pra respirar? Provavelmente as duas coisas.
Enfim, desse ponto de vista o fato de o Dimebag ter sido assassinado por um fã, durante um show, não é casual. É como se o assassino tivesse tomado literalmente a própria ideia que organizava a banda: se o Pantera existiu movido ao ódio à cultura espetacularizada, tomando a peito a brutalidade que lhe era destinada como um resto, o fã deles - que declarava ter se sentido traído com a debanda do grupo - tentou fazer a mesma coisa, só que na realidade. Quem tinha a cabeça no lugar, santificou a banda, ou esqueceu, ou reacomodou a coisa à vida real. Ele, que não tinha, partiu pra porrada, que, ao contrário da banda, ele não era capaz de sublimar. (O Arnaldo Jabor, que é tudo menos burro, sacou isso. E ignorando a diferença entre a mensagem da banda e o evento, leu o episódio desse jeito no Jornal Nacional do mesmo dia, provocando furor justo é lógico. As pessoas têm o que aprender com isso e com o que a banda foi). 
SYSTEM OF A DOWN – TOXICITY (2001)
A mudança brusca (questão temporal) ou radical (questão formal) de sentido gera dois efeitos dialeticamente complementares – ambos analisados por Freud. O primeiro é o estranhamento, responsável por efeitos de susto, tensão e horror, muito utilizado pelo metal que constrói suas canções por meio de uma série de alternâncias. O segundo é o humor, que poucas bandas de trash utilizam em suas composições. No geral, as bandas se levam a sério demais, procurando passar credibilidade aos temas violentos de que se ocupam, passando por cima do caráter artificial e caricato dos gestos que existe mesmo nos grupos mais sérios. Tudo, no metal, é pose e ostentação: a cara de mal, a revolta satanista, a demonstração de vigor másculo, o vocal que engrossa a voz para causar medo, como fazem os adolescentes, a forçada no agudo como demonstração de potência sem, no entanto, assumir de vez a feminilidade (como faz brilhantemente Robert Plant). Tudo no metal assume uma dimensão fake e, sobretudo, infantil. Uma grande brincadeira entre meninos, uma espécie de “clube do bolinha”, mesmo quando se trata dos temas mais violentos. Afinal, descrever com detalhamento sádico as formas de mutilação na guerra não é uma forma de evitar que “menininhas” sensíveis entrem no clube, da mesma forma que pegar em baratas e lagartixas?
O System of a Down se apropria da(s) linguagem(s) do metal quando o estilo já perdeu muito de seu teor de impacto, e os metaleiros são vistos, sobretudo, como cabeludos boa praça. E fazem essa aproximação por meio do principal gênero que em grande medida substituiu o rock como modo de expressão preferencial da juventude, o hip hop. O SOAD não é evidentemente um grupo de hip hop, e nem sei se é possível ou desejável classificá-los como nu-metal, mas a postura irônica com que eles lidam com a linguagem do metal parte de um ponto de vista do RAP, que mostra o caráter artificial do trash na medida em que se utilizam dela para construir canções de teor crítico. E ao assumir que o tempo do metal se foi, pelo menos até o momento, fazem um grande álbum de metal.
A meu ver, o traço mais importante do RAP apropriado pelo SOAD não tem somente a ver com os temas utilizados, ou a maneira de abordá-los. Tem que ver, antes, com a incorporação do elemento épico na construção das canções. A incorporação de diversos pontos de vistas que se alternam para compor o sentido não a partir de uma única perspectiva, mas por meio de diversos fragmentos que formam uma espécie de sistema fissurado - um traço próprio ao RAP. Isso torna possível que o metal seja abordado com distanciamento irônico, ao qual se sobrepõem outros, como o olhar estrangeiro (os integrantes do grupo são de origem Armênia), que fazem com que o SOAD seja um dos últimos grupos de metal interessantes.

A divertidíssima Chop Suey:
Como saideira, deixo um album que eu curto bastante, do mexicano Brujeria, um grupo que criou algumas das personagens mais interessantes do metal. Seus integrantes afirmam ser guerrilheiros mexicanos zapatistas e satanistas, procurados pela polícia internacional, que mantém fortes ligações com o tráfico. Sensacional.

COMENTÁRIO:
O deslocamento de sentido da violência no thrash que o Brujeria faz, e que fecha o texto, pressupõe o fio de sentido que você montou: o fim da era heroica do thrash, o desgaste completo do virtuosismo e da "delicadeza" do metal clássico, a encenação e a descontinuidade do rap, o engajamento do RATM, a identificação com o agressor do Slayer, o desejo de mobilização coletiva na expressão lírica do Metallica, a religiosidade invertida - satanismo - do Iron Maiden. O grupo produz uma espécie de oscilação entre realidade e ficção implicada no fato de filhos latinos emigrados se fantasiarem como braços de milícia. Aliás, um contraponto interessante nesse sentido é o Mars Volta, que recupera a psicodelia e escolhe a via do subjetivismo, do auto-centrado, da busca da identidade miscigenada "Francis, the muet"; usando fluxo de consciência, non-sense, associações livres surrealistas nas letras.


BRUJERIA – RAZA ODIADA (1995)

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

O QUE OS TRAPALHÕES TÊM A NOS ENSINAR SOBRE A ESTRUTURA DO RACISMO?









  












O quadro, representado pelos Trapalhões originais, capta de maneira magistral o modus operandi do racismo, e o lugar exato que nele ocupa o conceito de raça. O primeiro movimento de legitimação da desigualdade é a escolha de critérios equânimes e democráticos, de modo que todos tenha as mesmas oportunidades. Obviamente, a grande sacada aqui está na escolha do foco narrativo: mais importantes que os critérios em si é saber quem vai defini-los, o lugar a partir de onde essa igualdade irá se constituir. No caso, os malandros adotam critérios incontestavelmente neutros e imparciais, como idade e altura. Afinal, é perfeitamente possível e até mesmo desejável que se adote conceitos os mais democráticos e igualitários possíveis (idade, altura, concursos, eleições, vestibular) desde que sejam estabelecidos por quem irá obter com eles todas as vantagens. Além disso, tais critérios podem estar em mudança constante, desde que o dado concreto da desigualdade não se altere. A ordem dos fatores não altera o produto, e a verdade quase sempre pode funcionar muito bem como um instrumento ideológico a mais.

Desde o início Mussum expressa sua revoltis, e desvenda a estrutura básica daquele sistema opressor. Ele ocupa o clássico papel de crítico da ideologia, desvelando o real por detrás das aparências, o que, de todo modo, era evidente desde o início, constituindo a matriz do riso: “To desconfiadis que aqui tem racismo. Vocês tão com inveja desse coloridis aqui que eu tenho”. Por detrás de critérios aparentemente igualitários está em funcionamento um mecanismo de exclusão que legitima o status quo, no caso, a ordem de quem deve tomar banho primeiro e, sobretudo, de quem deve ficar por último, o verdadeiro ponto nodal da piada – é interessante notar que a disputa não é pelos primeiros lugares, e sim pra decidir quem vai ficar por último, o que localiza melhor a gag em um contexto de precariedade periférica onde ninguém está, a rigor, por cima da carne seca, mas todos lutam até o fim pela conquista de pequenas satisfações cotidianas. Se não fosse um quadro de humor, e sim uma aula ou texto teórico, provavelmente a investigação iria terminar nesse ponto, satisfeita consigo mesmo por haver desvendado o mecanismo ideológico subjacente. Entretanto, a turma garante que não existe racismo algum, e que o Mussum está viajando porque ali todos são iguais. Para provar, não existe mais esse negócio de cor: a partir dali, todo mundo será considerado azul. Só que, obviamente, a sociedade democrática exige o estabelecimento de critérios de classificação: a melhor solução está em deixar o azul claro na frente e o azul escuro por último... Não é uma representação genial do modo de funcionamento da sociedade moderna, em que a lei do mais forte é recalcada por meio de complexos mecanismos civilizados que tornam possível, enfim, a restituição da lei do mais forte?

