quarta-feira, 7 de novembro de 2007

A renovação do novo - Cidadão Instigado



Quando surgiu, o grupo CSNZ causou uma revolução na cena musical brasileira como não se via desde a Tropicália, devido em grande parte à genialidade (para mim, comparável a de Jorge Ben e Gilberto Gil) do Chico Science, que conseguia fazer letras que unia politica e poesia (esta que falta ao Mundo Livre, por exemplo), além de conseguir fazer a fusão regional e cosmopolita pelo ritmo e tom imprimidos às letras e de ser de longe o melhor cantor do manguebeat, um intérprete explêndido.

Depois da morte de Chico, o movimento modificou-se e expandiu. O próprio Nação tomou consciência que não poderia continuar fazendo o mesmo trabalho e deu uma guinada no seu estilo. Acertaram. Apesar de deixarem de ser revolucionários - o seu novo tipo de som se encaixa muito mais facilmente no estilo 'pop rock intimista com climinha' que está atolando o cenário mundial - eles continuam sendo a grande banda do movimento, sem tentar ser cover de si próprios... o que teria um resultado desastroso, pois para tanto, é preciso ter um gênio como Gil ou Chico.

A prova de que esta fusão é muito difícil de ser alcançada, é que os grupos posteriores (com excessões) abandonaram a empreitada. Alguns se voltaram para o 'regional' mais puro, estilizado ou não (Comadre Fulozinha, Mestre Ambrósio, Cordel do Fogo Encantado), outros se voltaram mais para um som mais intimista, pontuado ou não com ritmos nordestinos, e fazendo referência (o que é diferente de fazer uma mistura de fato) a estilos diversos, do samba ao beach, mais influenciados por Mundo Livre - inclusive no vocal desafinado, que as vezes funciona, outras não - não basta desafinar, tem de saber usar essa característica no interior da estrutura musical de forma expressiva, vide Tom Zé, e o mestre maior, João Gilberto. É o caso do Mombojó, Eddie, Bonsusseso... Outros ainda resolveram misturar tudo isso em bases eletrônicas diversas, como um certo Nação fez no disco amarelo, pra mim, o melhor pós Chico.

De fato, a mistura regional\cosmopolita é por esses novos grupos encarados de forma diversa, não como uma necessidade de fazer um significar o outro - como o CSNZ ou o Tropicalismo antes dele, em outra linha- mas antes como uma liberdade de usar livremente ora um, ora outro. E apesar de ser ainda desse movimento que sai os grupos mais interessantes do Brasil, porque são obrigados a arriscar (curiosamente, é o mercado que os obriga a serem origianais e novos a cada disco - isso porque a nova linguagem inaugurada pelos Los Hermanos ainda não rendeu frutos relevantes, e talvez seja melhor assim) é certo que nenhum grupo desde a primeira geração havia me chamado a atençao como algo realmente novo.

O paradoxo é que apesar dos grupos produzirem misturas interessantes, era como se nós já soubéssemos quais seriam os ingredientes - uma pitada de regionalismo, samba, rock, música eletrônica. E nada também parecia ser tão visceral como o Nação, seja pela inferioridade das letras e dos intérpretes, seja pelo abandono da linha funk, que misturados à batucada fazia a revolução musical dos negros americanos reencontrarem suas origens, com resultados quase ritualísticos. Todos os grupos acabam soando algo morno, mpb. Não que não fossem bons, mas nada extraordinário e/ou marcante.

