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terça-feira, 20 de julho de 2010
Sobre a nova propaganda do Renault Clio. (2\2)
Como ja se comentou sobre a propaganda, isso é um desvirtuamento do v-effect brechtiano, que na autodenûncia do teatro como aparência, queria levar o espectador a se defrontar com as antinomias sociais naturalizadas pela ideologia. Nesse caso, no entanto, o fato de todo horizonte de valoração ser relativo não leva a entender por que as coisas são assim, nem a destrinçar os conflitos que sustentam essa inconsciência. A propanganda, descreditando tudo, inclusive seu produto, leva a uma aceitação da inconsistência de tudo e à lógica do mal menor.
Isso é tão radical, que a tranformação mágica do reclame engolfa não só as bobeiras adolecentes, como também toda a paisagem e as estruturas de uma pessoa. O tempo, ali, tudo destrói; não apenas as opiniões do moleque bobão. Ele leva as opiniões, as roupas, o amigo, o próprio mundo embora. Deixa no lugar apenas a mesma pessoa, sempre identica a si mesma e tão mais invulnerável e cabível nas tranformações quanto mais ela reage a elas com o gesto mesmo de aceitá-las (ou de sofrê-las sem percebê-las).
Aparentemente instalando o cara no seu lugar definitivo, o interior confortável do Clio, ele deixa entrever que até mesmo a aquisição automotiva e seu casamento são frágeis. Afinal, o que ele diz à mulher é a mesma coisa que ele dizia ao amigo. Por outro lado, a única tranformação real que essa pessoa sofre, na estética do tal reclame, é aquela em que câmera e atores mudam de posição. Só dentro do carro aquele cara é visto de outra perspectiva. Uma em que, supostamente, ele está à cavaleiro das mudanças, com a mão na direção. Exatamente por isso, os votos dirigidos à mulher não são contrariados por nenhuma sequência. Se todas as crenças se equivalem diante da marcha louca do mundo, o gesto de estabelecer como definitivo isso ou "aclillo" é a única débil força de que alguém pode dispôr. Na disposição de que é no mundo movediço que se vive e na razão distanciada que manda sobreviver a tudo isso e garantir o seu estariam os paradozais pontos fixos desse mundo permanentemente "revolucionado".
Ainda sob tal perspectiva, é óbvio que isso é falso. Essa visão das coisas como relativas é colocada, de maneira geral, como contrapeso do mundo de liberdade e irrestrita transformação que está ao alcance de todos. Lutar para viver bem nesse mundo, é fazer parte das transformações, sopesando ao mesmo tempo o vivido e descobrindo onde estão os pontos ainda sólidos, amanhá prontos a se dissolver.
Acontece que nem todos estão tendo que fazer essa dolorosíssima ginástica para viver bem. Para muita gente adaptar-se à mudança significa apenas dispôr de espírito de abertura para escolher essa ou aquela mercadoria que se contradizem nos valores por ela encampados. Pois bem, justamente esse lugar de poder, que não tem seu mundo reduzido à pó (mas balança indulgentemente com a barcaça) está e não está presente no comercial. Ele está além das câmeras (no mecanismo cego que tudo rege ali) e, como razão cínica, dentro do Clio.
O motorista do Clio sabe que não está na posição de usufruto e gozo tranquilo de quem recebe uma mercadoria de bandeja. Sabe também que tem gente que está. Sabe além disso que isso não é uma possibilidade para milhares de pessoas. Ainda assim, mesmo sabendo que a mercadoria não é a resolução dos problemas do mundo e sim seu agravamento; mesmo sabendo que confortar-se com aquilo é contrubuir com a merda toda; mesmo sabendo que compensando tudo isso há apesar sua alegria momentânea, pois os custos disso irão destruir o frágil lugar de repouso que o consumo constitui, mesmo assim ele embarca nessa sob a lógica do mal menor.