É claro que o efeito de humor está em grande medida na dissimulação. Eu nada mudo de fato: apenas substituo o significante branco por azul claro, e negro por azul escuro - como os rituais religiosos afros que escolhiam santos católicos para representar suas entidades, como modo de escapar à repressão. Mas será que nessa “mera” mudança de significante já não se desvela algo da própria natureza do racismo? Essa possibilidade de transmutação e subversão dos termos não é em si reveladora de que seu fundamento não é a idéia de raça, ou cor, e sim sua própria realidade enquanto instrumento de opressão? A principal lição que a piada nos transmite é que o racismo segue existindo independentemente de quais sejam os critérios usados para sua legitimação. De certo modo ele está para além de conceitos legitimadores como “raça” e “supremacia”, na exata medida em que direciona os significantes conforme seus interesses e de acordo com cada momento. Ou seja, o racismo pode funcionar perfeitamente bem tanto a partir do conceito de supremacia ariana quanto com o de mestiçagem (ou o de diferentes tonalidades multiculturais de azul) desde que, em todas as fases da opressão, seja o negão que continue tomando banho por último. Mesmo quando a idéia de raça negra é radicalmente abolida do campo discursivo (agora todo mundo é azul, cambada), a situação concreta de opressão continua em operação. O que torna Mussum negão não é o fato dele ser negro, e sim sua posição como último da fila. Entretanto, a interpelação subjetiva é intransferível: só o negão ocupa o último lugar na fila, como no conto Diante da Lei, de Kafka. Isso significa muito mais do que dizer simplesmente que os três estavam fingindo todo o tempo, e que na verdade seguiam acreditando em diferenças raciais pra poder ferrar o negão (ainda que parte da graça da piada esteja nisso). Na verdade, podemos ir um pouco além, e afirmar que independente de quais os conceitos mobilizados, passando ou não por questões de diferença racial, a prática efetiva se sustenta a partir de um princípio de exclusão determinado. Raça no caso é um dos significantes mobilizados pelo racismo enquanto aparelho ideológico (mecanismo de exclusão), mas não é o único a que se refere e, sobretudo, não é insubstituível. Em suma, pode existir racismo mesmo onde não está presente o conceito de raça, porque a verdade desse conceito é “meramente” simbólico e não diz respeito à materialidade empírica, e sim à rede de significados que emanam desse significante.

O dilema, entretanto, é que a luta contra o racismo nunca pode se direcionar contra a Coisa em Si, fora desse sistema de falsos “significantes”, porque não existe realidade que não seja já um sistema simbólico – o Real só se dá na fissura do simbólico (Lacan), sendo ao mesmo tempo a coisa a que não temos acesso e o obstáculo que evita que a alcancemos. Não se trava a luta contra o racismo fora dessa luta pelo significante, que é “falso” em si, ou seja, possui um núcleo negativo irredutível que o constitui. Por isso, a redundância de afirmar que o conceito de raça não existe, enquanto estratégia de combate ao racismo. Essa ausência é justamente o ponto de partida do racismo. Isso porque o conceito “raça” não está nomeando sujeitos empíricos com características cientificamente comprovadas, e sim uma dada situação específica em que sujeitos de “pele escura” estão sendo exterminados. Usando uma distinção semiótica, digamos que o conceito não é da ordem do ser (ser negro), mas da ordem do fazer (tornar-se negro). Não se trata de determinar se a pele de quem foi morto é escura de fato, pois isso seria inverter os termos da questão. Por paradoxal que possa parecer, a questão é que tais sujeitos não foram ou poderiam ser exterminados porque são negros (ninguém é negro ou branco de fato), mas eles se tornam negros porque foram, ou podem ser, exterminados. A raça surge com o racismo, é o racismo que cria a raça como fundamento, e não o contrário. Portanto, denunciar a falsidade do fundamento não é suficiente para dissolver sua estrutura, que se alimenta dessa falsidade. Podemos dizer, com Althusser, que é o Aparelho Ideológico Racista que interpela esses indivíduos enquanto negros - é o racismo que cria e dá forma ao conceito de raça – assim como pode substituí-lo por outros significantes que lhe forem convenientes, como azul, verde, sem pescoço, nariz chato, umbigo saltado... Tomemos como exemplo o caso do policial negro, casado com uma mulher negra e com filhos negros, para quem o tipo suspeito padrão é o jovem negro. É justamente por não ter nada a ver com a “realidade” empírica que o racismo pode funcionar tão bem: longe de demonstrar fragilidade, essa é sua maior força. Eu parto da estrutura simbólica racista e a partir daí confirmo na “realidade” os seus pressupostos.

O nó do problema é que o racismo só é palpável para o sujeito no interior desses significantes, desse sistema simbólico que estrutura o que denominamos realidade. Por isso a coerência do movimento negro em sustentar sua luta a partir do conceito de raça, apesar de sua óbvia “falsidade”, ou seja, sua não correspondência com a realidade empírica naquilo que pretende “descrever”. Tal conceito, na mão dos movimentos anti-racistas, não se propõe a uma classificação e distinção dos indivíduos a partir de características historicamente arbitrárias: ele se refere, sobretudo, à própria realidade desse sistema classificatório, e a seu núcleo negativo irredutível. É a nomeação da própria fantasmagoria que sustenta a ficção racista. Como já dissemos, a verdadeira transformação não passa apenas pela revelação da condição de ficção dos critérios raciais – o racismo não só sabe disso como se sustenta a partir desse pecado original - mas pela afirmação e subversão da “verdade” desse núcleo fantasmagórico.

Por isso é insuficiente o gesto do Mussum em mostrar que ali está em jogo um modelo de sociabilidade que se sustenta a partir de uma distinção racial arbitrária (Racismis!), o que abre espaço para que seja instituída outra variação narrativa qualquer (é tudo azul!). Seria mais eficiente se ele comprasse a ficção e a radicalizasse, afirmando que o único “verdadeiramente” azul ali era ele, e como tal, teria mais direito ao banho que os outros, passando na frente dos companheiros. O que a princípio parece um gesto racista é uma resignificação dos termos a partir de onde pode ocorrer a re-distribuição dos papéis sociais.

Eis o passo além daqueles que pretendem combater as desigualdades raciais afirmando a existência de uma raça negra que é linda, forte, e vai à luta. No geral, outros grupos engajados na mesma luta ou deslocam o campo discursivo afirmando que existe uma opressão mais fundamental (geralmente a luta de classes), perdendo de vista a dimensão propriamente racial do problema (o que não significa em absoluto negar a existência dessa dimensão de classe, e sim questionar sua exclusividade estrutural), ou negam a funcionalidade do conceito, afirmando que raças não existem, ou que existem, mas de tal forma misturadas que é impossível defini-las. Ou ainda apostam na mera substituição do conceito de raça pelo de cultura (Mas é justamente por ser um conceito bem mais maleável que a noção de cultura não serve tão bem quando se trata de travar um conflito ideológico. De fato, existe uma defasagem entre as noções de raça e de cultura - no limite, duas ficções - ao ponto de ser plenamente possível e bastante comum que uma sociedade aceite e conviva bem com uma cultura enquanto relega os membros de sua comunidade à condição de miséria). Cultura se refere à outra coisa. A radicalidade do conceito de raça nesse caso consiste em pensar em termos opostos aos da inclusão multicultural: não a positividade de valores genuinamente negros, mas o núcleo negativo desses valores, os não-sujeitos que os constituem. Ao afirmar certa identidade racial, os movimentos anti-racistas não estão de modo algum sustentando uma postura racialista que acredita de fato na existência de tais diferenças. Trata-se, antes, de “fingir” acreditar nessa diferenciação como único modo de se atingir o núcleo negativo da simbolização, para assim, subverte-lo. A luta não deve ser por uma concepção racial do mundo enquanto ponto de chegada, mas deve se passar em seu interior, pois a única maneira de negação desse conceito é assumir sua efetividade.

