quinta-feira, 16 de setembro de 2010

O fantasma da pequena área (1\2)



GALERA, SEGUE UM TEXTO DE UM CAMARADA QUE ERA PRA SER PUBLICADO AQUI NA ÉPOCA DA COPA, MAS QUE EU VACILEI E ESQUECI COMPLETAMENTE. MAS POSSO GARANTIR QUE ELE NÃO PERDEU EM NADA SUA ATUALIDADE, NEM MESMO PÓS POLVO PAUL E MICK JAGGER FDP.
Este texto surgiu como comentário à notícia sobre a mais recente briga de Kaká e Juca Kfouri. Segue abaixo o link

http://g.br.esportes.yahoo.com/futebol/copa/blog/daredacao/post/Kak-sai-do-tom-e-ataca-Juca-Kfouri?urn=fbintl,250361#mwpphu-container

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1.Futebol, política e entretenimento
Futebol e religião se misturam sim no Brasil. E, nessa mistura, são mais políticos do que as coisas públicas por aqui. Se política quer dizer "a maneira como a população trata assuntos de interesse público", no futebol seus desejos estão muito mais bem representados do que na política e no noticiário noturno. Inclusive com base na história recente. Há restos de demanda popular no Corinthians; é possível ler o processo de ascensão social dos imigrantes italianos no Palmeiras; a Portuguesa tornou-se um time menor ao mesmo tempo em que o sobrenome português tornou-se um detalhe irrelevante nas certidões de nascimento; todo mundo no "interior" do Brasil é flamenguista justamente porque o Flamengo é o time do povo só no Rio, estado-síntese do espírito malandro nacional. E, finalmente, o elitismo democrático sãopaulino equivale à aura cosmopolita do estado carro-chefe - a voraz locomotiva - do país.

Não dá pra ignorar esse tipo de "coincidência" entre o que se chama a "tradição" dos times e a maneira como cada brasileiro se compreende. São marcas do processo histórico. É disso que se constituiu aos poucos a firme relação entre o jogo e as identidades no Brasil. A ignorância sobre a função simbólica do futebol torna-se portanto um problema do ponto de vista da compreensão do país. Uma problema porque outras diversões chegam à rodo com a internacionalização do mercado e desempenham funções emelhantes; porque hoje falar de futebol não significa necessariamente não ser preconceituoso e compreender bem a cultura popular.E, finalmente, porque o próprio futebol já não é o que era antes, já não está mais tão evidentemente ligado à vida prática no país, e, nessa falta de vínculos, serve melhor à indústria do que a quem quer entender o futebol.

Ou seja, se hoje em dia muito pouca gente torce pelo seu time pelos motivos acima elencados, esse é um processo induzido que enceta também a dificildade de compreendê-lo como fenômeno real. Quanto mais o futebol se torna um espetáculo gigantesco; quanto mais ele produz trilhões e segmenta-se em mil formas de fruição, menos o ritual dos campos tem a ver com a vida real das pessoas que, no entanto, sustentam-no com um esforço de dedicação afetiva jamais visto. Justamente isso é que permite dizer que, sim, o futebol é político, mas com a ressalva de que, no futebol como na política, as decisões que compõem as verdadeiras regras do jogo estão cada vez mais além da consciência das pessoas que cada vez mais o sustentam como espetáculo.

2. Sob o viés de quem veste a camisa

Pois bem. Compreendido sob o viés do torcedor (ou fã - fanático - do futebol), esse processo coincide exatamente com o da transformação do "futebol-arte" em jogo multimilionário, globalizado e já não tão baseado no talento. Choram todos os que veem partidas medícores durante o ano inteiro: nenhum jogador hoje em dia tem o talento que tinha um Pelé. De fato, isso é uma verdade. Coerentemente, os torcedores já não são como antigamente, conhecem as regras, têm camisetas, vão aos estádios no ônibus da organizada, mas entendem quase nada das minúcias da "grande arte". Pouco se pode apagar desse fato. E justamente por isso as queixas dos fãs são tão inócuas quanto o senso de realidade dos comentaristas que manda valorizar o jogo médio atual (e assim conservam seus empregos).

Entretanto, por mais que o futebol tenha se tranformado em uma diversão razoável à custo de tornar-se incompreensível, sobrevive ainda no ato de torcer justamente a mesma parte de idealização que caracteriza as queixas dos antigos pelo fim dos "tempos áureos". No fundo, é como se a casca de truculência e encantamento ficasse e o próprio futebol se esvaísse. Ora, isso só faz provar o quanto mesmo o menos encarniçado torcedor não pensa nas coisas que sempre sustentaram-lhe o alto valor na cultura brasileira. Discute-se superficialmente as partidas; comenta-se com tédio a política; a religião parece uma prática arcaica, e o espetáculo continua.

Claro. Pensar sobre futebol contraria a própria essência do costume de "torcer", com a qual, para gostar desse esporte ao mesmo tempo democrático e de tudo ou nada, cada simpatizante precisa se comprometer. Afinal, foi para estar afinado com a vida no país que seu "espírito" procurou o futebol. E ele não há de abandonar o achado tão cedo.

Não é culpa dele. O poder dessa crença, em si um poder profundamente político, é grande demais. Ao empolgar-se com futebol, o torcedor carrega para dentro de si essa magiquinha que reforça o vínculo instintivo e misterioso entre a beleza dos chapéus do Pelé e o espírito profundo do Brasil, cuja imagem mais perfeita está naquele passado de tolerância, labilidade e desrecalque que fez a glória da cultura brasileira como um todo. Por sua vez, essa mesma imagem, através da inconsciência e do ardor amador do torcedor contemporâneo, sustenta ilusões preciosas para a manutenção do status quo no presente. E isso tanto mais quanto menos se encontra nas ruas um rastro sequer do belo país.

Nesse sentido, não é mesmo permitido a nenhum torcedor tocar no passado do futebol. A todo preço deve ficar incólume o tempo em que meninos de rua, curtidos na cultura local, transformavam-se do dia para a noite em semi-deuses do esporte. Sim, no fundo sempre houve e sempre haverá um anjo dormindo no espírto de cada grande craque do passado. E todos sabem que a substância divina que anima os anjos é coisa secreta, inacessível a olhos e escrutínio humanos. Quando convém à ordem divina, no máximo Deus manda descer seus emissários à pequena área. E ali, tocando de súbito o ombro de uma jovem promessa, eles fazem irromper uma dessas jogadas que, hoje, não deixam de trazer um quê irremediável de saudade dos velhos tempos.

Inútil sugerir que em tal mistificação entra tanto de religião laica quanto entra nos gordos dízimos que Kaká envia todo mês para a Universal do Reino de Deus. Isso não parece chamar a atenção de ninguém. Exceção feita ao público que, muito embora não veja graça no jogo, involuntariamente acompanha um pouquinho de futebol, já que, afinal de contas, da graça e da desgraça divina ninguém consegue se esconder. Pois bem. Por todas essas razões arrisco dizer que somente a esse público recalcitrante está dado enxergar como de fato funciona a religião futeboleira lá dentro do coração do torcedor. E mais: juro de pé junto que justamente por isso é que Juca Kfouri, o anacoreta do futebol, persegue o impulso supostamente desespecializador de Kaká (aliás, seus comentários automaticamente lançam contra o jogador os mais ferozes leões da mídia eletrônica impessoal, arena onde nenhuma difamação é forte o bastante).

3. Nas trevas do coração do guerreiro

Então, vamos lá. Como se comportam esses 150 milhões de corações?

Bom, exatamente como a religião hoje faz menos, o futebol desvia a suas mais intensas vontades para o além-morte da arena sagrada, o estádio, onde ocorre a disputa pela honra que, na Terra, é impossível não macular. Ou seja, o fã de futebol, exatamente como o crente, nunca é um fã desinteressado. Ele toma parte em apenas uma forma de salvar-se inimiga de todas as outras, mas à brasileira, em esfera imaginária e com duvidoso respeito pluricultural às diferenças. Mesmo ciente de que aquilo não definirá sua vida real, ele se vê bem representado pelo seu proselitismo a cada campeonato. Pois se as brigas frias e diárias da vida não guardam rastro das grandes aventuras que o torcedor planejava quando menino, as dos jogadores preferidos conservam-nas oniricamente. Mas o movimento entre sonho e vigília é duplo, neste caso. O fato de o torcedor se empenhar na contemplação do rito sem poder abrir mão da distância contemplativa cobra direitos na vida real. Daí porque, mesmo sem saber para que time torcem os que lhe cruzam o caminho (ou quem são exatamente eles), o torcedor decodifica a vida enquanto embate geral entre o bem e o mal, onde guerreiros constituídos segundo tradições diversas estão brigando para cavar suas vitórias tanto quanto ele. E para alcançar tal fim valem tanto as boas obras quanto o arbítrio de Deus.

Em suma, admitido como uma diversão inocente, afirmado como disputa real pela felicidade imaginária, o futebol termina por ratificar a tomada de posição do torcedor na guerra incruenta sobre a qual se sustenta a vida semi-civilizada das camadas médias no Brasil. E nesse processo troca todas as formas modernas de se conceber a sociedade - com suas liberdade e opressões reais - pelas pré-modernas, ligadas às raças, tradições e compromissos culturais. Brincando um pouco, a agregação dos negros pela afirmação racial pode ser um sonho desmentido pela políticas culturalistas que trasnformam seus louros em formas de luta individual; o cultivo de tradições familiares pode ter se tornado uma piada no brechó da Vila Madalena cujos proprietários são uma família de gaúchos; os bolivianos são escravizados no Bom Retiro só porque são os mais recentes imigrantes. Mas o futebol ainda vive de fazer crer que o espírito brasileiro está na ginga do capoeirista; que o sul é um monobloco cultural separatista; que os bolivianos são os verdadeiros nativos da america latina e, como tais, cativos do poderio eurocêntrico.

Na terra em que brasões sempre foram exibidos para encobrir as negociatas e humiliações que as familias emigradas tiveram de cometer ou sofrer, esse é o verdadeiro espírito heráldico do torcedor.

O fantasma da pequena área (2\2)




4. O apelo comunitário do futebol - futebol e religião antes de 1960.

Mas se o futebol é como a religião, também a administração do futebol é (e sempre foi) como a das “repartições religiosas” – as igrejinhas e associações espiritualistas. A alucinação diária do torcedor não é sem fundamento. O próprio futebol espraia-se como instituição real. Sem deixar de ser um rito esportivo, mas tornando-se objeto de valor exatamente por isso, este jogo troca trabalho de fé por rendimentos.

