terça-feira, 14 de setembro de 2010

Ainda sobre Guimarães Rosa: notas sobre o conto “Nada e Nossa Condição”, ou a utopia presente.

Só para complementar o post anterior sobre Guimarães, baseado em uma conversa que tive com um amigo, gostaria de deixar anotado aqui algumas reflexões para um aprofundamento posterior, talvez um futuro texto mais arredondado. É certo que tratar Guimarães como um escritor de direita é um reducionismo, e que os caras que assim o fazem sabem disso, tanto que não publicam coisas nesse sentido, só comentando em certos eventos, aulas, conversas de corredor… Mas é certo também que o fato de existir certo “silêncio” – que alguns críticos mais novos vem tentando romper – em torno do autor, por parte dos críticos dialéticos, demonstra que existe uma questão real, de difícil elucidação a partir de um paradigma marxista-dialético.

No conto “Nada e a nossa condição”, do Primeiras Histórias, vemos a personagem de Tio Man’Antonio, um fazendeiro escravista, ser elevado à condição de herói mítico. A partir de um paradigma machadiano, essa admiração seria desconstruída, seguindo o modelo do cunhado Cotrin, que é admirado por Brás Cubas como modelo de grande homem, tanto no espaço público quanto no privado. Mas a admiração de Brás é construída por Machado de forma a deixá-la insustentável: ao admirar Cotrim como um excelente pai de família e ao mesmo tempo, por seu trato “vigoroso” com suas propriedades, os escravos, Machado a um só golpe desmonta a barbárie da escravidão, os vínculos perversos das relações patriarcais, a conivência dos poderosos com nosso atraso, e ainda sobra para o leitor que cair na armadilha.

No caso de Guimarães, não temos esse distanciamento. Tio Man’Antonio é admirado mesmo, de fato. E isso sem ocultar suas relações com o escravismo. Ele é tomado como uma figura algo mítica e positivada enquanto tal. A literatura rosiana não se contrói a partir da denúncia das relações sociais, do cálculo por detrás das aparências. Isso aparece, mas não é o centro da composição, como no caso do Machado, em que esse é o conteúdo mesmo da idéia fixa. Mas o que, afinal, se admira em Tio Man’Antonio? Ele é simplesmente um senhor de escravos, e o que se admira nele é esse poder? Caso a resposta seja negativa, como então é possível admirar uma figura dessas, a partir de qual perspectiva torna-se viável sua mitificação? A resposta é óbvia e ao mesmo tempo altamente complexa: Tio Man’Antonio é e não é um fazendeiro escravista. O processo em questão não consiste exatamente em elevar o fazendeiro à condição de herói mítico, mas lidar com um fazendeiro que é também herói mítico. Concentrar-se radicalmente nesse lugar em que uma coisa aponta para outra sem negar-se, eis o ponto em que Guimarães é imbatível.

O conto trata do trabalho de luto de Tio Man”Antonio que, após a inesperada morte de sua esposa – dando notícia da chegada inevitável do Anti-Sujeito - centra sua vida na administração dessas perdas. Ele é admirado pelo narrador porque ao fim sabe dar um sentido para essas perdas, torna-se em grande medida senhor delas, de seu destino. Aceita o caminho irrefutável para o fim e torna-se destinador de si próprio. Ao final, ele mesmo se morre, vencendo o grande mistério ao aceitar a condição de fugacidade da existência, e preparar sua permanência no mundo, sua perpetuação da maneira que é possível. Tio Man’Antonio encaminha o futuro de suas filhas, depreende-se delas e as direciona ainda em vida, e também dá um sentido para a perda da suas propriedades. Diante da perda inevitável do processo de existência, o viver para a morte, Tio Man’Antonio resolve administrar essas perdas, eliminando em vida o caráter de surpresa da morte. É ele quem pega a morte de surpresa, ele é quem irá controlá-la, aceitando-a em sua radicalidade – bem distante da concepção de assepsia moderna, em que podemos controlar nossa morte, afastando-a de nossas vidas. “Até que, ele, defunto, consumiu-se a cinzas – e, por elas, após ainda encaminhou-se, senhor para a terra, gleba tumular, só; como as consequências de mil atos, continuamente”. Tio Man’Antonio é admirado porque aprendeu a não ser, dando um sentido “Faz-de conta, minha filha, faz de conta” para sua experiência a partir de seu não direcionamento.

A forma dessa permanência não é escamoteada por Guimarães – o fazendeiro “doa” sua propriedade para seu ex-escravos mas, e esse é o ponto, não sai do lado deles, não permitindo que eles façam dela o que quiser – como vender – de modo que agindo no presente, ele perpetua a sua influência até o futuro. Ele quer determinar não só o seu futuro, mas o futuro de suas propriedades – extensão de si. E apenas um senhor poderoso tem condições de fazer isso, o que Guimarães não ignora ou oculta. Aqui coloca-se o ponto delicado: para os que conhecem a história do Brasil em seu lado perverso, sabe-se que essa permanência do passado, a famosa modernização conservadora, é causa direta da tragédia nacional. O país que avança sem avançar, a sociabilidade criada a partir dos limites, nas brechas, em tudo isso pode-se ler a miséria brasileira. Imediatamente, dentro dessa perspectiva, se coloca a questão, bastante adequadamente: ao exaltar a permanencia do passado do presente, o indefinível entre o eu e o outro, o entrelugar, não estaria Guimarães louvando a nossa tragédia, e elevando nossa miséria a categoria de exaltação, ao invés de crítica? O mito das relações pacíficas do país, da cordialidade em sentido positivo? Como pode Tio Man’Antonio ser um herói se seu projeto consiste em fazer com que seus escravos não sejam senhores de seu próprio destino? A resposta não é simples – também não resolve o problema, e meu amigo está certo, dizer que Guimarães é de esquerda – e envolve muitas dimensões da obra rosiana, a começar da linguagem, mas acredito que a resposta passe pela consideração de que todo o universo rosiano existe enquanto possibilidade no interior do concreto, sem nunca vir a ser completamente, ao mesmo tempo em que possui concretude quase sensorial. Tio Man’Antonio não expressa o mundo que existe, ao mesmo tempo em que só pode existir nesse mundo. É o nosso real enquanto virtualidade. Não é o fazendeiro e a barbárie do sertão que se admira, é o que nela, e tão somente nela, está inscrito enquanto possibilidade de redenção, ou de ser um outro.