A ideologia não se comporta como um “eles não sabem, por isso fazem”, mas antes como um “eles sabem, e o fazem mesmo assim” (Zizek). Paradoxalmente, portanto, as críticas à falsidade da raça podem funcionar como complementos ideológicos mais eficazes do que a aposta na diferença racial (o conceito de democracia racial brasileira é um ótimo exemplo): “raças não existem, logo, não devemos defender os direitos específicos dos negros, e sim lutar pela ampliação do alcance dos direitos humanos, etc...”. Enquanto isso, o negão fica por último na fila. Ao contrário, os movimentos de afirmação de identidade sustentam que para lutar contra o racismo é preciso partir do conceito de raça – cujo sentido último é ser um mecanismo específico de opressão do Outro – enquanto nomeação de um sistema concreto de opressão que não existe fora desse sistema de nomeação, embora possa ser nomeado de infinitas formas. Só a partir daí (eis a aposta) será possível inaugurar outro campo discursivo, que por fim irá fazer com que todo mecanismo se dissolva. Daí a funcionalidade de subverter os conceitos raciais, de modo que, ao invés de funcionar como mecanismo de opressão, opere enquanto critério de inclusão dos negros nas universidades e cargos de prestígio, por exemplo. Trata-se de uma luta para transformar os parâmetros da ficção atual, suas condições atuais de produção de sentido, até o ponto em que surja um gênero social radicalmente diferente. Até aqui, essa tem sido a maneira mais coerente de lidar com a situação paradoxal do negro enquanto o Outro que não existe e que é, ao mesmo tempo, marginalizado: dada uma situação em que a inexistência do negro é a condição de sua opressão, a tarefa urgente é fazer com que esse Outro ganhe vida. Somente com a invenção efetiva do negro é que estarão dadas as condições para que todas as raças desapareçam.

Cacildis!
07\2012

sábado, 26 de maio de 2012

O novo velho canto de Gal Costa – conversas sobre Recanto (2011)


Publico aqui uma crítica excelente feita por um amigo (o mesmo que escreveu o artigo sobre a propaganda do Renault Clio, um dos sucessos do blog e que você pode conferir clicando aqui) ao último trabalho de Gal Costa, o albúm Recanto (2011) que conta com a produção de Caetano Veloso, que assina todas as composições. Na sequência, publico também os comentários que eu fiz sobre o seu texto, falando de minhas impressões sobre o disco. Achei esse formato fragmentário mais interessante do que produzir um texto mais orgânico, para manter a tensão nas opiniões (eu, por exemplo, vejo o tropicalismo e a cultura de massas com muito mais simpatia do que ele), e por preguiça, evidentemente.

O RECANTO
"Recanto" do Caetano, cantado pela Gal, aparelhado pela nova geração carioca. Diante do inesperado acordo entre otimismo e pessimismo, triunfante aqui desde 2003 (esse, um produto do que as duas oposições aos Golpe Militar construiram no país), o disco toca o tempo, por voltar-se para o exemplar no caminho dos dois artistas, em clima meio de fim de linha, meio de renovação. Postiços e verdadeiros, a velhice é o momento do balanço típico da madureza. A juventude, no entanto, com sua têmpera frugal e sonhadora, formando a liga entre as duas pontas, força caminho. E às vezes contribui para a disposição de compreender, às vezes arrebata tudo, com pretensão, reatualizado os limites do passado.

O resultado é cativante desde o começo, depois, vai aparecendo em suas qualidades e defeitos. No geral, predomina uma impressão nada semelhante às que se tem com os outros discos do Caetano de 80 para cá. Mas que, além de constituir a marca de seu projeto Cê, lembra muito a década de 70 dos Tropicalistas: um clima de desistência vitoriosa, um paradoxal movimento de constatação dos próprios limites, abertura para a nova realidade, caracterizado, porém, por iluminação e cegueira em igual medida. Um querer regojizar-se com que não se compreende bem, porque é novo; mas, ao mesmo tempo, um estar quites com o passado e o presente, de onde se espera tirar vontade, insinuando-se nessa báscula ora superioridade, ora espírito democrático; ora pendor memorialista, ora olho firme na "cara do mundo", ora transcendência vazia com "sexo e dinheiro". Ponto alto desta fase do Caetano - feito de muitos acertos - na qual, para ver no que foram dar os corações de "Muito" (e o julgamento, mesmo ambíguo, não é favorável), ele está revisitando, com rock, com o videogame sonoro do Kassin e com sua antiga pegada experimental (de "Joia", mais que de "Araçá Azul") o segundo tempo do projeto Tropicalista.

Nisso, o ouvinte se surpreende com o quanto um olhar historicamente carregado pode iluminar o presente.

Por exemplo, na canção de abertura "Recanto Escuro", fixando a perspectiva da terceira idade - e dos tempos em parte sombrios - justamente ao aludir ao caminho da mata virgem para a cidade, "preso ao dinheiro", com o "azul do outro lado do muro". Em "Autotune autoerótico", reflexão sobre o fetiche (sexual, técnico, mercadológico, musical), marcada pela ponderação lúcida sobre o que distingue (e não distingue) o canto autorizado, supostamente belo e carnal, da mania técnica democratizada (iniciada, talvez, com o jazz vindo dos EUA, de que João Gilberto, Jovem Guarda e Caetano são parte). Na house music "Neguinho", cuja inconfundível batida remonta à era FHC, e vem descobrir as raízes do presente, para o qual o filminho arteplex e a violência bruta bastam, desde que com algum ganho autoerótico (mesmo que no final, "neguinho que eu digo seja nós"). Tudo resultando na toada extremamente aguda "Segunda", comparável aos grandes poemas de Chico Alvim, em que as dissonâncias racistas, incontornáveis no presente, são expostas com toda força (o Eu, com algo de português e suas prerrogativas traídas, é quem arrasta os tamancos no dia de branco, já o chefe é meio mulato).

A súmula da qualidade do disco talvez seja "Miami Maculelê", que fundindo funk e maculelê, no mesmo movimento, legitima o gênero estigmatizado, pela ligação com a cultura negra, dos escravos, e sublinha o trânsito entre sensualidade e violência de ambos os gêneros (maculelê é uma dança marcial). Canção que, além disso, retoma a linhagem arcaico-moderno querida ao Cinema Novo (a do bandido comunitário), mas de modo afinado ao presente: ou seja, quando o malandro de verdade não é aquele que dança com o novo acordo de regra e subversão, mas aquele que dança com o novo acordo de regra e subversão. Sem contar a referência ao São Dimas, cantado pelos Racionais Mc em Vida Loka, onde o grupo, tentando encontrar um compromisso entre sua terceira e segunda fase, afirma a ambiguamente a disposição de sobreviver acima do vínculo comunitário (pois assim é o paradoxal horizonte imposto ao pais, junto às recentes melhorias - desagregador e, no entanto, progressista).

Como não poderia deixar de ser, no entanto, também sobram ilusões, mistificações e bobeiras gratuitas no disco, ficando indicado, assim, no todo, o que havia de velho e ineficiente antes e aqui permaneceu. Tome-se por exemplo o filosofê "Sexo e dinheiro", no qual, ao contrário do que o Eu-lírico assegura, o par arrebanhador, representado pelos cães de igreja, não está tão distante. O fecho de "Recanto escuro", em que mesmo a disposição de olhar o decurso histórico sem ilusões redunda em afirmação acrítica, autocomplacente, do próprio canto (como em "Força Estranha"), sem que desta vez a melodia referende o ascenso. "Cara do mundo", que, reciclando o prazer infantil da flanerie, em 22 e no modernismo europeu subversivo, - modelo inadequado para se tratar a barafunda atual, pois auspicioso - se perde em contrastes fracos de doce e amargo, bem como em caetanices tais quais "dor de tanto prazer". E por fim, certamente, a linda canção de Wisnik, central no disco, "Madre Deus", cuja letra transforma a difícil compreensão do momento e o lusco-fusco da velhice, predominantes no disco, em caos repousante, pacificado, transcendente em si mesmo ("frente às estrelas/costas para o planeta", "sou uma seta sem direção").