Já trocava quando o Brasil ainda era uma feirinha de bairro e ainda troca agora que ele é uma loja de conveniência. Estou falando do dízimo, sim, que os ateus, os católicos e os orientalistas tanto criticam, mas também e principalmente de toda a estrutura de subsistência real da fé que é pressuposto mundano de qualquer atividade religiosa. Aos times de futebol antigos equivalem as irmandades e os terreiros; aos times modernos equivalem as grandes igrejas evagélicas atuais. Algum segredo nisso? Acho que não. Entretanto, a maneira como essa esquisita relação entre espiritualismo e futebol no caso do Kaká enerva a mídia e os torcedores "esclarecidos" tem algo de "secreto". Algo que a história do futebol (e do país) soterrou e que, de repente, vem à tona. O que será isso?


Vamos ao passado, então. E segure-se, coração patriota... Como se vivia a religião no Brasil antes da esmagadora ascensão das igrejas evangélicas? A nossa geração só vai se lembrar disso, lembrando como na infância as igrejinhas de bairro e as sacristias agrupavam o pessoal das redondezas em uma cultura comum. Vestígios dessa verdadeira rede de relações sociais de classe média sobreviviam nas barraquinhas de bingo e de tiro ao alvo das quermesses que hoje se realizam em pátios de igreja só por costume. Em meio às barracas de pipoca e algodão doce, entre uma e outra dentada no pãozinho com carne de panela, sempre aparecia Dna. Marta com uma rifa. E a vizinhança fazia o sinal da cruz esperando que a prenda fosse gorda. Função semelhante, acredito, desempenhavam (e, talvez continuem desempenhando) os terreiros e os sambas em bairros mais pobres, onde a vida religiosa, como no centro, nunca pôde se despregar dos pequenos empreendimentos. Mas como estamos, neste caso, nos anos 80, é claro que tudo isso já tinha a cara de diversão inocente, feita para esposas e crianças. E é claro também que a ela correspondia - como coisa mais séria e viril - o futebol.


Acontece que essa maneira "comunitária" de se viver a religião no Brasil não tem nada de gratuíta. Ela vem do abismo entre a cultura da elite e dos escravos, da separação entre o culto sério e o culto vulgar, do hiato entre a religião santa mantida às claras na capelinha do sinhô e a que sempre esteve imiscuída em negócios de providência miúda. Uma divisão que se tornou definitiva quando a igreja foi cortada dos assuntos públicos, processo que aqui nas nossas bandas foi levado à cabo pelo Marques de Pombal, ainda no século XVIII.
A hora era perfeita. Constatava-se o desenvolvimento do mercado e das camadas médias ligadas à mineração. Constatava-se igualmente que a igreja continuava suprindo essa nova gente de recursos e assim tornava-se mais importante do que a coroa - que só queria saber de derramas e outras extorsões. Ora, feito o desligamento, retirava-se da igreja a capacidade de articular a gente miuda das lavras aos bens de usufruto público que mais e mais ela iria reclamar. Não custa lembrar que a concessão esclarecida vinha depois de outras tentativas de pacificação menos sutis - como o esquartejamento do oligarca que, para pensar melhor, propagava ideais republicanos no Brasil colônia, Tiradentes.


Mas cortando a cabeça da igreja, nem por isso os membros deixavam de funcionar. Noutras palavras, sob a proibição da coroa, a religião como administração comunitária de benesses sobreviveu sob a forma daquilo que até hoje se pode constatar muito presente em Minas Gerais: as irmandades. Em que consistiam as irmandades? Em agregações filiadas santos padroeiros, por sua vez correspondentes a coordenadas "mudanas" como raça, pertencimento local, ofício, etc. A igreja não provia mais os filhos de mascates, tropeiros e mineiradores de escolas, mas a comunidade ainda sobreviva nas trocas de bens menores e outros socorros. Sendo menos neutro, as irmandades eram organizações que de maneira tão pouco declarada como a do Estado - só que nas esferas que o Estado já abandonava - tinham a função de "salvar e abandonar" conforme critérios de identidade e interesse próprios. Em suma, sob a base comum de crença, dentro da qual os grupos divergiam na interpretação do culto, a religião desenvolvia-se de acordo com as redes de identidades muito complicadas que se desenvolveram neste país multirracial e de contorno de classes pouco claros. E nesse contexto, a cada comemoração, as facções pugnavam em torno da salvação celestial, que, na prática, equivalia à ajuda mútua e a favoritismos. Daí porque, longe de compartilharem a riqueza, sob formas de juízos tão seguros e equânimes quanto o jogo e senso de solidadariedade cristã, as pessoas competiam pelos prêmios que, dependendo da situações, permitiam sobreviver ou desoneravam a renda incerta das lavras de alguns poucos gastos. É óbvio que quem tomasse maior parte nos negócios carolas garimpava às bênçãos mais generosas.
Pois bem. Acontece que a mesmíssima coisa, um século e meio mais tarde, dava-se em torno dos times de futebol de várzea. Alguns devem se lembrar da aura revestindo um tio ou primo que batia uma boa bola. No interior e nos bairros operários de São Paulo isso é muito frequente. Para os netos e bisnetos dessas potestades da várzea local de 1940, esses seres eram criaturas de exceção. Eles superaram as adversidade da má origem e ganharam a vida às custas do talento que Deus lhes deu, blablablá. Um pouco por isso, ainda em 1980, quando o filho nascia, cada família "torcia" para que o moleque fizesse pelo menos 30 embaixadas de olho fechado. Claro. A tal dádiva de Deus tinha um significado muito preciso: o talento do menino há pouco implicava também possibilidades na vida. As notícias de pobretões furando as condições e chegando a times de vulto internacional eram, obviamente, muito escassas; assim como havia sido um dia a distância entre a vendinha do seu Zé e, digamos, o truste dos Rothchild. Noutras palavras, como o capitalismo antigo não era internacional na escala que é, o futebol ficava na pequena escala que sempre ficou enquanto estava dividido como passatempo de grã-finos e cultura popular: como exceção, era caminho de intensa possibilidade de ascensão social (Garrincha, Pelé); como regra, era uma forma de gerir os restos da produção nas camadas médias e baixas. Mesmo no século XX, quando os grandes times começaram a se desenvolver, essa cultura local é que dava sentido ao grande espetáculo ouvido com fervor nos radinhos de pilha. E por isso, acompanhar o rito diário do grande futebol significava reforçar como legítima a outra prática: a das peladas semanais que, se botavam pouquíssima gente pra jogar com Pelé e Rivelino, salvavam muita gente de apuros e, principalmente, condenavam à mendicância e à cadeia um outro tanto.

Ora, é justamente essa base social nada romântica do futebol que sumiu de vista. Não só da consciência do torcedor como também da fachada limpa e apresentável do jogo atual. Neste exato momento, cada homem que veste uma camisa de time de bairro procura a iluminação súbita de seu craque multimilionário, cujos lances mais memoráveis ele tem gravado em cassete para os dias em que o mé não basta. E haja mé: se antes, exatamente como as irmandades, os times de várzea propiciavam ganhos a partir de uma disputa amigável por favores, hoje, o futebol de várzea (tanto quanto o profissional) não rende nada ao cidadão de classe média, rendo migalhas aos pobres e enriquece apenas aos grandes jogadores e aos empregados das sucursais internacionais da mídia (que vivem como cracas no queixo do tubarão). Aliás, exatamente como a igreja só rende mesmo aos pastores (e tanto mais quanto mais ruidosos e politiqueiros sejam e mais malas de dolares possas carregar para a Suíça).
Instalado como passatempo de sinhozinho, o futebol penetrou tanto no Brasil justamente porque, pouco a pouco, tornou-se um jeito de os pobres negros e a miserável classe média branca "agregarem valor". Valor aliás arrancado legitimamente de si mesmos (já que tinham e não tinham como sobreviver com um mercado interno tão escasso quanto o que havia no Brasil antes da década de 40). Era como o carteado. Era como o jogo do bicho, o lugar em que cada pobre diabo "fazia sua fezinha" e às vezes tirava a sorte... média. Com a modernização, essa pré-história do futebol-macumbeiro-jogo-do-bicho-semi-marginal foi obliterada. À despeito, é claro, de continuar acontecendo nos lugares em que a condição de vida é semelhante, sem os ganhos correspondentes. Nada contra, não fosse o fato de a pelada do fim de semana não salvar mais ninguém da pobreza. E isso é tão mais triste quando a gente percebe que seu lugar de providência foi tomado pelo terceiro setor e o narcotráfico, e o de despêndio, pelo crediário das Casas Bahia, esse esfolador barulhento.

5. O ebó moderno de Káká x a fúria independente do torcedor esclarecido
Dito isso, o que tem Kaká a ver com toda a historia?
Pois bem. Marcelinho carioca era crente, muitos jogadores são crentes. Mas quando Kaká - jogador branco, criado no São Paulo e parecido com o boneco Ken - acende uma vela para seja lá qual for sua igreja, ele está mexendo nas regras do futebol esclarecido. Não só nas do espetáculo maroto de todas as noites (cujo horário a Globo determina), como também nas da própria indústria futeboleira. O caso não chega a ser grave, mas é suspeito. Ronaldinho com suas noitadas transsex provocou piadas, mas não conseguiu semelhante façanha. Pois, diferentemente dele, Kaká não só se presta como imagem (ou "santinho") para um comercial da Nike, como também está trazendo para o seio do futebol contemporâneo uma prática escancaradamente arcaica, duvidosa. Se o país fosse o mesmo, alguns milhões de suas contas bancárias estariam - ou só na imaginação dos torcedores estariam - tirando famílias da pobreza. Mas como a religião e o jogo populares já não têm o poder que tinham antigamente, quem leva seu bocado é uma outra indústria que não produz nada além de esperança para os pobres. Essa religião é que o assinante da Placar ataca. Primeiro, porque ela não rende nada a quem já anda a perigos. Segundo, porque a esquisitisse arcaica traz reminiscências da sobremesa cavada a gols pelos mais velhos...