Até que eu conheci esse grupo, que é mais recente, o Cidadão Instigado. Ele também pega os vários estilos e se utiliza ora de um, ora de outro, muito mais do que tentar fundi-los. Até aí, nada de novo. Mas o conjunto de referências que ele utiliza segue um paradigma novo... Amado Batista com Frank Zappa? Isso com o vocal mais desafinado e esgarniçado desde Tom Zé, só que
plenamente consciente, fazendo com que as 'limitações' joguem a favor musicalmente. E com letras verdadeiramente 'instigantes', (os título - os urubus só pensam em te comer, o pobre dos dentes de ouro... já dão uma idéia) com imagens bastante originais. Os caras são capazes de fazer uma rock progressivo de 12 minutos que começa meio Alceu Valença, passa por Pink Floyd e muda pra Frank Zappa, e na faixa seguinte fazer um som brega no melhor estilo Amado Batista. Ou então fazer um improvisso algo jazzístico por sobre uma base de teclado anos oitenta, dos mais fuleiros e característicos da época, com uma letra que versa sobre vacas agonizantes. Reivençao da psicodelia? Apesar do princípio ser o mesmo - referência a tudo e a todos - as misturas são as mais criativas que eu tive oportunidade de acompanhar nos últimos tempos. Além das referências serem originais, os caras não estão preocupados em seguir aquela linha clean, mais acessível, tipo mpb. Eles seguem mais as lições do rock progressivo e psicodélico, de passagem de um estado a outro. O que se ganha com isso é que as inúmeras influências aparecem em tensão (servindo por exemplo para mudar o sentido da música, acompanhando uma mudança de sentido da letra) ao invés de colocadas como equivalentes, como se fossem
objetos culturais que estivessem aí para ser usados sem crise, como o que acontece na maior parte das bandas de hoje que, apesar de tomarem Tom Zé como seu padrinho, fazem o exato oposto daquilo que o mestre ensinou com sua estética do plágio. A junção de centro e periferia ou cria algo novo, que ressignifica a ambos (como o nação, ao subordinar o centro à periferia, creio que pela primeira vez na nossa música, pois os movimentos que se via até então tiravam sua força de realizar o movimento inverso), ou aponta para a impossibilidade de fusão, como faz Tom Zé e a Tropicália, criando aqueles monstrengos sonoros.

Sem mais blablabla... baixa ae:

O CICLO DA DE.CADÊNCIA



http://www.mediafire.com/download.php?5m3dmwt91ci

E O MÉTODO TUFO DE EXPERIÊNCIAS



http://www.mediafire.com/?cdi4o99mxjy

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

O Cavaleiro das Trevas (Frank Miller) e A Piada Mortal


Com o Cavaleiro das Trevas, Frank Miller conseguiu ressuscitar a personagem do Morcegão ao expor seu caráter problemático em meio a muita violência – algo parecido com o que faz Tarantino em seus bons momentos. Ele não age por amor à humanidade (na verdade, a pátria, o capital, etc...) mas sim levado por motivações egoístas cujas origens estão em um trauma de infância e em uma crise de meia idade. Como se a mulher maravilha decidisse destruir uma cidade inteira por causa da TPM. NA história, o morcego é um cinqüentão que lança para o mundo um olhar de superioridade e desprezo considerando a todos (veja bem, culpados ou inocentes) como vermes. O que ele defende não são os homens, mas sua visão psicótica de justiça. Por isso todo mundo tem de ter medo do cara, tendo feito alguma coisa de errado ou não.
A história se concentra no lado mais sádico da questão, enfatizando o prazer que a personagem sente ao detonar seus inimigos com requintes de crueldade (em uma passagem, Batman dentro de um tanque de guerra aponta para um membro de uma gangue e pergunta ‘porque eu não devo matar esse verme’). Ele se sente superior ao mundo e com isso se outorga o direito de satisfazer seus instintos básicos, passando por cima de qualquer um, inclusive da pátria e da humanidade (simbolizados pelo super homem, que leva um pau – o que é muuuuito bom!) Apesar do tom reacionário de ‘mal necessário’ – algo do tipo, ‘já que as coisas estão caóticas, grupos de extermínio que nos digam o que é bom e o que é mal são bem vindos’ – a história abre a possibilidade de crítica ao relativizar o ponto de vista do morcegão, e mostrar que seus exageros tem motivações narcísicas. E tudo construído em cima de um roteiro excelente e desenhos bem crus, perfeitos para a situação.
A base da concepção de justiça da personagem é uma noção dualista onde bandido é ruim e a paz e a ordem são valores abstratos bons em si mesmos. Mas no contexto pós moderno nem mesmo Hollywood engole essa visão sem complicações. Daí a pergunta: e se a visão do morcego fosse tão míope e insana quanto à de seus inimigos? (assunto tratado com maestria em Watchmem, de Alan Moore, uma metanarrativa sobre a impossibilidade dos heróis). Allan Moore em ‘a piada mortal’ trata da questão a partir de um prisma mais psicológico. A grande piada da história – e a mais mortal de todas – é essa: no fim das contas, bem e mal se equivalem. Batman literalmente criou o coringa, que é uma extensão ‘real’ da psicose obsessiva de Bruce. Uma fantasia obscura criada para satisfazer desejos sádicos e narcisistas – novamente, surgidas de um trauma de infância – e com tendência a durar para sempre, pois os conflitos que Wayne adentra só poderiam ser resolvidos com seu desaparecimento, ou melhor, com o desaparecimento de homens como ele, pois a justiça, que em última instância define o que é bom ou mal, estabelece seus critérios visando a proteção e perpetuação da desigualdade gerada por ricos e poderosos. Ou seja, o objetivo último de Batman só poderia ser concretizado com o desaparecimento do Batman, que em nome da justiça perpetua a injustiça primordial.
Para não chegar às vias de fato, o morcego se apega à sua noção de justiça abstrata de modo tão ferrenho que esta acaba por se voltar contra a idéia mesma de humanidade – em nome da qual supostamente ela foi criada. (Isso na versão mais moderna do herói.) Caso nosso herói houvesse nascido na Alemanha nazista e por qualquer razão acreditasse que fossem os judeus a raiz do mal que assola o planeta, (se um judeu tivesse matado seus pais, por exemplo), ele não hesitaria em criar um sistema de campos de extermínio altamente eficiente – e lucraria com eles em nome das corporações Wayne. Pois outra das características do herói é essa racionalidade instrumental – o cálculo lógico e desumanizado aplicado a qualquer situação. Com o abalo contemporâneo na crença nos benefício do progresso, essa racionalidade se desvincula da ética e o morcego a pode usar para manipular amigos, eliminar inimigos com requintes de crueldade, etc... tudo sem que nos seja dada a certeza de que ele está certo ou age em nosso benefício. Porque o nós não existe.
Continuando a comparação anterior... Diante de uma mesma situação, digamos, um camelô vendendo doces no metrô ilegalmente, o homem de aço iria chegar no sujeito e muito educadamente pediria para ele não fazer mais aquilo, pois tinha bom coração. Tomaria então os seus objetos de trabalho e sairia voando para entregar à polícia. Já Batman pegaria o cara e o seguraria de ponta cabeça pra fora do trem em movimento, enquanto comeria rindo todos os doces. Por isso a maior riqueza da personagem, pois o sadismo das suas ações deixa ver a violência do dado inicial e que nenhum dos heróis pode questionar (justamente o que faz Watchmen) com o risco de deixarem de existir enquanto heróis: será que o problema não está em considerar o ambulante como uma ameaça a ordem? Não estaria a ordem equivocada?
Segue o link para essas duas histórias excelentes (numa o morcegão da um pau no super homem, na outra, após uma das ações mais sádicas e cruéis do coringa, ele e o Batman gargalham de uma piada ruim, como dois meninos) que ajudaram a mostrar pro mundo que quadrinho não é coisa de criança. Aliás, pelo preço que custam, é uma coisa muito séria. O negócio é pegar de graça aqui mesmo, sem esquentar, porque a pirataria só é crime se você acredita que o capitalismo é justo, ou que o mundo é de fato, um lugar para todos.