Em suma, num disco tão excepcional como este, as estrelas, vistas do ancoradouro, brilham e requerem um peso negado pelo assunto. Coisa que se deduz, não só da audição do disco, mas também da ponderação de seu resultado com o panorama atual da música popular. Aliás, em poucos momentos isso ficou tão claro, quanto no último episódio do TV Folha. Quem viu, viu. A Gal comentando o disco, louvando e alinhando-se mais uma vez com João Gilberto, detalhando o projeto do parceiro, gabando-se de seus agudos. E, desta vez, tentando ficar à vontade diante da câmera, exposta como estava ao impiedoso close sobre suas rugas (que, de passagem, assegurava a parcial leitura intimista do disco). Enfim, uma posição difícil de sustentar e no entanto sustentada, que não faz jus à parte boa do disco, mas indica muito bem a ruim. Especialmente tendo em conta que, no bloco anterior, o assunto foi o show que o Racionais MCs fez na ocupação Mauá em SP, com destaque para "Marighella".
OS COMENTÁRIOS
Puta disco neh? Estranho, sombrio, reflexivo. Eu concordo com você que é bem Caetano, porque continua algumas reflexões dele desde o Ce, sobre a velhice, sobre a negritude. Mas é Caetano comentando a Gal, e daí toda a reflexão sobre a voz, sobre o cantar.
Também acho que é um disco com altos e baixos. Acho o filosofê de "Sexo e dinheiro" horroroso, superficial mesmo, cantada burocraticamente. Ao mesmo tempo, as últimas faixas são fantásticas. Gosto da do Wisnik (Madre Deus) porque, apesar de todo deslumbramento da letra e da melodia,  acho que o arranjo dá uma boa balanceada (aquele breque do meio é incrível). Mas o minimalismo sombrio de Recanto Escuro, com aquele baixo que vai se perdendo na marcação, é melhor e vai mais longe, mesmo com a redenção final pelo cantar - e pelo violão, que entra só no finalzinho também. Mansidão é ainda o deslumbramento Bossa Nova mais tradicional, que se encanta com o potencial da voz e da melodia só que de maneira mais contida. Aliás, vc lembrou bem a relação com o experimentalismo pós tropicalismo: esse tipo de arranjo que vai traçando comentários à canção é muito bem realizado, e ainda soa "experimental" mesmo hoje em dia. No geral, penso que os arranjos vão tensionando a crença no canto, no poder da melodia (melodias que, no geral, são bem mpb tradicional, daí a impressão que deu para alguns que o disco não vai tão longe na experimentação. É certo que ele não vai, mas é certo também que o que se discute no disco é justamente o significado da experimentação), refletindo sobre ele.
Mas, no geral, tendo a concordar com você: depois de todos os tensionamentos e “radicalismos” o que resta é ainda a afirmação do poder do canto, ainda que de uma nova forma de cantar, um Recanto, espaço que comporta a dor e o prazer. Renovação que não vai ao fundo, e que tende a reafirmar mais que modificar, apesar dos bons momentos, que são em maior número que a média MPB atual.

Outra coisa interessante é que Caetano continua dando alfinetadas na concepção de mundo do RAP, que ele julga equivocada para o Brasil por ser racialista e importada dos EUA (como se lá ela não fosse tão "falsa" como aqui, apesar de ser falsidade de outro tipo). Esse diálogo tem sido explícito nos últimos tempos, e ficou bem claro no último disco de Caetano, com a canção "O homem". Aqui, em "Segunda" ele volta ao tema (e também na última faixa, indicando a centralidade do tema em sua produção), ao mostrar um patrão negro que tem um empregado branco, a quem é dada a voz. Caetano desloca o debate da questão racial para o social, da cisão entre pobres que consomem e que não consomem. Nem uma palavra sobre o exemplo que ele escolhe (padrão negro) ser um caso de exceção no país, e não modelo a partir de onde se pensar a totalidade de nossas relações complexas. Pra mim, ele não precisaria deslocar o foco para mostrar que o segundo aspecto é também interessante (os que consomem e os que não consomem).
Já Miami Maculelê é foda mesmo, desde o título que junta o Miami bass, origem do funk carioca, com o maculelê, que hoje em dia é bem difundido em rodas de capoeira. Uma mistura fudida de bem feita. Mas de novo eu penso que tem provocação (afinal, o que o Caetano faz de melhor, criar um modelo de argumentação que te obriga a tomar posição, e faz a gente ficar discutindo que nem besta), porque ele escolhe o funk e não o rap como lugar de afirmação de identidade e resistência, ligando o Racionais (via Dimas) e o Jorge Ben numa linhagem de resistência festiva que não é exatamente a do Racionais.

Para escapar fedendo, clique aqui: GAL COSTA - RECANTO (2011)

terça-feira, 22 de maio de 2012

Não é sobre você que devemos falar, por Ana Maria Gonçalves


O melhor texto que li sobre o caso Monteiro Lobato, com argumentos muito bons a favor da nota esclarecedora. De fato, sempre que alguém tenta colocar limites a certas posturas que claramente  são contrárias à dignidade humana, surge alguém dizendo que é uma afronta a liberdade de expressão, e que se está propondo um retorno aos tempos da censura ditatorial. Mas uma coisa é a arte que representa situações de racismo para dar conta de uma estrutura social contra a qual ela se coloca, e outra é a que faz essa representação para ratificar seu conteúdo. Se é valido denunciar o Datena, porque não é valido denunciar o Monteiro Lobato, eugenista declarado e que escreveu O presidente negro, em que os brancos americanos se unem para acabar com a população negra por meio de uma proposta genial de introduzir uma substância que causa esterilidade nos produtos de alisar cabelo? Qual o problema de falar que Gregório de Mattos tem versos com conteúdo racista? Isso diminui sua genialidade - aliás, isso não é uma questão urgente para a crítica literária, identificar o peso dos vários momentos em suas obras clássicas? E se não diminui, não é um problema a ser discutido, um critério de valor que tolera o racismo (não como mera representação de uma situação social, mas como uma recomendação ética) não pode ser problematizado? Porque a literatura é inquestionável, ela é sempre um bem por si só? É um problema identificar o racismo não problematizado nessas obras ou é um problema para a literatura ser capaz de produzir grandes obras com conteúdos racistas, sexistas e homofóbicos? É claro que isso está no mundo, mas no mundo as pessoas deveriam ir presas por isso. E na literatura, devem passar em branco?
O mais importante, contudo, é que o livro de Lobato é usado nas escolas, e a lei é clara: "De acordo com a Coordenação Geral de Material Didático do MEC, a avaliação das obras que compõem o Programa Nacional Biblioteca da Escola são feitas por especialistas de acordo com os seguintes critérios: "(...) a qualidade textual, a adequação temática, a ausência de preconceitos, estereótipos ou doutrinações, a qualidade gráfica e o potencial de leitura considerando o público-alvo". 
Ora, se a obra contém aspectos preconceituosos, não cabe esclarecer aquele leitor em formação? As adaptações de Monteiro Lobato para a TV já fazem esse trabalho de "censura". Seria o caso de cobrar maior fidelidade ao texto?