O poder de choque disso só podia ser muito maior do que o da quebra de qualquer tabu sexual por um jogador excêntrico, já meio gordo e, ademais, menos branco. O ebó moderno de Kaká é forte demais. Suas preces e seus milhões correndo para o bolso dos gangsters da salvação fazem com que o público pagante e assinante da ESPN torça o nariz vendo ali, bem diante dos seus olhos, aquilo que com muito custo foi reprimido pelos seus ascendentes justamente a fim de que, para seus filhos, o futebol pareça ser isso que parece ser hoje: uma diversão democrática e a laica. O susto com as demonstrações públicas de fé vem, é claro, para reprimir qualquer tipo de aproximação entre o passado do futebol e as teatralidades correlatas que os crentes pobres da Universal de Deus fazem em pequena e desesperançada escala. E o ranço que recai contra isso é o ranço de gente que não gosta de ver um costume de pobre invadindo aquela que essa mesma gente cinicamente considera a mais democrática das diversões modernas. As caríssimas camisetas oficiais, o canal de assinatura com cobertura completa, as alas vips, as copas mundiais, bem como a discussão com peritos existem exatamente para manter bem estabelecida a distância

6. Epílogo - fim do fairplay ou Pai, se me abandonares ao triste 0 x 0, eu ainda com mais sofreguidão te servirei.

Faz sentido. Se o torcedor, hoje, sob a desculpa de cultivar um hábito querido, procura distintivos de classe que o comprovem como um torcedor mais competente, é justamente porque, tanto quanto os menos competentes, ele já não pode tirar a sorte miúda na "caixinha de surpresas". Nem daí, nem do truco, do poker, da cacheta, do bingo. Em certo nível confuso de sabedoria, todo torcedor sabe disso e enxerga no futebol uma dessas forças que magicamente fazem com que a violência instituída se justifique quanto mais lhe favoreça o livre usufruto do roubo coletivo e menos lhe pesem os desconfortos de consciência decorrentes. Tomando a forma de jogo, isso não tem mal nenhum. Alí, em terreno sublimado, cada um pode dizer que quer ver os outros chafurdarem na derrota e assim gozar as glórias de ser campeão.

É assim que o futebol tem funcionado no Brasil, desde sempre. O problema, no entanto, começa a aparecer quando a dificuldade da salvar-se da miséria geral já está tão forte que já não permite que o torcedor confie apenas em seu amor pelo esporte. Esse, desde que a indústria fez do futebol um sítio de pequária intensiva, já não proporciona por si só grandes emoções. Ou então, a gente poderia dizer que os sufocos da situação de subemprego e desemprego superam-nas, obrigando o dito cujo a esforços de fanatismo displicente que nem mesmo seu avô compreenderia. Consequentemente, o amante de futebol, em nome de manter acesa a chama, precisa cada vez mais se recobrir da aura de destreza e determinação com que a propaganda reveste os craques de futebol. A contemplação distante do espetáculo se torna tão mais imperiosa quanto mais seu subtexto obsceno ameaça romper à luz do dia. Justamente por isso é preciso relativizá-la, encurtar imaginariamente a distância, fazer com que cada um, conoisseur ou não, tome parte no campo, leve às ruas as cores do time amado. Esse é o trabalho realizado pelo merchandise, que estende sob preços diversos até ao mais comum dos mortais badulaques futebolísticos.

Exatamente por essa democratização compesadora da imagem do futebol, seu caráter de luta baixa vem à tona. Quanto mais o torcedor compra gato por lebre, mais a imagem arrojada e bela do passado futebolístico - cuja força vinha da imagem de belos corpos atléticos constituídos como que espontaneamente - reverte-se no seu contrário. Um breve passeio pelas ruas em épocas em que o futebol não é uma histeria geral demonstra que a preferência por adereços de futebol desponta nos "manos" de subúrbio (não os de verdade): nos filhos de donos de microempresas. A pletora das bandeiras recobre preferencialmente hoje essa diversidade de lumpen-classe-média-baixa que não esconde a disposição de ir às vias de fato nem mesmo quando fala. Só neles a camisa veste bem - não no playboy que conhece todos os resultados de jogos desde 1930; não no moleque de rua que ostenta no peito a marca adidas. Neles, os que, recém-emersos do abismo, para não cairem de novo no fundo do poço, praticam a violência vulgar que nos demais toma a forma de assaltos ou de finas ironias. Ora, exatamente por isso, a imagem do futebol como um todo evoca a figura que constitui o maior pesadelo de tal espécime: a dos aposentados e desempregados que lotam as praças de subúrbio com suas velhas caixinhas de dominó - a inadequação da imagem residindo apenas no fato de que uns, cientes da própria situação, já perderam a voz e outros, na esperança de algum olheiro divino ou de ensurdecer o vizinho, ainda gritam.

Disso tudo se tira o seguinte: as esperanças que eram remediadas no futebol de várzea antigo de fato sobrevivem na torcida pelo futebol high-performance, mas como um fantasma. E esse, justamente, é que é o seu demoníaco sentido político. Um sentido que só tem na religião sua melhor expressão porque a religião nada mais é do que a protoforma reprimida da política moderna, precisamente a que medrou nos países em que a desigualdade extrema instalava os pobres e as classes médias como marginais da vida pública. Como se sabe, em contexto diverso, a religião era a forma de política que predominava na Europa, antes que a famigerada burguesia, uma vez completamente instalada no poder, inventasse a primeira estratégia de dominação baseada no consenso consciente dos dominados: a democracia.

Pensando nisso, a gente poderia dizer que, encantado com o jogo que já não tem nada de magia e desesperado com o risco de tornar-se um derrotado, é justamente a favor dos dribles que a vida dá na sua consciência de cidadão abandonado e de peça sem valor no mercado de trabalho que o torcedor grita "gol".

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Ainda sobre Guimarães Rosa: notas sobre o conto “Nada e Nossa Condição”, ou a utopia presente.

Só para complementar o post anterior sobre Guimarães, baseado em uma conversa que tive com um amigo, gostaria de deixar anotado aqui algumas reflexões para um aprofundamento posterior, talvez um futuro texto mais arredondado. É certo que tratar Guimarães como um escritor de direita é um reducionismo, e que os caras que assim o fazem sabem disso, tanto que não publicam coisas nesse sentido, só comentando em certos eventos, aulas, conversas de corredor… Mas é certo também que o fato de existir certo “silêncio” – que alguns críticos mais novos vem tentando romper – em torno do autor, por parte dos críticos dialéticos, demonstra que existe uma questão real, de difícil elucidação a partir de um paradigma marxista-dialético.

No conto “Nada e a nossa condição”, do Primeiras Histórias, vemos a personagem de Tio Man’Antonio, um fazendeiro escravista, ser elevado à condição de herói mítico. A partir de um paradigma machadiano, essa admiração seria desconstruída, seguindo o modelo do cunhado Cotrin, que é admirado por Brás Cubas como modelo de grande homem, tanto no espaço público quanto no privado. Mas a admiração de Brás é construída por Machado de forma a deixá-la insustentável: ao admirar Cotrim como um excelente pai de família e ao mesmo tempo, por seu trato “vigoroso” com suas propriedades, os escravos, Machado a um só golpe desmonta a barbárie da escravidão, os vínculos perversos das relações patriarcais, a conivência dos poderosos com nosso atraso, e ainda sobra para o leitor que cair na armadilha.

No caso de Guimarães, não temos esse distanciamento. Tio Man’Antonio é admirado mesmo, de fato. E isso sem ocultar suas relações com o escravismo. Ele é tomado como uma figura algo mítica e positivada enquanto tal. A literatura rosiana não se contrói a partir da denúncia das relações sociais, do cálculo por detrás das aparências. Isso aparece, mas não é o centro da composição, como no caso do Machado, em que esse é o conteúdo mesmo da idéia fixa. Mas o que, afinal, se admira em Tio Man’Antonio? Ele é simplesmente um senhor de escravos, e o que se admira nele é esse poder? Caso a resposta seja negativa, como então é possível admirar uma figura dessas, a partir de qual perspectiva torna-se viável sua mitificação? A resposta é óbvia e ao mesmo tempo altamente complexa: Tio Man’Antonio é e não é um fazendeiro escravista. O processo em questão não consiste exatamente em elevar o fazendeiro à condição de herói mítico, mas lidar com um fazendeiro que é também herói mítico. Concentrar-se radicalmente nesse lugar em que uma coisa aponta para outra sem negar-se, eis o ponto em que Guimarães é imbatível.

O conto trata do trabalho de luto de Tio Man”Antonio que, após a inesperada morte de sua esposa – dando notícia da chegada inevitável do Anti-Sujeito - centra sua vida na administração dessas perdas. Ele é admirado pelo narrador porque ao fim sabe dar um sentido para essas perdas, torna-se em grande medida senhor delas, de seu destino. Aceita o caminho irrefutável para o fim e torna-se destinador de si próprio. Ao final, ele mesmo se morre, vencendo o grande mistério ao aceitar a condição de fugacidade da existência, e preparar sua permanência no mundo, sua perpetuação da maneira que é possível. Tio Man’Antonio encaminha o futuro de suas filhas, depreende-se delas e as direciona ainda em vida, e também dá um sentido para a perda da suas propriedades. Diante da perda inevitável do processo de existência, o viver para a morte, Tio Man’Antonio resolve administrar essas perdas, eliminando em vida o caráter de surpresa da morte. É ele quem pega a morte de surpresa, ele é quem irá controlá-la, aceitando-a em sua radicalidade – bem distante da concepção de assepsia moderna, em que podemos controlar nossa morte, afastando-a de nossas vidas. “Até que, ele, defunto, consumiu-se a cinzas – e, por elas, após ainda encaminhou-se, senhor para a terra, gleba tumular, só; como as consequências de mil atos, continuamente”. Tio Man’Antonio é admirado porque aprendeu a não ser, dando um sentido “Faz-de conta, minha filha, faz de conta” para sua experiência a partir de seu não direcionamento.

A forma dessa permanência não é escamoteada por Guimarães – o fazendeiro “doa” sua propriedade para seu ex-escravos mas, e esse é o ponto, não sai do lado deles, não permitindo que eles façam dela o que quiser – como vender – de modo que agindo no presente, ele perpetua a sua influência até o futuro. Ele quer determinar não só o seu futuro, mas o futuro de suas propriedades – extensão de si. E apenas um senhor poderoso tem condições de fazer isso, o que Guimarães não ignora ou oculta. Aqui coloca-se o ponto delicado: para os que conhecem a história do Brasil em seu lado perverso, sabe-se que essa permanência do passado, a famosa modernização conservadora, é causa direta da tragédia nacional. O país que avança sem avançar, a sociabilidade criada a partir dos limites, nas brechas, em tudo isso pode-se ler a miséria brasileira. Imediatamente, dentro dessa perspectiva, se coloca a questão, bastante adequadamente: ao exaltar a permanencia do passado do presente, o indefinível entre o eu e o outro, o entrelugar, não estaria Guimarães louvando a nossa tragédia, e elevando nossa miséria a categoria de exaltação, ao invés de crítica? O mito das relações pacíficas do país, da cordialidade em sentido positivo? Como pode Tio Man’Antonio ser um herói se seu projeto consiste em fazer com que seus escravos não sejam senhores de seu próprio destino? A resposta não é simples – também não resolve o problema, e meu amigo está certo, dizer que Guimarães é de esquerda – e envolve muitas dimensões da obra rosiana, a começar da linguagem, mas acredito que a resposta passe pela consideração de que todo o universo rosiano existe enquanto possibilidade no interior do concreto, sem nunca vir a ser completamente, ao mesmo tempo em que possui concretude quase sensorial. Tio Man’Antonio não expressa o mundo que existe, ao mesmo tempo em que só pode existir nesse mundo. É o nosso real enquanto virtualidade. Não é o fazendeiro e a barbárie do sertão que se admira, é o que nela, e tão somente nela, está inscrito enquanto possibilidade de redenção, ou de ser um outro.