Guimarães Rosa não ignora as contradições da realidade brasileira, ao contrário, as trata minuciosamente, com riqueza de detalhes. Não oculta as diferenças entre as classes - o narrador do Grande Sertão: veredas é herdeiro, letrado, e macomunado com o doutor e o leitor, existe claramente um lado vencedor, que se impõe por sobre os outros e do qual participa o literário; tio Man’Antonio não tem o mesmo estatudo de seus escravos: o tempo todo são marcadas essas diferenças sociais no universo rosiano, é um universo em constante tensão gerada a partir daí. Nada daquela visão humanista conciliatória que procura romper com as diferenças sociais, em Guimarães os homens não são iguais. Ao contrário, seu olhar vai se especializar em aprofundar a compreensão da diferença, a tal ponto que esta pode inclusive tornar-se o seu oposto, o que não raro ocorre. Toda denúncia da barbárie da jagunçagem está em Guimarães para quem quiser ler, mas o que o autor procura não é fazer uma denuncia direta (embora isso esteja lá também, a conciência da necessidade de se negar ambos os pólos, e a específica relação brasileira entre ambos) do atraso ou da modernidade. Ele procura sim se concentrar na negação daquilo que se apresenta no momento mesmo em que é visto, ao ser encarador de perto, assumindo outra forma que lhe nega os contornos e determinações. O maior equívoco crítico é considerar que a fusão promovida por Rosa tem o intuito de apagar as contradições, quando na verdade toda sua operação consiste em levá-las as suas últimas consequências, até o ponto em que elas se perdem de si e revelam outras dimensões.

Uma de suas questões, por exemplo, é encarar o espaço em que o mítico se une ao racional. Seu mundo une assim, radicalmente, macumba e critianismo. Para criar essa fusão, entretanto, ele parte de um lugar já constituído no mundo, por exemplo, o kardecismo. Ele não vai criar um outro espaço, inexistente. Mas vai radicalizar a tal ponto essa fusão que o kardecismo já não se sustenta enquanto tal, sendo um espaço de contradição permanente, e não de apaziguamento. Em suma, será um outro kardecismo, mas que parte do que existe, é o que existe radicalizado. Dessa forma, ele cria outro mundo, mas estreitamente vinculado com o nosso, é o outro dentro do já dado, uma espécie de utopia concreta, tão reveladora quanto a distopia Machadiana. Uma utopia com cara de Brasil, quase um país radicalizado.

Isso faz com que o autor, ao mesmo tempo que não ignora a face social, procure em seu interior, aquilo que dela escapa, enquanto possibilidade. Ou seja, aquilo que, sem ser outra coisa, é o outro, aponta para o outro. Aquilo que está e não está no real, enquanto possibilidade, aquilo que na lógica brasileira aponta para um outro espaço de constuição dos sujeitos, um espaço que não existe concretamente, mas que, ao mesmo tempo, depende absolutamente do espaço local para se constituir. Uma utopia que só pode ser brasileira. A terceira margem do rio só pode existir em um rio brasileiro, é um universal, mítico, que é local. O sertão é o mundo. O Brasil de Rosa é o país enquanto potencialidade, não é que o que existe é bom e justo, mas o que é que possa vir a existir de bom e justo só pode surgir daquilo que aqui está dado. Um lugar que não é ainda, um espaço em que inclusive nossa linguagem – a base de constituição do ser e do mundo – precisa ser absolutamente reestruturada, mas cuja reestruturação só faz sentido e só pode realizar-se a partir daqui. O paradoxo que institui a obra rosiana é ser o mais bem feito e minucioso registro etnográfico da literatura brasileira, ao mesmo tempo em que nada em sua linguagem, sequer a própria linguagem, existem.

Desse modo, a aceitação do negativo em si – tema de Nada e Nossa Condição e de Rosa no geral - é o caminho para a aceitação do outro em relação ao eu. Caminho que na literatura rosiana só pode acontecer em um espaço em que as relações sociais se dão ao redor do espaço simbólico das leis, sem nunca alcança-las em definitivo, conduzindo a uma indiferenciação – perversa e amistosa, cordial – entre eu e outro. Em suma, só pode acontecer aqui e agora, mas num espaço outro do aqui e agora, como naqueles livros de ficção científica em que cada momento da realidade possuí um universo paralelo próprio, que só adquire consistência em sua relação com esse real, numa multiplicidade infinita de universos, tantos quanto são os momentos da realidade.

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