Não é sobre você que devemos falar, por Ana Maria Gonçalves



Monteiro Lobato: um homem com um projeto para além do seu tempo - Caçadas de Pedrinho, publicado em 1933, teve origem em A caçada da onça, de 1924. Portanto, poucas décadas após a abolição da escravatura, que aconteceu sem que houvesse qualquer ação que reabilitasse a figura do negro, que durante séculos havia sido rebaixada para se justificasse moralmente a escravidão, e sem um processo que incorporasse os novos libertos ao tecido da sociedade brasileira. Os ex-escravos continuaram relegados à condição de cidadãos de segunda classe e o preconceito era aceito com total normalidade. Eles representavam o cisco incômodo grudado à retina, o "corpo imperfeito" dentro de uma sociedade que, a todo custo, buscava maneiras de encobri-lo, desbotá-lo ou eliminá-lo, contando com a colaboração de médicos, políticos, religiosos e outros homens influentes daquela ápoca. Um desses homens foi o médico Renato Kehl, propagador no Brasil das idéias do sociólogo e psicólogo francês Gustave Le Bon, que defendia a "superioridade racial e correlacionava as raças humanas com as espécies animais, baseando-se em critérios anatômicos como a cor da pele e o formato do crânio", segundo o livro Raça Pura, - Uma história da eugenia no Brasil e no mundo, de Pietra Diwan para a Editora Contexto. Renato Kehl reuniu ao seu redor uma ampla rede de intelectuais, com quem trocava correspondência e ideias constantemente, todos adeptos, defensores e propagadores da eugenia, assim definida por ele em 1917: "É a ciência da boa geração. Ela não visa, como parecerá a muitos, unicamente proteger a humanidade do cogumelar de gentes feias".
Em 1918 foi fundada a Sociedade Eugênica de São Paulo - SESP, contando com cerca de 140 associados, entre médicos e membros de diversos setores da sociedade que estavam dispostos a "discutir a nacionalidade a partir de questões biológicas e sociais", tendo em sua diretoria figuras importantes como Arnaldo Vieira de Carvalho, Olegário de Moura, Renato Kehl, T. H. de Alvarenga, Xavier da Silveira, Arhur Neiva, Franco da Rocha e Rubião Meira. A sociedade, suas reuniões e ideias eram amplamente divulgadas e festejadas pela imprensa, e seus membros publicavam em jornais de grande circulação como Jornal do Commercio, Correio Paulistano e O Estado de São Paulo. Lobato, como um homem de seu tempo, não ficaria imune ao movimento, e em abril de 1918 escreve a Renato Kehl: "Confesso-me envergonhado por só agora travar conhecimento com um espírito tão brilhante quanto o seu, voltado para tão nobres ideais e servido, na expressão do pensamento, por um estilo verdadeiramente "eugênico", pela clareza, equilíbrio e rigor vernacular." Era o início de uma grande amizade e de uma correspondência ininterrupta até pelo menos 1946, dois anos antes da morte de Monteiro Lobato. Os eugenistas agiam em várias frentes, como a questão sanitária/higienista, que Lobato trata em Urupês, livro de contos onde nasce o famoso personagem Jeca Tatu, ou a racial, sobre a qual me aterei tomando como ponto de partida outro trecho de uma das cartas de Monteiro Lobato a Renato Kehl: "Renato, Tú és o pai da eugenia no Brasil e a ti devia eu dedicar meu Choque, grito de guerra pró-eugenia. Vejo que errei não te pondo lá no frontispício, mas perdoai a este estropeado amigo. [...] Precisamos lançar, vulgarizar estas idéias. A humanidade pecisa de uma coisa só: póda. É como a vinha. Lobato."
O livro mencionado é O Choque das raças ou o presidente negro, de 1926, que Lobato escreveu pensando em sua publicação nos Estados Unidos, para onde ele se mudou para ocupar o cargo de adido cultural no consulado brasileiro de Nova York. Em carta ao amigo Godofredo Rangel, Lobato comenta: "Um romance americano, isto é, editável nos Estados Unidos(...). Meio à Wells, com visão do futuro. O clou será o choque da raça negra com a branca, quando a primeira, cujo índice de proliferação é maior, alcançar a raça branca e batê-la nas urnas, elegendo um presidente negro! Acontecem coisas tremendas, mas vence por fim a inteligência do branco. Consegue por meio de raios N. inventados pelo professor Brown, esterilizar os negros sem que estes se dêem pela coisa".Resumindo bastante, as coisas tremendas são: em 2.228, três partidos concorrem às eleições presidenciais americanas. O partido dos homens brancos, que pretende reeleger o presidente Kerlog, o partido das mulheres, que concorre com a feminista Evelyn Astor, e o partido dos negros, representado por Jim Roy. Com a divisão dos brancos entre homens e mulheres, os negros se tornam maioria e Jim Roy é eleito. Não se conformando com a derrota, homens e mulheres brancos se unem e usam "a inteligência" para eliminar a raça negra, através de uma substância esterilizante colocada em um produto para alisamento de cabelos crespos.
A composição dos partidos políticos parece ter sido inspirada por um dos livros preferidos de Lobato, que sempre o recomendava aos amigos, o L’Homme et les Sociètes (1881) de Gustave Le Bon. Nesse livro, Le Bon diz que os seres humanos foram criados de maneira desigual, condena a miscigenação como fator de degradação racial e afirma que as mulheres, de qualquer raça, são inferiores até mesmo aos homens de raças inferiores. Lobato acreditava que tinha encontrado a fórmula para ficar milionário, como diz em 1926: "Minhas esperanças estão todas na América. Mas o 'Choque' só em fins de janeiro estará traduzido para o inglês, de modo que só lá pelo segundo semestre verei dólares. Mas os verei e à beça, já não resta a menor dúvida". Com o sucesso do livro, ele esperava também difundir no Brasil a ideia da segregação racial, nos moldes americanos, mas logo teve suas esperanças frustradas, como confidência ao amigo Godofredo Rangel: "Meu romance não encontra editor. [...]. Acham-no ofensivo à dignidade americana, visto admitir que depois de tanto séculos de progresso moral possa este povo, coletivamente, cometer a sangue frio o belo crime que sugeri. Errei vindo cá tão verde. Devia ter vindo no tempo em que eles linchavam os negros." Deve ter sido uma grande decepção para Lobato e seus projetos grandiosos, visto que, em carta de 1930, também a Godofredo Rangel, ele admite fazer uso da literatura para se dizer o que não pode ser dito às claras: "é um processo indireto de fazer eugenia, e os processos indiretos, no Brasil, 'work' muito mais eficientemente".
Achei importante contextualizar esse livro porque acredito que todos que estão me lendo são adultos, alfabetizados, com um certo nível cultural e, portanto, público alvo desse romance adulto de Monteiro Lobato. Sendo assim, peço que me respondam com sinceridade: quantos de vocês teriam sido capazes de, sem qualquer auxílio, sem qualquer contextualização, realmente entender o que há por trás de O Choque das raças ou o presidente negro? Digo isso porque me lembro que, na época das eleições americanas, estávamos quase todos (sim, eu também, antes de ler o livro) louvando a genialidade do visionário e moderno Monteiro Lobato em prever que os Estados Unidos, um dia, elegeriam um presidente negro, que tinha concorrido primeiro com uma mulher branca e depois com um homem branco. Mas há também o que está por detrás das palavras, das intenções, e achei importante contextualizá-las, mesmo sendo nós adultos, educados, socialmente privilegiados.
O lugar do outro - Peço agora que você faça um exercício: imagine uma criança na sala de aula das escolas públicas de ensino médio e fundamental no Brasil. Negra. Sei que não deve ser fácil colocar-se sob a pele de uma criança negra, por isso penso em alternativas. Tente se colocar sob a pele de uma criança judia numa sala de aula na Alemanha dos anos 30 e ouça, por exemplo, comentários preconceituosos em relação aos judeus: "............ ...........", "............ .............. ...... .. ....". Ou então, ponha-se no lugar de uma criança com necessidades especiais e ouça comentários alusivos ao seu "defeito": "............. ............", "................. ..............". Talvez agora você já consiga sentir na pele o que significa ser essa criança negra e perceber a carga histórica dessas palavras sendo arrastada desde séculos passados: "macaca de carvão", "carne preta" ou "urubu fedorento", tudo lá, em Caçadas de Pedrinho, onde "negra" também é vocativo. Sim, sei que "não se fala mais assim", que "os tempos eram outros". Mas sim, também sei que as palavras andam cheias de significados, impregnadas das maldades que já cometeram, como lâminas que conservam o corte por estarem sempre ali, arrancando casca sobre casca de uma ferida que nunca acaba de cicatrizar. Fique um pouco de tempo lá, no lugar dessa criança, e tente entender como ela se sente. Herdeira dessa ferida da qual ela vai ter que aprender a tomar conta e passar adiante, como antes tinham feito seus pais, avós, bisavós e tataravós, de quem ela também herdou os lábios grossos, o cabelo crespo, o nariz achatado, a pele escura. Dói há séculos essa ferida:
luis-gama.jpg
"Em nós, até a cor é um defeito. Um imperdoável mal de nascença, o estigma de um crime." 
Luiz Gama
Volte agora para o seu lugar e se ouça falando coisas do tipo: "Eu li Monteiro Lobato na infância e não me tornei racista", ou "Eu nunca me identifiquei com o que a Emília disse", ou "Eu não acho que chamar alguém de macaco seja racista", ou "Eu acho que não tem nada de ofensivo", ou "Eu me recuso a ver Lobato como racista", ou "Eu acho um absurdo que façam isso com um autor cuja leitura me deu tanto prazer". Se você não é parte do problema, nem como negro nem como racista, por que se colocar no centro da discussão? Você também já não é mais criança, e talvez seja a hora de entender que nem todas as verdades giram em torno do seu ponto de vista. Quando criança, talvez você tenha crescido ouvindo ou lendo expressões assim, sempre achando que não ofendiam, que eram de brincadeira e, portanto, agora, ache que não há importância alguma que continuem sendo ditas em livros dados na escola. Talvez você pense que nunca tenham te afetado. Mas acredito que, se você continuar não conseguindo se colocar sob a pele de uma criança negra e pelo menos resvalar a dor e a solidão que é enfrentar, todos os dias, o peso dos significados, ouso arriscar que você pode estar enganado. Elas podem ter tirado de você a sensibilidade para se solidarizar com esse grave problema alheio: o racismo. Sim, porque tenho a sensação de que racismo sempre foi tratado como problema alheio - é o outro quem sofre e é o outro quem dissemina -, mesmo sua erradicação sendo discutida no mundo inteiro como direitos humanos. Direitos de todos nós. Humanos. Direito de sermos tratados com dignidade e respeito. E é sobre isso que devemos falar. Não sobre você.
Esse é um assunto sério, para ser discutido por profissionais que estejam familiarizados com racismo, educação infantil e capacitação de professores, e que inclusive podem contar com o respaldo do Estatuto da Criança e do Adolescente, instituído em 1990 pela Lei 8.069. Destaco dois artigos do Capítulo II - Do Direito à Liberdade, ao Respeito e à Dignidade:
Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis.
Art. 18. É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor.