Guimarães Rosa não ignora as contradições da realidade brasileira, ao contrário, as trata minuciosamente, com riqueza de detalhes. Não oculta as diferenças entre as classes - o narrador do Grande Sertão: veredas é herdeiro, letrado, e macomunado com o doutor e o leitor, existe claramente um lado vencedor, que se impõe por sobre os outros e do qual participa o literário; tio Man’Antonio não tem o mesmo estatudo de seus escravos: o tempo todo são marcadas essas diferenças sociais no universo rosiano, é um universo em constante tensão gerada a partir daí. Nada daquela visão humanista conciliatória que procura romper com as diferenças sociais, em Guimarães os homens não são iguais. Ao contrário, seu olhar vai se especializar em aprofundar a compreensão da diferença, a tal ponto que esta pode inclusive tornar-se o seu oposto, o que não raro ocorre. Toda denúncia da barbárie da jagunçagem está em Guimarães para quem quiser ler, mas o que o autor procura não é fazer uma denuncia direta (embora isso esteja lá também, a conciência da necessidade de se negar ambos os pólos, e a específica relação brasileira entre ambos) do atraso ou da modernidade. Ele procura sim se concentrar na negação daquilo que se apresenta no momento mesmo em que é visto, ao ser encarador de perto, assumindo outra forma que lhe nega os contornos e determinações. O maior equívoco crítico é considerar que a fusão promovida por Rosa tem o intuito de apagar as contradições, quando na verdade toda sua operação consiste em levá-las as suas últimas consequências, até o ponto em que elas se perdem de si e revelam outras dimensões.

Uma de suas questões, por exemplo, é encarar o espaço em que o mítico se une ao racional. Seu mundo une assim, radicalmente, macumba e critianismo. Para criar essa fusão, entretanto, ele parte de um lugar já constituído no mundo, por exemplo, o kardecismo. Ele não vai criar um outro espaço, inexistente. Mas vai radicalizar a tal ponto essa fusão que o kardecismo já não se sustenta enquanto tal, sendo um espaço de contradição permanente, e não de apaziguamento. Em suma, será um outro kardecismo, mas que parte do que existe, é o que existe radicalizado. Dessa forma, ele cria outro mundo, mas estreitamente vinculado com o nosso, é o outro dentro do já dado, uma espécie de utopia concreta, tão reveladora quanto a distopia Machadiana. Uma utopia com cara de Brasil, quase um país radicalizado.

Isso faz com que o autor, ao mesmo tempo que não ignora a face social, procure em seu interior, aquilo que dela escapa, enquanto possibilidade. Ou seja, aquilo que, sem ser outra coisa, é o outro, aponta para o outro. Aquilo que está e não está no real, enquanto possibilidade, aquilo que na lógica brasileira aponta para um outro espaço de constuição dos sujeitos, um espaço que não existe concretamente, mas que, ao mesmo tempo, depende absolutamente do espaço local para se constituir. Uma utopia que só pode ser brasileira. A terceira margem do rio só pode existir em um rio brasileiro, é um universal, mítico, que é local. O sertão é o mundo. O Brasil de Rosa é o país enquanto potencialidade, não é que o que existe é bom e justo, mas o que é que possa vir a existir de bom e justo só pode surgir daquilo que aqui está dado. Um lugar que não é ainda, um espaço em que inclusive nossa linguagem – a base de constituição do ser e do mundo – precisa ser absolutamente reestruturada, mas cuja reestruturação só faz sentido e só pode realizar-se a partir daqui. O paradoxo que institui a obra rosiana é ser o mais bem feito e minucioso registro etnográfico da literatura brasileira, ao mesmo tempo em que nada em sua linguagem, sequer a própria linguagem, existem.

Desse modo, a aceitação do negativo em si – tema de Nada e Nossa Condição e de Rosa no geral - é o caminho para a aceitação do outro em relação ao eu. Caminho que na literatura rosiana só pode acontecer em um espaço em que as relações sociais se dão ao redor do espaço simbólico das leis, sem nunca alcança-las em definitivo, conduzindo a uma indiferenciação – perversa e amistosa, cordial – entre eu e outro. Em suma, só pode acontecer aqui e agora, mas num espaço outro do aqui e agora, como naqueles livros de ficção científica em que cada momento da realidade possuí um universo paralelo próprio, que só adquire consistência em sua relação com esse real, numa multiplicidade infinita de universos, tantos quanto são os momentos da realidade.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

A ORIGEM - quando a estrutura faz perder o essencial

A ORIGEM - Tinha tudo pra ser bom, mas... Quer dizer, não que não tenha coisas boas no filme. Eu assisti lembrando daquela cena do Amadeus em que Mozart explica pro rei, perplexo, por quanto tempo ele conseguiria introduzir novos personagens em uma cena de ópera. A Origem faz isso que melhor que nenhum outro filme que eu lembre.
Não se trata de montagem paralelas, isso tem de monte no cinema, mas de rupturas que rompem com a sequência narrativa e lhe imprime novas camadas de significação. Como se o diretor perguntasse pra nós: quantas novas narrativas eu sou capaz de fazer voce engolir sem que (e isso é importante) se rompa o fluxo de temporalidade radicalmente, em negativo. Ou seja, para que continuemos em Hollywood, e não passemos para Godard. Para que seja um filme do gênero assalto, sem tornar-se cinema experimental. E são muitas as camadas envolvidas, de fato... a melhor eu acho que é a relação estabelecida com o cinema, como no fundo todos os efeitos e enredos milaborantes não passam de uma forma de introduzir uma idéia bem simples em nosso subconsciente, encomendada por um megaempresário poderoso. Essa é boa porque não aparece tão mastigada quanto outras, mas diluída na própria ação do filme.

O problema do filme é justamente que, para sustentar sua arquitetura faraônica e mirabolante o diretor tem que chamar a atenção para ela, a estrutura, incessantemente. Tem que repetir o filme inteiro que a mente que adentramos é na verdade do Di Caprio, que é ele tentando superar um trauma. Os demais personagens acabam se tornando rasos, mera engrenagens, dispositivos que fazem caminhar o talento egocentrico de Nolan, que se sobrepõe à obra. A arquitetura do filme é sobrevalorizada, colocando em segundo plano o conteúdo. É só comparar a falta de carisma e profundidade dessas personagens (mesmo Di Caprio é menos profundo que o esquema em que se envolve) com as do Cavaleiro das Trevas, em que a grandeza do enredo de ação contribui para aprofundar ainda mais a relação de complexidade entre as personagens. No caso da origem, todos são coadjuvantes. Daí o paradoxo da estrutura ser complicadíssima ao mesmo tempo que esforça-se por tornar óbvia as camadas de profundidade e relações feitas, sem deixar espaço para um questionamento do expectador. O filme é um quebra cabeça estrutural (muito bem feito, e que tem sentido, ao contrário do que andam falando), que ao ser resolvido deixa tudo como está. De novo, bem diferente do coringa, um ponto de vista que não pode ser levado até o fim pela Indústria.

O problema estrutural básico do filme é que à complexidade radical da forma não corresponde uma complexidade de conteúdo, ou ainda, a complexidade formal só se sustenta por uma atonização do conteúdo. A forma que Nolam escolhe para manter o expectador por dentro do que está acontecendo sem se perder é deixar por demais evidente o que está acontecendo. O óbvio ululante, um quebra cabeças de mil peças, mas que ao final é uma imagem do cebolinha com a mônica, exagerando um pouco. Ele se prepara para questionar a estrutura do cinema, mas produz um espetáculo grandioso em que o sujeito (no caso, Nolan), em sua forma espetacular é celebrado - de novo, não é por ser um filme hollywoodiano, o Cavaleiro das Trevas também é e consegue ser bem mais questionador, sem deixar de ser o mais empolgante filme de ação do ano. A Origem não consegue se decidir. Não que não existam surpresas, o filme é feito de surpresas, mas essas são preparadas por um caminho bem posto, tranquilo até certo ponto. Algo do tipo, ó aqui parece ser só ação, mas também tem a questão psicanalítica, viu, olha aqui a mulher reprimida. O filme peca por didatismo em vários momentos, por personagens que tem função didática, por um enredo que também mantem, apesar de tudo, certo didatismo: o chato do Di Caprio tentando superar seu próprio trauma, do jeito mais mirabolante possível.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Dois clássicos do Folk

Nessa época o engajamento conseguia produzir algumas belíssimas canções, como se a promessa de um mundo melhor se realizasse formalmente quando o sujeito retoma as rédeas de sua vida, quando com um violão e uma idéia ele podia revelar pelo canto a imagem de um mundo melhor. O que sem dúvida era uma ilusão mesmo naquela época consegue no entanto extair força estética por conta do momento histórico vivido, que iria eclodir com toda força na época da contra cultura. Depois do movimento punk, a crítica social mais direta que não é agressiva parece trazer certa imaturidade, ou irresponsabilidade. Vivemos a época do RAP. Esse disco do Simon e Garfunkel é o primeiro em que eles conseguiram de fato cuidar de todas as partes da produção, que aliás, é impecável, com arranjos belíssimos, dando destaque e em interação perfeita com as vozes. Paul Simon tem algumas melodias maravilhosas, e a dupla conseguia criar arranjos vocais excepcionais, e caminhar por inúmeros estilos diferentes. Uma jóia dos anos 60.

