sexta-feira, 23 de julho de 2010

A Potencialização do Frágil: Bloco do eu Sozinho e Ventura, do Los Hermanos (1\1)


O artigo sobre o novo comercial da Renault me inspirou a escrever esse texto sobre o Los Hermanos, que eu acredito servir como complemento para as questões ali levantadas. Isso porque a meu ver o grupo também coloca em cena o mesmo tipo de subjetividade exposta e afirmada pelo comercial enquanto ideologia – a do vencedor derrotado, aquele que cinicamente aceita não mais ser um herói, tomando a fugacidade da forma mercadoria enquanto norma e novo padrão – mas para, a partir daí, construir uma postura mais crítica em relação aos valores tidos como “vencedores”. A fragilidade é um elemento de problematização, e não de ostentação.

Na verdade, esse posicionamento foi uma conquista gradual na carreira da banda. No seu primeiro disco, de maior sucesso, o que predominava era uma variação do mesmo esquema ideológico do comercial, que pode ser observada no maior sucesso do grupo, Anna Julia (que é uma boa canção passional).
Nunca acreditei na ilusão de ter você pra mim\ Me atormenta a previsão do nosso destino \ Eu passando o dia a te esperar \ você sem me notar \ Quando tudo tiver fim, você vai estar com um cara \ Um alguém sem carinho \ Será sempre um espinho\dentro do meu coração.
Esse sujeito passional e passivo da letra toma forma em uma estrutura musical retro, que repõem o esquema do rock clássico a la Beatles ieieie (a coroação máxima foi a regravação em inglês da canção pelo próprio George Harrison, o que não é pouca coisa). A propósito, essa é uma típica postura emo: aceitar afirmativamente um novo tipo de subjetividade fragilizada – o homem pós-moderno – mas sem alterar padrões já consagrados da superestrutura. O sujeito muda de atitude, como no estágio heróico do punk, mas essa nova revolta (agora literalmente passiva) vem embalada no velho esquema de sempre. Sua razão de ser é a reprodução da mesma forma. O significado de ser emo está tanto em chorar como em consumir os estilos fashions que vão se reproduzindo, na mesma proporção. Aliás, mesmo o sentimentalismo tem uma óbvia conotação fake, facilmente identificável nas lágrimas falsas que fazem parte do figurino, juntamente com o piercing no nariz ou na boca e o cabelo style.
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É disso que foge o grupo, apesar do Camelo não dispensar assim tão fácil