Combate ao racismo no Brasil
‘Só porque eu sou preta elas falam que não tomo banho. Ficam me xingando de preta cor de carvão. Ela me xingou de preta fedida. Eu contei à professora e ela não fez nada''
[Por que não querem brincar com ela]‘‘Porque sou preta. A gente estava brincando de mamãe. A Catarina branca falou: eu não vou ser tia dela (da própria criança que está narrando). A Camila, que é branca, não tem nojo de mim''. A pesquisadora pergunta: ‘‘E as outras crianças têm nojo de você?'' Responde a garota: ‘‘Têm''. 
Depoimento de crianças de 6 anos no livro "Do Silêncio do Lar ao Silêncio Escolar: racismo, discriminação e preconceito na educação infantil", de Eliane Cavalleiro - Editora Contexto
Colocando-se no centro da discussão, como se a "censura" não existente ao livro de Lobato as ofendesse pessoalmente, e como se fosse só isso que importasse nessa discussão, tenho visto várias pessoas fazendo os comentários mais absurdos, inclusive interpretando e manipulando outros textos ficcionais de Lobato para provar que ele não era racista, ou que era apenas um homem do seu tempo. Algo muito importante que não devemos nos esquecer é que nós também somos homens e mulheres do nosso tempo, e que a todo momento estamos decidindo o que a História escreverá sobre nós. Tenho visto também levarem a discussão para o cenário político, no rastro de um processo eleitoral que fez aflorar medos e sentimentos antes restritos ao lugar da vergonha, dizendo que a "censura" à obra de Lobato é mais um ato de um governo autoritário que quer estabelecer a doutrina de pensamento no Brasil, eliminando o livre-pensar e interferindo na sagrada relação de leitores com seus livros. Dizem ainda que, continuando assim, daqui a pouco estaremos proibindo a leitura de Os Sertões, Macunaíma, Grande Sertão: Veredas, O Cortiço, Odisséia, Dom Casmurro etc, esquecendo-se de que, para fins de comparação, esses livros também teriam que ser distribuídos para o mesmo público, nas mesmas condições. Às vezes parece-me mais uma estratégia para, mais uma vez, mudar de assunto, tirar o foco do racismo e embolar o meio de campo com outros tabus mais democráticos como o estupro, o incesto, a traição, a violência, a xenofobia, a homofobia ou o aborto. Tabus que, afinal de contas, podem dizer respeitos a todos nós, sejamos brancos ou negros. Sim, há que se lutar em várias frentes, mas hoje peço que todos apaguem um pouco os holofotes que jogaram sobre si mesmos e suas liberdades cerceadas, concentrem-se nas palavra "racismo" e "criança", mesmo que possa parecer inaceitável vê-las assim, uma tão pertinho da outra, dêem uma olhada no árduo e necessário processo que nos permite questionar, nos dias de hoje e dentro da lei, se Caçadas de Pedrinho é mesmo um livro indicado para discutir racismo nas salas de aula brasileiras.
Os motivos do parecer - De acordo com a Coordenação Geral de Material Didático do MEC, a avaliação das obras que compõem o Programa Nacional Biblioteca da Escola são feitas por especialistas de acordo com os seguintes critérios: "(...) a qualidade textual, a adequação temática, a ausência de preconceitos, estereótipos ou doutrinações, a qualidade gráfica e o potencial de leitura considerando o público-alvo". A simples aplicação dos critérios já seria suficiente para que o livro Caçadas de Pedrinho deixasse de fazer parte da lista do MEC. No parecer apresentado ao Conselho Nacional da Educação pela Secretaria da Educação do Distrito Federal, a professora Nilma Lino Gomes, da UFMG, salienta que o livro faz “menção revestida de estereotipia ao negro e ao universo africano, que se repete em vários trechos”. Destaco alguns: "Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou na árvore que nem uma macaca de carvão”, ou (ao falar de um possível ataque por parte de onças) "Não vai escapar ninguém - nem Tia Nastácia, que tem carne preta", ou "E aves, desde o negro urubu fedorento até essa joia de asas que se chama beija-flor". Muita gente diz que contextualizar a presença no texto de trechos e expressões como essas seria menosprezar a inteligência de nossas crianças, que entenderiam imediatamente que não se faz mais isso, que a nossa sociedade se transformou e que atitudes assim são condenáveis. Aos que pensam assim, seria importante também levar em conta que "macaco", "carvão", "urubu" e "fedorento" ainda são xingamentos bastante usados contra os negros, inclusive em "inocentes brincadeiras" infantis durante os recreios nas nossas escolas por esse Brasil afora. E não apenas nas escolas, pois também são ouvidos nas ruas, nos ambientes de trabalho, nos estádios de futebol, nas delegacias de polícia e até mesmo nos olhares dos que pensam assim mas que, por medo da lei, não ousam dizer. Apesar disso, em reconhecimento ao importante caráter literário da obra de Monteiro Lobato, optou-se por sugerir que a obra fosse contextualizada e somente adotada por educadores que tenham compreensão dos processos geradores do racismo brasileiro. Como se fosse um problema fácil de compreender.
Pensando aqui com meus botões, sou capaz de me lembrar de inúmeras obras infanto-juvenis que valorizam o negro e tratam racismo com a seriedade e o respeito que o assunto merece, e que foram editadas principalmente depois da Lei 10.639/03, que inclui nos ensinos fundamental e médio a História e a herança africanas. Posso estar errada, mas me parece que Caçadas de Pedrinho entrou para o Programa Nacional Biblioteca da Escola antes disso; sendo o contrário, pela lei, nem deveria ter entrado. Há maneiras muito mais saudáveis, responsáveis e produtivas de se levar o tema para dentro da escola sem ter que expor as crianças ao fogo para lhes mostrar que queima; e sem brigada de incêndio por perto. Isso é maldade, ou desconhecimento de causa.
A causa - a luta pela igualdade de oportunidades no Brasil - Vou relembrar apenas fatos dos períodos mais recentes, que talvez tenham sido vividos e esquecidos, ou simplesmente ignorados, pela maioria das pessoas que hoje brada contra o "politicamente correto" da esquerda brasileira. Um breve histórico das últimas três décadas e meia:
1984 - o governo do General João Batista de Oliveira Figueiredo decreta a Serra da Barriga, onde tinha existido o Quilombo dos Palmares, como Patrimônio Histórico Brasileiro, num ato que reconhece, pela primeira vez, a resistência e a luta do negro contra a escravidão.
1988 - Durante as comemorações pelo Centenário da Abolição, o governo de José Sarney cria a Fundação Cultural Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura, que terá como meta apoiar e desenvolver iniciativas que auxiliem a ascensão social da população negra. Ainda nesse ano é promulgada a nova Constituição que, no seu artigo 5º, XLII, reconhece o racismo como crime inafiançável e imprescritível, ao mesmo tempo em que abre caminho para se estabelecer a legalidade das ações afirmativas, ao legislar sobre direitos sociais, reconhecendo os problemas de restrições em relação aos portadores de deficiências e de discriminação racial, étnica e de gênero.
1995 - durante o governo de FHC adota-se a primeira política de cotas, estabelecendo que as mulheres devem ocupar 30% das vagas para as candidaturas de todos os partidos. Nesse mesmo ano, em novembro, acontece em Brasília a Marcha Zumbi contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, quando foi entregue ao governo o Programa de Superação do Racismo e da Desigualdade Racial, com as seguintes sugestões: incorporar o quesito cor em diversos sistemas de informação; estabelecer incentivos fiscais às empresas que adotarem programas de promoção da igualdade racial; instalar, no âmbito do Ministério do Trabalho, a Câmara Permanente de Promoção da Igualdade, que deverá se ocupar de diagnósticos e proposição de políticas de promoção da igualdade no trabalho; regulamentar o artigo da Constituição Federal que prevê a proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei; implementar a Convenção Sobre Eliminação da Discriminação Racial no Ensino; conceder bolsas remuneradas para adolescentes negros de baixa renda, para o acesso e conclusão do primeiro e segundo graus; desenvolver ações afirmativas para o acesso dos negros aos cursos profissionalizantes, à universidade e às áreas de tecnologia de ponta; assegurar a representação proporcional dos grupos étnicos raciais nas campanhas de comunicação do governo e de entidades que com ele mantenham relações econômicas e políticas. Como resposta, em 20 de novembro de 1995, Fernando Henrique Cardoso cria, por decreto, o Grupo de Trabalho Interministerial - GTI - composto por oito membros da sociedade civil pertencentes ao Movimento Negro, oito membros de Ministérios governamentais e dois de Secretarias, encarregados de propor ações de combate à discriminação racial, promover políticas governamentais antidiscriminatórias e de consolidação da cidadania da população negra e apoiar iniciativas públicas e privadas com a mesma finalidade.
Como base para o GTI foram utilizados vários tratados internacionais, como a Convenção n.111, da Organização Internacional do Trabalho - OIT, assinada pelo então presidente Costa e Silva naquela fatídico ano de 1968, no qual o país se comprometia, sem ter cumprido, a formular e implementar políticas nacionais de promoção da igualdade de oportunidades e de tratamento no mercado de trabalho. Somente após pressão e protestos da sociedade civil e da Central Única dos Trabalhadores, é então criado o Grupo de Trabalho para Eliminação da Discriminação no Emprego e na Ocupação - GTEDEO, composto por representantes do Poder Executivo e de entidades patronais e sindicais, também no ano de 1995.
1996 - A recém criada Secretaria de Direitos Humanos lança, em 13 de maio, o Programa Nacional de Direitos Humanos - PNHD, que tinha entre seus objetivos "desenvolver ações afirmativas para o acesso dos negros aos cursos profissionalizantes, à universidade e às áreas de tecnologia de ponta", "formular políticas compensatórias que promovam social e economicamente a comunidade negra" e "apoiar as ações da iniciativa privada que realizem discriminação positiva".
2002 - no final do governo de Fernando Henrique Cardoso foi lançado o II Plano Nacional de Direitos Humanos, que reconhece os males e os efeitos ainda vigentes causados pela escravidão, então tratada como crime contra a humanidade.
2003 - o governo de Luiz Inácio Lula da Silva promulga o decreto que reconhece a competência do Comitê Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial - CERD, para analisar denúncias de violação de direitos humanos, como previsto no art. 14 da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de 7 de março de 1966. Também em 2003 é criada a Secretaria Especial de Política de Promoção da Igualdade Racial - SEPIR e, subordinada a ela, o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial - CNPIR, visando apoio não apenas à população negra, mas também a outros segmentos étnicos da população brasileira, combatendo o racismo, o preconceito e a discriminação racial, e tendo como meta reduzir as desigualdades econômica, financeira, social, política e cultural, envolvendo e coordenando o trabalho conjunto de vários Ministérios. Nesse mesmo ano também é alterada a Lei 9.394, de 1996, que estabelece as diretrizes da educação nacional, para, através da Lei 10.639/03, incluir no currículo dos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, segundo seu artigo 26-A, I, "estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil."
2010 - entra em validade o Estatuto da Igualdade Racial que, entre outras coisas, define o que é discriminação racial ("distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em etnia, descendência ou origem nacional"), desigualdade racial ("situações injustificadas de diferenciação de acesso e oportunidades em virtude de etnia, descendência ou origem nacional"), e regula ações referentes às áreas educacional, de propriedade rural, comunidades quilombolas, trabalhista, cultural, religiosa, violência policial etc.