SIMON AND GARFUNKEL - PARSLEY, SAGE, ROSEMARY AND THYME (1966)

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Já esse disco da Joan Baez é de uma outra beleza, mais direta. Afinal, nesse caso os Beatles ainda não haviam lançado seu Rubber Soul, nem Zappa surgido com seus Mothers of Invention, nem Bob Dylan tinha reformulado o conceito de folk music para sempre. Somente voz, violão, e um encanto juvenil que recupera a tradição de uma forma pungente. Toda a base do movimento hippie está aqui, sem ser ainda ostensivamente engajada (apesar de rolar até música em castelhano, ao final, o que já revela o que está por vir). Uma obra prima do folk, um relato de geração, e toda imagem de um mndo singelo que o movimento hippie almejou conquistar, naquilo que ficou mais próximo de sua realização estética.

JOAN BAEZ - JOAN BAEZ (1960)

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segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Guimarães Rosa e a Esquerda Desconfiada


Guimarães sempre foi um problema pra certa parte da esquerda. Sem dúvida, ninguem tem coragem de afirmar seriamente que ele não é um dos maiores escritores em língua portuguesa de todos os tempos. Suas estórias conseguem o feito, extraordinário para literatura, de marcar o imaginário com imagens e causos que permanecem mesmo quando não lemos – a dualidade de Diadorim, o singelo Miguilin, a terceira margem do rio. São causos que conseguem recuperar, literariamente, o encanto das narrativas orais, fixando-se na memória através não só de seu conteúdo mas, especialmente, de sua forma. Elas se fixam porque não são construídas apenas imagéticamente, conceitualmente, mas fazendo apelo também à materialidade da palavra, ao sensorial. A palavra em Guimarães encanta, é-canto. Gera paixão, como certas canções que nos marcam. Esse efeito é fruto de uma conquista não ingênua, árdua, da palavra-encanto que se constrói na negação de si, no limite aonde se torna outra coisa. Uma crença que ao mesmo tempo desconfia profundamente da palavra, um culto que a dissolve. A canção combina melodia e fala para gerar esse híbrido que enfeitiça; a palavra rosiana forma o híbrido torcendo-se a si própria. O elogio ao limite é, em primeiro lugar, isso: a busca do lugar aonde a palavra não diz, o lugar de encontro com o outro, a irredutibilidade do sujeito na palavra, o que escapa a toda determinação. Metafísico, talvez. Misterioso, com certeza. Mas um mistério solar, musical, não um louvor ao obscurantismo. Esse é o hermético, o Hermógenes, o que tem de desaparecer.

O que incomoda a essa leitura de esquerda é principalmente a positividade do autor, que gozaria no "limite", naquilo que constitui nossa tragédia, sendo portanto motivo de crítica, e não de júbilo. O problema é que essa mesma esquerda - em que se encontram alguns dos melhores críticos do país - percebe que Guimarães não é reduzível a um mero movimento ideológico: colocá-lo à direita nesse caso é bem pouco esclarecedor e não resolve absolutamente nada. O autor fica assim, como que pairando num limbo, sem ser assumido nem rejeitado integralmente. É como se sua obra sempre apontasse para mais, para o além, como se todo diagnóstico fosse insuficiente, porque seu tema, no fundo, é a insuficiência, é o que falta, e o que está ali mesmo, no faltante. Uma teoria do signo, da sua musicalidade, da sua constituição a partir da falta.

Isso cria certa dificuldade para a boa crítica sociológica de esquerda que quer pensar na história como “causa ausente”, e ao mesmo tempo, conseguir em certo sentido mimetizar a forma artística. A história na forma. Schwarz faz isso com Machado, ele escreve em parceria com Machado, a ponto de conseguir se fundir ao autor - o Bentinho e a Capitu são do Machado tanto quanto do Roberto Schwarz. Como fazer isso com Guimarães sem girar em falso? Um dos problemas é que Rosa não tem a paixão do negativo, ou antes, existe um ponto em que sua negatividade cessa em nome de outra coisa, como nas “Margens da Alegria” e no “Espelho”. Mas a dificuldade também está em não ser possível tachar o que, afinal, é esse ponto, sem correr o risco de reducionismo. Pois esse ponto é justamente o que não se reduz, o encontro com o mistério, o ponto de fuga que permite considerar o lugar onde as coisas não se realizam, encontram-se enquanto projeto e potência. O que parece um argumento mitificador nesse caso tem uma funcionalidade analítica bastante prática.

Para certa crítica, essa indefinição é justamente o que definiria o Brasil, a incapacidade e irredutibilidade de ser um e ser outro. Essa conjunção híbrida é, de fato, terrível, e responsável pela nossa desgraça enquanto projeto de civilização, o reconhecimento prático da impossibilidade desse processo de modernização. Encarar essa "lógica dos limites" como elemento de positividade, tipo Gilberto Freire e, a princípio, Guimarães Rosa, seria uma forma de ocultamento, transformação da miséria em sucesso, da dominação em mistério. Pois bem. A dificuldade, no caso específico de Rosa, está em não ser possível afirmar, sem certa dose de má-vontade, que ele ignora esse aspecto da questão. Em Grande Sertão: veredas, por exemplo, temos inúmeras cifras de ambiguidade, assim como pólos de oposição. Zé Bebelo, o agente modernizador mais clássico, parente próximo do advogado do Homem que Matou o Fascínora (filme de John Ford). A imposição da modernidade na marra, o estado nação, ainda que populista. Uma ficção irrealizável fadada ao fracasso. Por outro lado, o O, o Canhoto, Aquele-que-não-se-ri, o Hermógenes, o hermético, a pura barbárie, que deve ser destruída. Nenhum desses dois pólos, no campo das certezas, são escolhidos por Rosa. Nenhum nos revela enquanto ser e nos cabe enquanto país. O que resta, pois, modernização conservadora?

Os dois grandes centros de ambiguidade do romance, Diadorim e o próprio narrador, Riobaldo. Pode-se dizer que Guimarães simpatiza com os dois (assim como Riobaldo), mas sem ignorar que um deles morre, e o outro se torna proprietário. Diadorim morre, enquanto Riobaldo, herdeiro do latifundiário Selorico Mendes, sobrevive pela força e pelo saber, um saber que se formaliza enquanto pacto. O amor, que dissolve oposições rígidas, que confunde o eu no outro, não muda esse dado. O projeto de racionalidade de Riobaldo é kardecista, a racionalização da macumba, que não serve para colocá-lo num patamar de igualdade com o doutor que escuta, mas é o suficiente para distingui-lo no interior do sertão. É o que tem pra hoje, e tá mais que bom. O caso é que Riobaldo não é simplesmente "exaltado" por Rosa, sua ambiguidade é de tipo e matiz diferente, e não serve para unir todos os homens num sertão universalista. O pacto com o negativo serve para ele como instrumento de dominação dos outros ambíguos do mundo. Aliás, os conflitos de classe serão tematizados todo o tempo por Guimarães, assim como os de gênero. Sua narrativa é um conjunto de conflitos, o reino da jagunçagem, com perdedores e vencedores bem localizados historicamente. É isso que nos diz, mas não é isso que nos salva.

Não se trata de um simples louvor da ambiguidade, mas talvez do mais profundo estudo sistemático das formas possíveis de ambiguidade em uma multiplicidade de contextos, com sua negatividade e, também, suas positividades, que existem, a depender do ponto de vista, e não necessariamente de direita. Existe de fato uma crença, traduzida em simpatia, mas também uma profunda lucidez. O leitmotiv “o sertão é o mundo”, não significa que o sertão é universal, que tem Hegel no sertão, que o caboclo é igual ao doutor, que o conflito une os dois ao invés de separar radicalmente. Algo do tipo, todo mundo é humano, como se este conceito não fosse uma construção bem localizada. Seu significado latente é mostrar justamente os limites dessa construção quando posta em contato com a alteridade irredutível. Como Maria Exita e o fazendeiro - uma história de amor entre patrão e empregada no conto “Substância”- o amor não rompe as amarras sociais, e a união se dá pelo negativo. O polvilho é a marca da separação, da diferença, que une sem apagar a separação, por meio desta – mesmo em momentos mais utópicos como neste conto, mais fraco que a média inclusive. "O sertão é o mundo" significa que o narrado não é o sertão, é outra coisa que não se narra a não ser negativamente, um espaço que não se diz literariamente, que não se representa. É ponto máximo e falência do projeto literário como um todo. O fracasso de virar outra coisa, e o sucesso relativo de ser só aquilo. O projeto de Guimarães revela que o que ele propõe (literatura?)não se realiza literariamente, não se realiza via cultura Ocidental. Nessa, os lugares já estão marcados.

Por outro lado, Guimarães não é negativo como Machado. A ambiguidade permite que ele narre, que ele construa histórias que adentram o imaginário quase materialmente, com o corpo. Por isso a força de encantamento quando se lê Guimarães em voz alta, ao mesmo tempo que é o mais distante que poderia haver de uma narrativa oral. No mais distante da espontaneidade ele alcança o encantamento do espontâneo. Encantamento soa para esquerda como mitificação. Nem sempre é assim. O encantamento não rompe a fratura social, ele pode se realizar em seu interior. Digamos, como um gol de Pelé que fica no nosso imaginário. Não é a esperança de que o Brasil pode dar certo, ou pior, de que já deu porque temos esse gol, que encanta. O momento se realiza nas fraturas do país, encanta por ele e apesar dele, é a revelação do mal no bem. É a potência de um país de merda que se esgota nesse Acontecimento porque o país é de merda. Não é um viva, é um protesto na forma de gol. É a presença e a negação dos pretos, ao mesmo tempo, sem inocência, mas também sem cegueira. É a lembrança de que o país não presta, porque não sabe como transformar o mistério (uma das formas do outro) em positividade. Não que a obra de Guimarães equivalha a um gol, mas é uma das mais profundas reflexões sobre o porque da literatura não conseguir ser um gol. E sim, é uma tentativa do autor de suplantar essa condição, mas sem considerar que esse seja um feito possível. A linguagem em Guimarães tem dono – um Famigerado dono. Mas uma posse também fadada ao fracasso, fraturada, marcada pela (porque não?) volubilidade.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

A Potencialização do Frágil: Bloco do eu Sozinho e Ventura, do Los Hermanos (1\1)


O artigo sobre o novo comercial da Renault me inspirou a escrever esse texto sobre o Los Hermanos, que eu acredito servir como complemento para as questões ali levantadas. Isso porque a meu ver o grupo também coloca em cena o mesmo tipo de subjetividade exposta e afirmada pelo comercial enquanto ideologia – a do vencedor derrotado, aquele que cinicamente aceita não mais ser um herói, tomando a fugacidade da forma mercadoria enquanto norma e novo padrão – mas para, a partir daí, construir uma postura mais crítica em relação aos valores tidos como “vencedores”. A fragilidade é um elemento de problematização, e não de ostentação.