Ter um Clio equivale, portanto, a se identificar sem se identificar com estes que, em um mundo desgovernado (ou mal governado pela lógica amoral da necessidade de criar valor), têm um mínimo controle de seu entorno e de si mesmo. Ora, isso só é possível quando a instabilidade do mundo se tornou tão grande que mesmo o lugar mais estável nesse mundo sofre de descrédito. Se as desgraças de todos os dias tornam impossível a alegria até mesmo para quem possuem todas as condições para usufruí-las, então não há um lugar sólido de mando nesse mundo, há uma imagem de supremacia que deve ser perseguida a qualquer custo. Sendo verdade e mentira ao mesmo tempo, é essa crença popular (profundamente popular, Villon puro) que constitui o mecanismo profundo desse comercial.
Sim, "esse popular não é como os outros". Quem tem o Clio é o vencedor sendo de partida o perdedor, como aliás seria tudo mundo. É essa falsa generalização da lógica da redução de danos que está na base do comercial. Aquele que deixa os remorsos, as lembranças, as roupas, o amigo e a mulher para trás, escolhe o que tem chance de sobreviver e só com isso se identifica, ademais ciente de que isso também pode se dissolver e o caminho abrir-se a novas conquistas esse é o que merece viver e usufruir. Só para ele é que o prazer falso, contabilizados em inúmeros deseperos, torna-se substancial na sua falta de substancialidade.
A falta e a instabilidade do produto, do cliente e do mundo, são positivadas como razão para aceitar a alegria que se sabe de antemão instável e falha. Quando aparentemente nenhum negociante domina mais a integridade das tendências de mercado (o que está longe de ser verdade, pensando que as corporações garantem esse mando com as suas fusões e manobras financeiras), esse excelente surfista do caos é o único que se torna objeto de admiração. Só com isso alguém se pode verdadeiramente se identificar. Quem manda na vida sem sofrer seus empuxos não é o herói; é heroi quem é mandado, mas não por alguém, pelo simples fato de ficar abandonado ao deus-dará. Como essa ingrata posição de popular é que é proposta para os pobres e a classe média; omo essa atitude, ao mesmo tempo, se torna cada vez mais difícil de ser sustentada e supostamente é a única possível para todo mundo, justamente essa disposição do impotente potente é a que se torna mais apelativa para o consumidor e transforma-se em material para o comercial. Popular aqui, é isso. Sinônimo de guerreiro, mas não do que há de óbvio na figura do guerreiro grosseiro e arraigado em crenças. É o portador da pura disposição à disputa; é aquele que comporta a inabalável intenção de estar por cima da carniça. Esse é o popular que, sendo igual, ao garantir sua sobrevivência por dar de ombros à ruína dos outros, de si mesmo, e do mundo, é diferente dos outros. Esse homem é que é digno de um Clio.
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O comercial propõe um mundo cheio de Los Hermanos - derrotados vencedores.
ResponderExcluirNão vejo mal nenhum em propor a instabilidade das coisas, tendo em vista que nessas também se insere o próprio produto anunciado. Alias, propaganda é um buraco muito baixo pra minha pessoa... não percamos muito tempo com elas. =]
ResponderExcluirO problema é que nem tudo é instável... a aceitação da fugacidade é a aceitação da permanencia irredutível das relações de consumo... só que agora sem a promessa de felicidade. É o que tem pra hoje, no fundo, é o que tem pra sempre.
ResponderExcluirOi, Anônimo.
ResponderExcluirSe vc estivesse sofrendo de uma disfunção renal grave, vc diria: "foda-se o fígado; ele fica mais perto do cu do que os meus olhos"?
Na medida em que a propaganda constitui a cabeça de todos e própria imagem do mundo na qual nos orientamos,acho importante pensar sobre ela, sim.
A instabilidade do mundo não é algo a "ser proposto". É um fato, a ser investigado, questionado sempre. Pra quem ela oferece limites? O que exatamente foi desestabilizado? Como a vida mudou com isso?
O tempo já dá conta de se perder para todos. O mínimo que a gente pode fazer é pensar por que, ao desfazer a vida, ele não ensina nada, resolve nada ou redime nada pra ninguém.
OU então é melhor só se matar para embarcar no Clio, se possível, e sair de rolê. Não é?