A "caçada" a Caçadas de Pedrinho - Acima estão apenas alguns dos "melhores momentos" da luta contra o racismo e a desigualdade. Há vários outros que deixo de fora por não estarem diretamente ligados ao caso. Eu quis apenas mostrar que o parecer do MEC não é baseado em mero capricho de um cidadão que se sentiu ofendido pelas passagens racistas de Caçadas de Pedrinho, mas conta com o respaldo legal, moral e sensível de ativistas e educadores que há anos estão lutando para estabelecer políticas que combatam o racismo e promovam a formação não apenas de alunos, mas de cidadãos.
Em junho de 2010, o Sr. Antônio Gomes da Costa Neto (Técnico em Gestão Educacional da Secretaria do Estado da Educação do Distrito Federal, mestrando da UnB em Educação e Políticas Públicas: Gênero, Raça/Etnia e Juventude, na linha de pesquisa em Educação das Relações Raciais) encaminhou à SEPPIR denúncia de conteúdo racista no livro Caçadas de Pedrinho. A SEPPIR, por sua vez, achando a denúncia procedente, protocolou-a no Conselho Nacional de Educação. Foi providenciado um parecer técnico, por pedido da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD/MEC), realizado pela técnica Maria Auxiliadora Lopes, que é subcoordenadora de Educação Quilombola do MEC, e aprovado pelo Diretor de Educação para a Diversidade, Sr. Armênio Bello Schimdt. O parecer técnico diz assim:
"A obra CAÇADAS DE PEDRINHO só deve ser utilizada no contexto da educação escolar quando o professor tiver a compreensão dos processos históricos que geram o racismo no Brasil. Isso não quer dizer que o fascínio de ouvir e contar histórias devam ser esquecidos; deve, na verdade, ser estimulado, mas há que se pensar em histórias que valorizem os diversos segmentos populacionais que formam a sociedade brasileira, dentre eles, o negro."
Em outro momento:
"Diante do exposto, conclui-se que as discussões pedagógicas e políticas e as indagações apresentadas pelo requerente ao analisar o livro Caçadas de Pedrinho estão de acordo com o contexto atual do Estado brasileiro, o qual assume a política pública antirracista como uma política de Estado, baseada na Constituição Federal de 1988, que prevê no seu artigo 5º, inciso XLII, que a prática do racismo é crime inafiançável e imprescritível. É nesse contexto que se encontram as instituições escolares públicas e privadas, as quais, de acordo com a Lei nº 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), são orientadas legalmente, tanto no artigo 26 quanto no artigo 26A (alterado pelas Leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008), a implementarem nos currículos do Ensino Fundamental e no Ensino Médio o estudo das contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente as matrizes indígena, africana e européia, assim como a obrigatoriedade do estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena."
Não há censura, boicote ou banimento. O parecer técnico fala sobre orientação, contextualização, preparo do educador para trabalhar a obra na sala de aula. Ouvi pessoas bradando contra uma possível nota acrescentada ao livro, dizendo que isso em si já seria uma mordaça ou um desrespeito à obra de Lobato. Será que isso valeria também para a nota existente no livro, alertando as crianças que já não é mais politicamente correto atirar em onças? É assim:
"Caçadas de Pedrinho teve origem no livro A caçada da onça, escrito em 1924 por Monteiro Lobato. Mais tarde resolveu ampliar a história que chegou às livrarias em 1933 com o novo nome. Essa grande aventura da turma do Sitio do Picapau Amarelo acontece em um tempo em que os animais silvestres ainda não estavam protegidos pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA), nem a onça era uma espécie ameaçada de extinção, como nos dias de hoje." (p. 19).
Não que eu tenha nada contra as coitadas das onças, espécie ameaçada de extinção, mas será que as crianças não mereceriam também um pouco mais de consideração? O próprio Lobato, depois de ser acusado de ofender os camponeses com sua caracterização de Jeca Tatu como o responsável por sua própria miséria, reconhece o erro e pede desculpas públicas através do jornal O Estado de São Paulo, escrevendo também o mea-culpa que passaria a integrar a quarta edição de Urupês, em 1818:

"Eu ignorava que eras assim, meu caro Tatu, por motivo de doenças tremendas. Está provado que tens no sangue e nas tripas um jardim zoológico da pior espécie. É essa bicharada cruel que te faz feio, molenga, inerte. Tens culpa disso? Claro que não".
Ou seja, o próprio Lobato, nesse caso, levou em consideração o que é dito em uma de suas frases mais citadas por quem quer demonstrar a importância dos livros na formação de uma sociedade: "Um país se faz de homens e livros". Não devemos nos esquecer que, tanto na frase como no ato citado acima, ele coloca o homem em primeiro lugar.

Outras contextualizações - Não é a primeira vez que uma obra considerada clássica sofre críticas ou até mesmo revisões por causa de seu conteúdo racista. Aconteceu, por exemplo, com o álbum "Tintim no Congo", do belga Hergé. Publicadas a partir de 1930, as tirinhas reunidas nesse álbum contam as histórias de Tintim em um Congo ocupado pela Bélgica. Por parte de Hergé, a obra foi revisada duas vezes, a primeira em 1946 e a segunda em 1970, reduzindo o comportamento paternalista dos belgas e suavizando algumas características mais caricaturadas dos personagens negros. Para justificá-las, Hergé declarou que as tiras tinham sido escritas "sob forte influência da época colonial", chamando-as de seu "pecado da juventude". O álbum revisado é publicado hoje no Brasil pela Companhia das Letras, a mesma editora de Caçadas de Pedrinho *, e traz a seguinte nota de contextualização:

"Neste retrato do Congo Belga, hoje República Democrática do Congo, o jovem Hermé reproduz as atitudes colonialistas da época. Ele próprio admitiu que pintou o o povo africano de acordo com os estereótipos burgueses e paternalistas daquele tempo - uma interpretação que muitos leitores de hoje podem achar ofensiva. O mesmo se pode dizer do tratamento que dá à caçada de animais.”
Tintim na França - matéria reproduzida da France Presse e publicada na Folha de São Paulo, em 24/09/2007, conta que o O Movimento Contra o Racismo e pela Amizade entre os Povos (MRAP), uma das mais importantes organizações francesas contra o racismo, solicitou à editora Casterman que incluísse em suas edições de Tintim um alerta sobre o conteúdo e contra os preconceitos raciais. Outras organizações, como o Conselho Representante das Associações Negras (CRAN) já tinham se manifestado contra o álbum anteriormente, chegando a solicitar, inclusive, que a editora parasse de publicá-lo. Segundo Patrick Lozès, presidente da CRAN, "os estereótipos sobre os negros são particularmente numerosos" e "os negros são mostrados como imbecis e até mesmo os cachorros e os animais falam francês melhor".
Tintim na Inglaterra - em julho de 2007, depois de pronunciamento da Comissão Britânica pela Igualdade das Raças (BCRE), acusando o álbum de racista, uma das grandes redes de livrarias Britânicas resolveu passá-lo da prateleira de livros infantis para a prateleira de livros para adultos, reconhecendo que os congoleses são tratados como "indígenas selvagens parecidos com macacos e que falam como imbecis". Alguns anos antes, a editora britânica de Tintim no Congo, a Egmont, tinha se recusado a editar o álbum, voltando atrás por pressão de leitores, mas publicando-o com uma tarja de advertência sobre seu conteúdo ofensivo.
Tintim na Bélgica - um congolês, estudante da Universidade Livre de Bruxelas, entrou na justiça belga com queixa-denúncia e solicitação para que o álbum fosse retirado de circulação.
Tintim nos Estados Unidos - o álbum Tintim no Congo foi retirado das prateleiras da Biblioteca do Brooklyn, em Nova York, ficando disponível apenas para consulta solicitada.

Adaptações e a integridade de um clássico - Creio que alguns dos que hoje exaltam a genialidade do escritor Monteiro Lobato podem não tê-lo lido de fato, conhecendo seu universo através das diversas adaptações de suas obras para a televisão. Esses, com certeza, conhecem uma versão completamente filtrada do conteúdo dos livros; e seria interessante ficarem atentos os que reclamam de censura e de ditadura do politicamente correto. Segundo matéria do Estado de São Paulo em 01/11/2010, uma parceria entre a produtora Mixer e a Rede Globo levará ao ar em outubro de 2011 uma temporada em animação de 26 episódios baseada no Sítio do Picapau Amarelo. Em entrevista ao jornal, o diretor executivo da Mixer contou que "resquícios escravocratas em referência a Tia Nastácia serão eliminados da versão". Outra mudança, segundo ele, é em relação ao pó de pirlimpimpim: "No original, eles aspiravam o pó e 'viajavam'. Na versão dos anos 80, eles jogavam o pó uns sobre os outros. Ainda não decidimos como será agora".
Ou seja, desde que foi para a televisão, a obra de Monteiro Lobato tem sido adaptada, suavizada, contaminada pelo "politicamente correto". Talvez seja essa a "lembrança" de boa parte dos que dizem não ver racismo na obra de Lobato. Não seria o caso de brigar para que as referências racistas sejam mantidas, porque assim os pais também podem discutir racismo com os filhos que assistem TV Globinho? Ou que o pó de pirlimpimpim volte a ser cheirado para que as crianças, em contato com uma possível incitação ao consumo de drogas e sem nenhuma orientação, descubram por si só que aquilo é errado? Ou é ilegal, como também o é a adoção no Programa Nacional Biblioteca da Escola de obras que não obedeçam ao critério de ausência de preconceitos e estereótipos ou doutrinações.
Mesmo assim, o MEC pede apenas um preparo do educador, uma nota explicativa, uma contextualização. E as pessoas, principalmente as brancas, dizem que não pode, que é um absurdo, um desrespeito com o autor. Desrespeito maior é não se colocar no lugar das crianças negras matriculadas no ensino público médio e fundamental, é não entender que uma nota explicativa que seja, uma palavrinha condenando o que nela causa tanta dor, pode não fazer diferença nenhuma na vida de adultos, brancos, classe média ou alta e crianças matriculadas em escolas particulares; mas fará uma diferença enorme nas vidas de quem nem é levado em conta quando se decide sobre o que pode ou não pode ferir seus sentimentos. Desrespeito é não reconhecer que o racismo nos divide em dois Brasis; um que se fosse habitado só por brancos (ricos e pobres), ocuparia o 30º lugar no IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), e cairia para 104º lugar se fosse habitado só por negros (ricos e pobres). Ainda pretendo escrever um texto sobre manifestações de racismo na escola e sua influência nos primeiros anos de vida e de educação de brancos e negros. Mas, por enquanto, para quem chegou até aqui e continua achando que não há nada demais em expressões como "macaca de carvão", "urubu fedorento", "beiço", "carne preta", seja nos dias de hoje ou nos dias de escravidão, deixo apenas uma frase que poderia ter sido dita por outro personagem negro de Monteiro Lobato: "O vício do cachimbo deixa a boca torta".