Na verdade, esse posicionamento foi uma conquista gradual na carreira da banda. No seu primeiro disco, de maior sucesso, o que predominava era uma variação do mesmo esquema ideológico do comercial, que pode ser observada no maior sucesso do grupo, Anna Julia (que é uma boa canção passional).
Nunca acreditei na ilusão de ter você pra mim\ Me atormenta a previsão do nosso destino \ Eu passando o dia a te esperar \ você sem me notar \ Quando tudo tiver fim, você vai estar com um cara \ Um alguém sem carinho \ Será sempre um espinho\dentro do meu coração.
Esse sujeito passional e passivo da letra toma forma em uma estrutura musical retro, que repõem o esquema do rock clássico a la Beatles ieieie (a coroação máxima foi a regravação em inglês da canção pelo próprio George Harrison, o que não é pouca coisa). A propósito, essa é uma típica postura emo: aceitar afirmativamente um novo tipo de subjetividade fragilizada – o homem pós-moderno – mas sem alterar padrões já consagrados da superestrutura. O sujeito muda de atitude, como no estágio heróico do punk, mas essa nova revolta (agora literalmente passiva) vem embalada no velho esquema de sempre. Sua razão de ser é a reprodução da mesma forma. O significado de ser emo está tanto em chorar como em consumir os estilos fashions que vão se reproduzindo, na mesma proporção. Aliás, mesmo o sentimentalismo tem uma óbvia conotação fake, facilmente identificável nas lágrimas falsas que fazem parte do figurino, juntamente com o piercing no nariz ou na boca e o cabelo style.
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É disso que foge o grupo, apesar do Camelo não dispensar assim tão fácil

Com o lançamento do Bloco do eu sozinho, disco de 2001, as coisas começam a tomar novos rumos na vida do grupo. Já a música de abertura do álbum anuncia a transformação
Toda banda tem um tarol, quem sabe eu não toco \ Todo samba tem um refrão pra levantar o bloco \ Toda escolha é feita por quem acorda já deitado \ Toda folha elege um alguém que mora logo ao lado \ E pinta o estandarte de azul \ E põe suas estrelas no azul \ Pra que mudar?
A primeira mudança significativa é uma tomada de consciência da própria sonoridade, expressa pela letra (postura típica da Bossa Nova e certa vertente da MPB, daí a aproximação de Camelo e Amarantes com o gênero, e uma das causas estruturais da dissolução do grupo). Essa percepção revela uma preocupação com o estabelecimento de uma relação mais orgânica entre forma e conteúdo. A nova atitude não pode vir ancorada nos velhos esquemas. Esse novo sujeito que ao invés de brincar e pular no carnaval prefere contemplar o seu fim, será agora expresso por canções que rompem com o grau de certeza do hardcore pop emo. Agora o padrão não é mais os Beatles, do surgimento do pop, mas o samba e outras bossas. Só que um samba sem refrão, percussão, roda ou sambista. Pois afinal:
Quem se atreve a me dizer do que é feito o samba? \ Quem se atreve a me dizer?
A identificação com o samba não se trata de uma simples reverência, mas tem por função manter a ambigüidade das canções, característica que irá marcar toda essa nova fase do grupo. Pois é óbvio que não estamos diante de um grupo de samba, mas tampouco se trata de um grupo de roqueiros descendentes do rock clássico. O sujeito derrotado vai ser agora aquele que se recusa a aceitar classificações fáceis e a se delimitar em um estilo ou categoria. A aceitação da derrota se converte em recusa contínua, que toma forma estrutural nas canções. Ser derrotado é estar à parte do mundo, e não tranquilamente inserido como na fragilidade emo. Em “A flor”, por exemplo, o triangulo amoroso se confunde até o ponto em que as identidades não podem mais ser facilmente reconhecidas. A canção começa com uma introdução meio capenga, para em seguida anunciar um hardcore convencional. Mas a partir daí a flor vai confundir todos os protagonistas até o breque que se anuncia em forma de samba. Definitivamente o grupo saiu do esquema pop hardcore.
Em “Retrato pra Iaia”, outro semi-samba tímido latinizado, a melodia faz um caminho inusitado – o grande talento de Amarantes - que sempre rompe com a linearidade esperada, especialmente no refrão. “Assim será” se constitui a partir da quebra de expectativa dos momentos de ênfase da melodia e do acompanhamento, que se mantem até o final. O rock mais pesado se anuncia e se retira continuamente, de modo que o lamento do sujeito nunca é levado até o limite. Sua subjetividade é interrompida pelo arranjo. A condição de fragilidade desse sujeito que não mais tem certezas ou expectativas é confirmado por uma forma que coloca a incerteza em seu cerne constitutivo, em oposição à certeza cínica exposta na ideologia emo e no comercial da Renault.
Papel fundamental nessa resignificação fica a cargo dos arranjos, que nesse disco são brilhantes, especialmente por conta dos metais, que inserem novos sentidos e estabelecem uma relação dialógica com a melodia e a letra, ao invés de simplesmente reforçar informações. Como no clima meio circense afrancesado de “Cade teu suin”, canção que expressa brilhantemente a adoção da incompletude e da incerteza como parâmetro de criação, a ponto de beirar o experimental:
Cadê teu repi \ quem é teu padrin \ onde é que tu to \ Cadê teu suin? \ guitarra não po \ desista mole \ quem é que te indi \ cadê teu suin?
O sentido se completa, mas deslocado, fora de lugar, re-elaborando a relação convencional entre as frases. Entre o samba, o rock e a chanson francesa revela-se esse novo sujeito que não aceita classificações simplistas.
Guilhotina? \ eu que controlo o meu guidom! \ Com ou sem suin
Aliás, o disco apresenta inclusive uma canção em francês “Cher Antoaine”, que termina com outra crítica ao mercado, em português. Além de uma valsa, “Mais uma canção”. Ao lado dessas, outras canções mais convencionais, como “Sentimental” e “Casa pré-fabricada”. “Deixe estar” é um ska com arranjo bem divertido, que remete a um saloon de faroeste, para no refrão cantar uma dor de cotovelo em estilo hardcore. O efeito do arranjo é realizar um comentário irônico que retira o peso da amargura do sujeito. Pensando retrospectivamente, esse disco parece mesmo ser uma transição entre o anterior e o Ventura, pois várias canções mantém os temas de separação e amor com resquícios do hardcore anterior, mas sobre o qual é acrescentado um comentário que o desmonta. O resultado é bastante inovador. “Deixa eu brincar de ser feliz”.
“Fingi na hora rir”, é uma baladinha positiva que não mantêm o nível das demais. Já a balada “Veja bem meu bem” é linda e poderia ser cantada por Roberto Carlos. O arranjo aqui é bem tranqüilo, convencional, mas a letra guarda uma surpresa ao final que novamente rompe com as expectativas e confere uma significação irônica para o acompanhamento (como acontece com os boleros de João Bosco). Enfim, todo o álbum, com exceção de algumas canções, procura instaurar essa aura de incerteza e ambiguidade para expressar esse novo sujeito que se assume enquanto perdedor sem aceitar um enquadramento fácil no mundo, seja dentro de um grupo, seja dentro de um carro. Ainda não tão claramente definido como no trabalho posterior, o disco aposta em diversas tendências diferentes, inclusive recuperando momentos anteriores, como em “Tão Sozinho”, e por vezes tentando um experimentalismo que não casa muito bem, apenas para brincar de ser feliz, como as cordas que fazem acompanhamento em “Adeus Você”.

A Potencialização do Frágil: Bloco do eu Sozinho e Ventura, do Los Hermanos (2\2)


Depois do apanhado de canções francesas, faroeste, valsa e ska, que é o Bloco, Ventura pode ser visto a princípio como uma guinada do grupo para um indie mais tradicional. Pode, mas tal leitura seria, para dizer o mínimo, parcial. O Drummond de “Claro Enigma” trocou uma poesia de forma mais ostensiva, retornando ao soneto e à formas clássicas, e Pelé na copa de 70 já não era aquele furacão que por todos passava, mas o distribuidor tranqüilo e magistral. Pode-se dizer que esses gênios deram uma guinada mais conservadora, ou pode-se com mais propriedade, afirmar que eles passaram por um processo de maturidade. E é isso o que acontece com esse disco do Los Hermanos, seu álbum da maturidade, assim como o 4 será o da senilidade. Os elementos de ruptura do disco anterior estão ainda presentes, só que concentrados na forma mais elementar da canção, tencionando expectativas de uma forma mais contida, por vezes mais eficaz (processo semelhante ocorreu com outro monstro sagrado da nossa música, Itamar Assumpção, que sofreu um gradual processo de acomodamento das rupturas até atingir um maior grau de organicidade nos últimos álbuns, não se tratando aqui de juízo de valor estético, mas apenas descrição de um dado formal). A estética da ambigüidade, do rarefeito, do impreciso atinge aqui outro patamar, As letras revelam e ocultam, as melodias sugerem caminhos tortuosos, que poderão ser negados. Os metais voltam a ser ilustrativos, mais fortalecendo que dialogando com os sentidos da canção, mas ainda guardam o poder de ampliar sentidos e romper como em “Deixa o verão”. As músicas continuam dispensando o refrão, negando o jubilo conciliatório final. O louvor do perdedor implica na aceitação da fragilidade, tida agora como um modo de questionamento da força, da razão, daquilo que está estabelecido. Daí o aparecimento de certos personagens, como a mulher que não aceita mais o seu castelo-prisão em “Do lado de dentro”, ou que cansou de ser colocado em segundo plano pela “Outra”, e ainda o casal de velhos que aceitam a negatividade absoluta (morte) por amor. Todas figuras positivadas em relação ao lado vencedor, o já estabelecido, a norma. Mesmo o amor aparece fragilizado em vários momentos, com um misto de ironia e seriedade.