Com o lançamento do Bloco do eu sozinho, disco de 2001, as coisas começam a tomar novos rumos na vida do grupo. Já a música de abertura do álbum anuncia a transformação
Toda banda tem um tarol, quem sabe eu não toco \ Todo samba tem um refrão pra levantar o bloco \ Toda escolha é feita por quem acorda já deitado \ Toda folha elege um alguém que mora logo ao lado \ E pinta o estandarte de azul \ E põe suas estrelas no azul \ Pra que mudar?
A primeira mudança significativa é uma tomada de consciência da própria sonoridade, expressa pela letra (postura típica da Bossa Nova e certa vertente da MPB, daí a aproximação de Camelo e Amarantes com o gênero, e uma das causas estruturais da dissolução do grupo). Essa percepção revela uma preocupação com o estabelecimento de uma relação mais orgânica entre forma e conteúdo. A nova atitude não pode vir ancorada nos velhos esquemas. Esse novo sujeito que ao invés de brincar e pular no carnaval prefere contemplar o seu fim, será agora expresso por canções que rompem com o grau de certeza do hardcore pop emo. Agora o padrão não é mais os Beatles, do surgimento do pop, mas o samba e outras bossas. Só que um samba sem refrão, percussão, roda ou sambista. Pois afinal:
Quem se atreve a me dizer do que é feito o samba? \ Quem se atreve a me dizer?
A identificação com o samba não se trata de uma simples reverência, mas tem por função manter a ambigüidade das canções, característica que irá marcar toda essa nova fase do grupo. Pois é óbvio que não estamos diante de um grupo de samba, mas tampouco se trata de um grupo de roqueiros descendentes do rock clássico. O sujeito derrotado vai ser agora aquele que se recusa a aceitar classificações fáceis e a se delimitar em um estilo ou categoria. A aceitação da derrota se converte em recusa contínua, que toma forma estrutural nas canções. Ser derrotado é estar à parte do mundo, e não tranquilamente inserido como na fragilidade emo. Em “A flor”, por exemplo, o triangulo amoroso se confunde até o ponto em que as identidades não podem mais ser facilmente reconhecidas. A canção começa com uma introdução meio capenga, para em seguida anunciar um hardcore convencional. Mas a partir daí a flor vai confundir todos os protagonistas até o breque que se anuncia em forma de samba. Definitivamente o grupo saiu do esquema pop hardcore.
Em “Retrato pra Iaia”, outro semi-samba tímido latinizado, a melodia faz um caminho inusitado – o grande talento de Amarantes - que sempre rompe com a linearidade esperada, especialmente no refrão. “Assim será” se constitui a partir da quebra de expectativa dos momentos de ênfase da melodia e do acompanhamento, que se mantem até o final. O rock mais pesado se anuncia e se retira continuamente, de modo que o lamento do sujeito nunca é levado até o limite. Sua subjetividade é interrompida pelo arranjo. A condição de fragilidade desse sujeito que não mais tem certezas ou expectativas é confirmado por uma forma que coloca a incerteza em seu cerne constitutivo, em oposição à certeza cínica exposta na ideologia emo e no comercial da Renault.
Papel fundamental nessa resignificação fica a cargo dos arranjos, que nesse disco são brilhantes, especialmente por conta dos metais, que inserem novos sentidos e estabelecem uma relação dialógica com a melodia e a letra, ao invés de simplesmente reforçar informações. Como no clima meio circense afrancesado de “Cade teu suin”, canção que expressa brilhantemente a adoção da incompletude e da incerteza como parâmetro de criação, a ponto de beirar o experimental:
Cadê teu repi \ quem é teu padrin \ onde é que tu to \ Cadê teu suin? \ guitarra não po \ desista mole \ quem é que te indi \ cadê teu suin?
O sentido se completa, mas deslocado, fora de lugar, re-elaborando a relação convencional entre as frases. Entre o samba, o rock e a chanson francesa revela-se esse novo sujeito que não aceita classificações simplistas.
Guilhotina? \ eu que controlo o meu guidom! \ Com ou sem suin
Aliás, o disco apresenta inclusive uma canção em francês “Cher Antoaine”, que termina com outra crítica ao mercado, em português. Além de uma valsa, “Mais uma canção”. Ao lado dessas, outras canções mais convencionais, como “Sentimental” e “Casa pré-fabricada”. “Deixe estar” é um ska com arranjo bem divertido, que remete a um saloon de faroeste, para no refrão cantar uma dor de cotovelo em estilo hardcore. O efeito do arranjo é realizar um comentário irônico que retira o peso da amargura do sujeito. Pensando retrospectivamente, esse disco parece mesmo ser uma transição entre o anterior e o Ventura, pois várias canções mantém os temas de separação e amor com resquícios do hardcore anterior, mas sobre o qual é acrescentado um comentário que o desmonta. O resultado é bastante inovador. “Deixa eu brincar de ser feliz”.
“Fingi na hora rir”, é uma baladinha positiva que não mantêm o nível das demais. Já a balada “Veja bem meu bem” é linda e poderia ser cantada por Roberto Carlos. O arranjo aqui é bem tranqüilo, convencional, mas a letra guarda uma surpresa ao final que novamente rompe com as expectativas e confere uma significação irônica para o acompanhamento (como acontece com os boleros de João Bosco). Enfim, todo o álbum, com exceção de algumas canções, procura instaurar essa aura de incerteza e ambiguidade para expressar esse novo sujeito que se assume enquanto perdedor sem aceitar um enquadramento fácil no mundo, seja dentro de um grupo, seja dentro de um carro. Ainda não tão claramente definido como no trabalho posterior, o disco aposta em diversas tendências diferentes, inclusive recuperando momentos anteriores, como em “Tão Sozinho”, e por vezes tentando um experimentalismo que não casa muito bem, apenas para brincar de ser feliz, como as cordas que fazem acompanhamento em “Adeus Você”.

2 comentários:

  1. Li esse texto um tempo atrás e se tornou uma referência para mim. Hoje catei o blog de novo e resolvi ler novamente. E genial essa tua análise. E tu faz isso como ouvidor dos caras, e eu, que não curto o som, concordo plenamente. Muito bom, de tão bom, e de uma obviedade invisível, me arranca algumas risadas.

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  2. Valeu Lwdmila. É sempre bom qnd a galera curte e comenta algum texto por aqui... é o que faz a gente continuar escrevendo... bjs.

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