O CAVALEIRO DAS TREVAS

EDIÇÃO 01 DE 04

EDIÇÃO 02 DE 04

EDIÇÃO 03 DE 04

EDIÇÃO 04 DE 04


A PIADA MORTAL
Arrow DOWNLOAD

Batman X Supermen



O reino dos quadrinhos entra em crise a partir dos anos 80 – na verdade a partir dos anos 70 já vemos mudanças de concepção em novos personagens e formatos (Robert Crumb é dessa época) devido ao clima contra-revolucionário da época. Para contestar a arte dita elevada, nada melhor do que adotar o novo formato, mais popular. Mas essas mudanças atingem aqueles universos mais ‘tradicionais’ (especialmente a DC e a Marvel) a partir dos anos oitenta. Essa crise guarda semelhanças com a que atingiu as artes tradicionais na virada do século – os vários modernismos – guardadas as devidas proporções. Mas assim como lá, a base do problema está em um questionamento da idéia da consciência como chave para o conhecimento do mundo. O problema colocado pela pós modernidade – existe uma narrativa que pode ser aceita como ‘a verdadeira’, seja quais forem seus critérios – atinge em cheio a noção dualista de bem e mal que é a condição mesma de possibilidade dos heróis em geral. De repente, não se sabe mais - ou não se acredita tão facilmente – se aquilo que os heróis defendem corresponde de fato ao que é bom. De repente, Magneto não parece mais um louco. O Vietnam contribuiu para isso, e também o fim do socialismo ‘real’. Mesmo o discursos de direita descobriram que o que até então se chamava de O BEM era branco, capitalista, heterossexual, masculino, burguês... ou seja, bem determinado históricamente e nada universalizante.

Com isso, uma dúvida demolidora surge no mundo até então bem sustentado em seu auto-engano: será que os heróis estão fazendo o que é certo, ou são tão parciais e maníacos como seus inimigos. As respostas variam de um sim, apesar de tudo – como vimos mais recentemente em Tropa de Elite – até um não, o buraco é mais em baixo – como em Watchman. Mas o fato é que todas (e todas mesmo.. vide as séries crises nas infinitas terras, da DC, e Guerra Civil, da Marvel, que reformulou todo esse Universo) as personagens foram atingidas pela dúvida melancólica da pós modernidade. E não podia ser diferente com os dois maiores heróis dos quadrinhos, Batman e Superhomem. E as diferentes respostas dadas pelas personagens foi tamanha que de amigos que eram no início (a época de ouro dos quadrinhos) ele agora mantém um respeito à distância, com diferenças ideológicas marcantes e irreconciliáveis. O certo é que nessa disputa, a despeito do que afirmam alguns fãs, o morcegão se deu bem melhor. E não é apenas por uma questão de sorte por ter encontrado em seu caminho roteiristas e desenhistas mais criativos. Mas é o caráter da personagem, muito mais complexo, que permite um questionamento que no caso do Homem de Aço não pode ser feito. Super Homem age por amor à humanidade, e o AMOR está sempre certo. Caso ele não amasse os homens, ele simplesmente abandonaria o planeta. Veja bem – não existiria super homem – seria uma outra coisa. (Aqui um parêntesis - É esse o problema colocado em Watchmen – pra mim, o melhor quadrinho do mundo, justamente por ser uma história de heróis sobre a impossibilidade deles existirem, e por fazer um questionamento radical do pressupostos dos principais tipos de heróis existentes, apenas levando seus pressuposotos às últimas conseqüências. Por exemplo se Wolverine é meio homem, meio animal, porque ele não pode estuprar uma criança? E qual seria a reação dos vários interessados? Mas principalmente, seria ele ainda um herói? Ou então, se super homem é tão superior a qualquer mortal, porque ele não nos considera como vermes? A vida dele teria sentido se não existissem super vilões poderosos?) Portanto, o fundamento das ações do homem de aço não são questionáveis, e por isso ele é uma personagem mais simples, um herói clássico – tipo John Wayne.

O caso de Batman é mais complexo (tipo Mastroianni)... ele não age movido por amor, mas por ódio, por um trauma de infância que o leva a gerar uma noção psicótica de justiça que ele pode por em prática por ser milionário. Basicamente, Batman pode definir o que é bom ou mal porque é rico e consegue bancar sua insanidade. O fato de ser extremamente inteligente – e é preciso questionar que tipo de inteligência é essa – não indica que ele está certo, mas apenas que ele consegue convencer melhor a si mesmo – e aos leitores – de que o seu é o ponto de vista da verdade. Se Batman age em nome de si próprio por sadismo, onde fica o seu heroísmo?

Os quadrinhos que discutiremos abaixo são fantásticos justamente por colocar, de modos distintos, um questionamento sobre a validade das ações de Batman. E se o morcegão não fosse tão diferente assim dos bandidos que ele persegue incansavelmente? Ou ainda, e se fosse ele o principal responsável pela existência desses bandidos? O problema se desloca e deixa de ser uma questão bem x mal para concentrar-se justamente no borramento das fronteiras. Onde termina um e começa outro... sanidade e loucura, certo e errado, particular e geral.