Impressiona a quantidade de excelentes composições do álbum, fazendo deste a meu ver um dos grandes discos da música brasileira. Peças delicadas que falam de dor e separação, mas também de se aprender a viver a dor, ao invés de exibi-la aos quatro cantos, que é outra forma de se esconder:
Não há ninguém capaz \ De ser isso que você quer \ Vencer a luta vã \ E ser o campeão \ Pois se é no "não" que se descobre de verdade
Logo de início, um samba auto referencial, diferente, que não aceita ser subjugado pela camisa de força do estilo, e depois “O Vencedor”, com sua letra manifesto pró-sujeito derrotado. Na sequência duas lindas baladas,o rockabillie suave “Ta bom”, com um excelente arranjo bastante dinâmico que ilustra, comenta e direciona o sentido das explicações de Camelo a seu amigo sobre as desvantagens de ser um macho vencedor com uma mulher, e a declaração de amor delicada de Amarantes em “Último Romance”, uma das poucas que não falam da separação, mas que também trata da fragilidade, pois pode ser interpretada como um caso de amor entre idosos, ou entre sujeitos em alguma situação extrema. Nesse disco Amarantes se revela como grande letrista, com suas canções de amor construídas a partir de eventos cotidianos, mas com certo grau de mistério que deve bem mais a Renato Russo do que a Chico Buarque, como se costuma dizer. Assim como na mais cifrada “Do Sétimo Andar”. Alias, essa é um bom exemplo de como as letras do grupo se constroem no limiar entre o que se revela e o que se oculta, pois nesse caso a descrição das cenas cotidianas carregam significados implícitos que não possibilitam constituir uma narrativa, mais um signo da fragilidade estrutural que diferencia o grupo.
E foi difícil ter que te levar \ àquele lugar \ Como é que hoje se diz? \ Você não quis ficar
Ao invés da especificação do lugar, uma pergunta que amplia a obscuridade, revelando entretanto certa incompatibilidade de interesses
E se eu numa esquina qualquer te vir \ será que você vai fugir? \ Se você for, eu vou correr
Correr dela ou correr para ela? Impossível dizer. Os encadeamentos narrativos são subjetivos e não se revelam. Podemos interpretar de inúmeras formas quais são os personagens envolvidos (mãe e filho drogado, Amarantes e seu cachorro, mãe e filho abandonado num abrigo...), nenhuma estará completamente certa ou completamente errada. O que importa captar é o próprio jogo de ocultamento\revelação que trava o que é narrado e se recusa a transformar a fragilidade em um discurso linear.

“A outra” cede voz ao eu lírico feminino, um desdobramento lógico da crítica ao vencedor (o macho dominante) empreendida pelo grupo nesse disco, em um clima meio Havaí zen (“Como uma onda”, do Lulu Santos) latinizado, em outra canção circular onde o clímax constantemente se anuncia e se esvai. “Cara estranho” tem a forma de um rock mais tradicional, mais ainda aqui a relação forma conteúdo é bem realizada, porque a personagem principal é um vencedor típico, hardcore. Só que este é aqui visto a partir de um olhar crítico. “Além do que se vê” tem letra e melodia excepcionais, além de um arranjo bastante competente que cria o clima perfeito para tratar de uma história de separação e superação. Nesse disco o talento dos dois compositores está a toda força, as letras tem um desenvolvimento melódico e semântico bastante incomuns, sem perder a delicadeza e o poder de fixação.


Na sequência surgem três peças geniais que merecem um olhar mais detido. “Conversa de botas batidas” é uma canção brilhante, que confirma que o tema do grupo deixou de ser o amor imaturo de adolescente emo. Ser um derrotado não é se exibir por ai com cara de choro, mas aceitar com humildade e consciência o vazio primordial da existência. Diferente das outras composições, dessa vez a base do arranjo fica por conta do piano, o que a deixa soando como aquelas grandes canções do Elton John do Goodbye Yellow Brick Road, apesar de se tratar aqui de um samba enrustido. A música se constrói a partir do encaminhamento perfeito de partes com sentido melódico distintos, que fazem com que a exaltação final – com coral e tudo – não soe piegas. Uma análise semiótica dessa composição seria bem útil para revelar seu alto grau de complexidade e acabamento formal. Aliás, o clima final, exultante, é bem diferente do restante das composições do grupo, que no geral terminam sem ênfase, em pianíssimo. É que nesse caso a letra, baseada em história real segundo o próprio Camelo, trata de um casal de velhos amantes que decide caminhar juntos para a morte, em paz e sem mais esconder seu amor, em um hotel que sofre um incêndio. Estamos dessa vez diante de um caso extremo de aceitação da maior “derrota” de todas, a morte.
Deixa o moço bater \ Que eu cansei da nossa fuga \ Já não vejo motivos \ Pra um amor de tantas rugas \ Não ter o seu lugar
Na sequência, “Deixa o verão” e “Do lado de dentro”, duas canções que retomam a forma das peças mais “inusitadas” do disco anterior. A primeira é um ska alegre e divertido sobre um casal que prefere fazer sexo a ir pra balada. Toda a música é marcada por um arranjo descritivo que tece comentários sobre a narrativa, seja o som da mesa do bar, seja o tic tac do relógio a marcar a passagem do tempo. O encademento melódico também tem grandes momentos, como na passagem E ainda é cedo pra lá \ chegando às seis tá bom demais \ Deixa o verão pra mais tarde, que prepara para o refrão acelerando o encadeamento dos versos, sugerindo a urgência toda da coisa, que vai culminar no bocejo ao final da música. E ainda tem uns breques excelentes, como aquele em que o andamento da música é consideravelmente reduzido, antes de voltar para o fim, ou aquele imediatamente anterior que sugere um clima country. O Amarantes é de fato mais divertido que o Camelo. É a parte rock n’ roll do grupo, fundamental pra que eles não se tornassem mais um grupinho de MPBosta universitário. Alias, a primeira musica do último disco revela as razões do fim do grupo – Amarantes não conseguiu mais conter a chatice do Camelo.
“Do lado de dentro” é um exemplo magistral de trabalho com arranjo. Começa com uma introdução em que a guitarra vai gradualmente perdendo sua força, até que só sobra o silêncio a partir de onde o homem (vencedor) vai falar. De tal modo que quando sua fala se inicia, o silêncio da guitarra ecoa por todo o trecho (até sua volta na estrofe seguinte). O resultado é que a introdução retira a força daquele enunciador, o homem, o que no fim das contas vai ser o tema da canção, a negação do macho dominante (que, pra variar, é um diálogo – outro modo de se operar com o relativismo das posições). Quando a guitarra volta, o arranjo e a melodia vão caminhando para um crescendo, até a afirmação do sentido último “Que eu sou teu homem, viu”, razão pela qual a moça deveria aceitar o rapaz de volta. Quando entra a voz da mulher, ela também surge em silêncio, mas a situação criada pelo arranjo é completamente diferente. O corte é abrupto e serve para destacar sua fala, que está dando ordens, e não fazendo um pedido. A seguir, em um momento genial, suas palavras vão se destacar sobre uma base circense, revelador da tomada de consciência de que aquilo se tornou um circo, mostrando um distanciamento de alguem que já superou o trágico da situação. Ao final desse momento, os metais entram fazendo um alarde de grande intensidade, sobrepujando completamente o clamor masculino da primeira parte. E por fim, a parte final, a libertação e fuga daquela prisão. Uma canção genial.
O disco se encerra com “Um par”, em que a relação entre pai e filho é tratada como uma relação entre marido e mulher que só no fim revela-se outra coisa. A relação óbvia que se estabelece é entre o marido e a criança, mais uma crítica à supremacia do macho. E pra finalizar, como não poderia deixar de ser, uma canção mais down “De onde vem a calma”, em louvor aos perdedores, mas que não é tão boa, talvez anunciando o que seria o próximo disco, um álbum com canções bem realizadas, mas que se leva a sério demais, perdendo em ironia, o que lhe diminui consideravelmente a ambigüidade – ponto de força do grupo.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Sobre a nova propaganda do Renault Clio (1\2)

O blog anda às moscas. A vida virtual e a real podem ser incompatíveis, enfim, ao invés de complementares. Todos sabemos disso. Assim como para alguns, o mundo virtual parece ter mais concretude. E assim também, o que é mais grave, nossa vida real se torna cada dia mais virtualizada, valores e atitudes imagéticas. Os comerciais tornam-se mais interessantes que a própria vida, o que não seria problema nenhum (o sentido geral da ficção é tornar mais viva a vida) caso nossa vida não estivesse tornando-se, por principio, ficcional. E a propósito de comerciais e vidas esvaziadas, segue um texto excelente de um brother do peito. E quem diria que a consciencia crítica dos modernos se converteria no cinismo atual. O que significa ter consciência crítica nesse caso? E para que serve crítica ideológica então, se é que já serviu pra alguma coisa? Mais instrumentos para o cinismo?



Dois amigos vão andando pelas ruas, conversando. A rua já tem aquela cara de background de novela (cores chapadas, luz fosca). São sempre os mesmos dois atores que estão ali; as transformações acontecem como mudanças de figurino.

A lógica da propaganda é a seguinte: cada coisa que o cara diz é contrariada em seguida. Por exemplo, "a coisa mais ridícula é andar de patins". De repente eles aparecem, os dois amigos, vestidos como patinadores. A transformação é "mágica" e muito rápida, acontece do nada mesmo.

Essa mesma sequência segue, pautada pelos assuntos comentados pelo rapaz, passando por "trabalhar em empresa" e "casar". Quando é chegado o "casar", o amigo como que cai num buraco. Logo em seguida sobe por detrás (como um boneco de pimbolim) uma mulher vestida de noiva. Imediatamente ele também se transforma em noivo.

O ponto final das transformações, claro, é quando aparece um Renault Clio. Nesse momento todo o exterior some, estamos dentro do Clio. É aí que o cara fala algo como "você é tudo pra mim, querida" e a mulher olha com uma cara desconfiada. No corte entre a "externa" e a"interna", uma voz em off comenta algo do tipo: "você vai se contradizer sempre. Esse carro é um popular que não é popular, experimente", ou qualquer merda do tipo...

O cara que vendeu essa ideia para o diretor de marketing da renault não precisou dizer muito mais do que "a renault precisa investir na sua linha de carros populares, mas manter o padrão "importado" que é a razão pela qual nossos clientes nos escolhem. Por isso a gente tem que desfazer a aura de pobreza do carro popular. Pra fazer isso, é claro que a gente precisa mostrar pros recalcitrantes que eles já fazem opções popularescas mesmo que eles não saibam e ao mesmo tempo dizer que esse nosso popular não é como os outros.

Mas isso é só o começo da história...

O que caracteriza essa propaganda é a generalização da relatividade das coisas. Ela parte do pressuposto de que a noção cínica de que opiniões e crenças não contam é uma lei geral da vida hoje. Segundo essa propaganda todos precisam viver desavisadamente, aceitar como verdadeiro tudo o que aparece, mas sempre com o olho nas mudanças que desmentem a verdade do que se acreditou. É essa ideia que esse comercial quer estabelecer como geral, apesar de ter público-alvo certo.
Para fazer isso formalmente, toda a "cenografia" do reclame ganha algo de artificial e a lógica é sempre a de denunciar essa aparência como aparência. A propaganda não diz "compre o Clio"; não diz "Clio, elegância e conforto ao seu alcance"; ela diz que os ideais de elegância e conforto em que você acredita são relativos, sempre substituidos por outros conforme chega um novo produto (na verdade, diz algo mais grave, comentado a seguir); ela sabe que você sabe disso, e, assim, apelando para a sua experiência como consumidor, te vende a mesma ideia.

Sobre a nova propaganda do Renault Clio. (2\2)


Como ja se comentou sobre a propaganda, isso é um desvirtuamento do v-effect brechtiano, que na autodenûncia do teatro como aparência, queria levar o espectador a se defrontar com as antinomias sociais naturalizadas pela ideologia. Nesse caso, no entanto, o fato de todo horizonte de valoração ser relativo não leva a entender por que as coisas são assim, nem a destrinçar os conflitos que sustentam essa inconsciência. A propanganda, descreditando tudo, inclusive seu produto, leva a uma aceitação da inconsistência de tudo e à lógica do mal menor.

Isso é tão radical, que a tranformação mágica do reclame engolfa não só as bobeiras adolecentes, como também toda a paisagem e as estruturas de uma pessoa. O tempo, ali, tudo destrói; não apenas as opiniões do moleque bobão. Ele leva as opiniões, as roupas, o amigo, o próprio mundo embora. Deixa no lugar apenas a mesma pessoa, sempre identica a si mesma e tão mais invulnerável e cabível nas tranformações quanto mais ela reage a elas com o gesto mesmo de aceitá-las (ou de sofrê-las sem percebê-las).

Aparentemente instalando o cara no seu lugar definitivo, o interior confortável do Clio, ele deixa entrever que até mesmo a aquisição automotiva e seu casamento são frágeis. Afinal, o que ele diz à mulher é a mesma coisa que ele dizia ao amigo. Por outro lado, a única tranformação real que essa pessoa sofre, na estética do tal reclame, é aquela em que câmera e atores mudam de posição. Só dentro do carro aquele cara é visto de outra perspectiva. Uma em que, supostamente, ele está à cavaleiro das mudanças, com a mão na direção. Exatamente por isso, os votos dirigidos à mulher não são contrariados por nenhuma sequência. Se todas as crenças se equivalem diante da marcha louca do mundo, o gesto de estabelecer como definitivo isso ou "aclillo" é a única débil força de que alguém pode dispôr. Na disposição de que é no mundo movediço que se vive e na razão distanciada que manda sobreviver a tudo isso e garantir o seu estariam os paradozais pontos fixos desse mundo permanentemente "revolucionado".

Ainda sob tal perspectiva, é óbvio que isso é falso. Essa visão das coisas como relativas é colocada, de maneira geral, como contrapeso do mundo de liberdade e irrestrita transformação que está ao alcance de todos. Lutar para viver bem nesse mundo, é fazer parte das transformações, sopesando ao mesmo tempo o vivido e descobrindo onde estão os pontos ainda sólidos, amanhá prontos a se dissolver.

Acontece que nem todos estão tendo que fazer essa dolorosíssima ginástica para viver bem. Para
muita gente adaptar-se à mudança significa apenas dispôr de espírito de abertura para escolher essa ou aquela mercadoria que se contradizem nos valores por ela encampados. Pois bem, justamente esse lugar de poder, que não tem seu mundo reduzido à pó (mas balança indulgentemente com a barcaça) está e não está presente no comercial. Ele está além das câmeras (no mecanismo cego que tudo rege ali) e, como razão cínica, dentro do Clio.
O motorista do Clio sabe que não está na posição de usufruto e gozo tranquilo de quem recebe uma mercadoria de bandeja. Sabe também que tem gente que está. Sabe além disso que isso não é uma possibilidade para milhares de pessoas. Ainda assim, mesmo sabendo que a mercadoria não é a resolução dos problemas do mundo e sim seu agravamento; mesmo sabendo que confortar-se com aquilo é contrubuir com a merda toda; mesmo sabendo que compensando tudo isso há apesar sua alegria momentânea, pois os custos disso irão destruir o frágil lugar de repouso que o consumo constitui, mesmo assim ele embarca nessa sob a lógica do mal menor.

Ter um Clio equivale, portanto, a se identificar sem se identificar com estes que, em um mundo desgovernado (ou mal governado pela lógica amoral da necessidade de criar valor), têm um mínimo controle de seu entorno e de si mesmo. Ora, isso só é possível quando a instabilidade do mundo se tornou tão grande que mesmo o lugar mais estável nesse mundo sofre de descrédito. Se as desgraças de todos os dias tornam impossível a alegria até mesmo para quem possuem todas as condições para usufruí-las, então não há um lugar sólido de mando nesse mundo, há uma imagem de supremacia que deve ser perseguida a qualquer custo. Sendo verdade e mentira ao mesmo tempo, é essa crença popular (profundamente popular, Villon puro) que constitui o mecanismo profundo desse comercial.

Sim, "esse popular não é como os outros". Quem tem o Clio é o vencedor sendo de partida o perdedor, como aliás seria tudo mundo. É essa falsa generalização da lógica da redução de danos que está na base do comercial. Aquele que deixa os remorsos, as lembranças, as roupas, o amigo e a mulher para trás, escolhe o que tem chance de sobreviver e só com isso se identifica, ademais ciente de que isso também pode se dissolver e o caminho abrir-se a novas conquistas esse é o que merece viver e usufruir. Só para ele é que o prazer falso, contabilizados em inúmeros deseperos, torna-se substancial na sua falta de substancialidade.

A falta e a instabilidade do produto, do cliente e do mundo, são positivadas como razão para
aceitar a alegria que se sabe de antemão instável e falha. Quando aparentemente nenhum negociante domina mais a integridade das tendências de mercado (o que está longe de ser verdade, pensando que as corporações garantem esse mando com as suas fusões e manobras financeiras), esse excelente surfista do caos é o único que se torna objeto de admiração. Só com isso alguém se pode verdadeiramente se identificar. Quem manda na vida sem sofrer seus empuxos não é o herói; é heroi quem é mandado, mas não por alguém, pelo simples fato de ficar abandonado ao deus-dará. Como essa ingrata posição de popular é que é proposta para os pobres e a classe média; omo essa atitude, ao mesmo tempo, se torna cada vez mais difícil de ser sustentada e supostamente é a única possível para todo mundo, justamente essa disposição do impotente potente é a que se torna mais apelativa para o consumidor e transforma-se em material para o comercial. Popular aqui, é isso. Sinônimo de guerreiro, mas não do que há de óbvio na figura do guerreiro grosseiro e arraigado em crenças. É o portador da pura disposição à disputa; é aquele que comporta a inabalável intenção de estar por cima da carniça. Esse é o popular que, sendo igual, ao garantir sua sobrevivência por dar de ombros à ruína dos outros, de si mesmo, e do mundo, é diferente dos outros. Esse homem é que é digno de um Clio.

sábado, 1 de maio de 2010

Bandas que Ninguém conhece

CHiC Pop. Apresenta:
"Bandas que Ninguém conhece" - o Podcast!


Depois de muita tensão e expectativa será lançada a primeira edição do Podcast das "Bandas que Ninguém conhece".

Com ele, nós iremos dar início a uma incrível jornada pelos mais profundos recônditos da música popular.
Vamos viver novas aventuras, escutar canções dos quatro cantos do mundo. Presenciar revoluções que quase foram silenciadas pelo esquecimento.
Ora bizarras, muitas vezes sublimes, as músicas que estamos prestes a ouvir irão certamente mudar nosso modo de encarar o mundo pop.

O primeiro episódio será dedicado a bandas completamente desconhecidas, mas que estão escondidas bem debaixo dos nossos narizes. Ouviremos um pouco do Pop tupiniquim. Músicas brasileiras que não marcaram gerações e discos que não foram sucesso, mas que deveriam ter sido.

Nosso cardápio contém:

Fuzi 9 - Isto é Samba
Di Melo - Kilariô
Rubinho e Mauro Assumpção - Tá Tudo Aí

The Magnetic Sounds - Super Erótica!
Formula 7 - Work Song
Hareton Salvanini - Primitivo

Os Populares - Não Há Dinheiro que Pague
Brazilian Octopus - Momento B8

Além de uma canção surpresa que virá por último.

Em todo programa teremos uma música secreta e o primeiro ouvinte que descobrir quem é o artista e qual é o nome da faixa ganhará um prêmio especial, oferta de nossos patrocinadores.

Sejam bem vindos, apertem os cintos e boa viagem!
http://www.mediafire.com/?gatji4tjjzn

quarta-feira, 10 de março de 2010

Madamismo


Dias atrás lançaram por aí um certo livro de ensaios sobre assuntos variados. A autora, uma professora aí da Letras, famosa pelos comentários bem colocados, raramente ofensivos, sempre surpreendentes.

Pela mais completa falta de originalidade.

E a festa lotou. Um departamento inteiro, bem departamentado, de gente feliz, chique, branca e aparentemente rica, a despeito da profissão.

Um dedinho erguido sorvia lentamente o “champanhe”, um Lambrusco de 12 reais a garrafa, a bem da verdade. O pior dos vinhos vira Moët Chandon na companhia certa. Você sabe o que é caviar?

O livro falava com muita autoridade sobre um escritor da periferia, falava com muita compreensão: “é a vez deles nos ensinarem uma lição sobre a consciência de classe”.

Nunca vi nem comi, eu só ouço falar.

O dedinho erguido consumia canapés de ovo de codorna recheados. Nem ovo de codorna pra deixar o cara errado de pau duro na hora certa. Você já leu o livro dela?

Ainda não, tô planejando

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Di Melo - Vivo!

Faz um tempo o antológico disco do Di Melo, de 1975, foi postado aqui no blog. Fiquei com raiva, porque eu queria ter sido o responsável pelo post.
Passados alguns anos, reaparece o dito cujo. E pasmem! Não está morto. Meio gordo e com a voz meio cansada, mas vivo.

Então, pra comemorar essa notícia impressionante e pra interromper essa sequência de posts cabeçudos, aproveito e posto essa pérola.
É o Di Melo ao vivo no festival de inverno de Garanhuns, no ano passado.

O disco já apareceu em outros blogs, mas em um arquivo único. Tive o trabalho de separar as faixas, dar nome a cada uma delas e criar uma capinha para o disco. O legal é que tem algumas músicas novas.

divirtam-se, que esse vale a pena.
http://www.mediafire.com/?wymoyemm5n2