Mas se o futebol é como a religião, também a administração do futebol é (e sempre foi) como a das “repartições religiosas” – as igrejinhas e associações espiritualistas. A alucinação diária do torcedor não é sem fundamento. O próprio futebol espraia-se como instituição real. Sem deixar de ser um rito esportivo, mas tornando-se objeto de valor exatamente por isso, este jogo troca trabalho de fé por rendimentos.
Já trocava quando o Brasil ainda era uma feirinha de bairro e ainda troca agora que ele é uma loja de conveniência. Estou falando do dízimo, sim, que os ateus, os católicos e os orientalistas tanto criticam, mas também e principalmente de toda a estrutura de subsistência real da fé que é pressuposto mundano de qualquer atividade religiosa. Aos times de futebol antigos equivalem as irmandades e os terreiros; aos times modernos equivalem as grandes igrejas evagélicas atuais. Algum segredo nisso? Acho que não. Entretanto, a maneira como essa esquisita relação entre espiritualismo e futebol no caso do Kaká enerva a mídia e os torcedores "esclarecidos" tem algo de "secreto". Algo que a história do futebol (e do país) soterrou e que, de repente, vem à tona. O que será isso?
Vamos ao passado, então. E segure-se, coração patriota... Como se vivia a religião no Brasil antes da esmagadora ascensão das igrejas evangélicas? A nossa geração só vai se lembrar disso, lembrando como na infância as igrejinhas de bairro e as sacristias agrupavam o pessoal das redondezas em uma cultura comum. Vestígios dessa verdadeira rede de relações sociais de classe média sobreviviam nas barraquinhas de bingo e de tiro ao alvo das quermesses que hoje se realizam em pátios de igreja só por costume. Em meio às barracas de pipoca e algodão doce, entre uma e outra dentada no pãozinho com carne de panela, sempre aparecia Dna. Marta com uma rifa. E a vizinhança fazia o sinal da cruz esperando que a prenda fosse gorda. Função semelhante, acredito, desempenhavam (e, talvez continuem desempenhando) os terreiros e os sambas em bairros mais pobres, onde a vida religiosa, como no centro, nunca pôde se despregar dos pequenos empreendimentos. Mas como estamos, neste caso, nos anos 80, é claro que tudo isso já tinha a cara de diversão inocente, feita para esposas e crianças. E é claro também que a ela correspondia - como coisa mais séria e viril - o futebol.
A hora era perfeita. Constatava-se o desenvolvimento do mercado e das camadas médias ligadas à mineração. Constatava-se igualmente que a igreja continuava suprindo essa nova gente de recursos e assim tornava-se mais importante do que a coroa - que só queria saber de derramas e outras extorsões. Ora, feito o desligamento, retirava-se da igreja a capacidade de articular a gente miuda das lavras aos bens de usufruto público que mais e mais ela iria reclamar. Não custa lembrar que a concessão esclarecida vinha depois de outras tentativas de pacificação menos sutis - como o esquartejamento do oligarca que, para pensar melhor, propagava ideais republicanos no Brasil colônia, Tiradentes.
Mas cortando a cabeça da igreja, nem por isso os membros deixavam de funcionar. Noutras palavras, sob a proibição da coroa, a religião como administração comunitária de benesses sobreviveu sob a forma daquilo que até hoje se pode constatar muito presente em Minas Gerais: as irmandades. Em que consistiam as irmandades? Em agregações filiadas santos padroeiros, por sua vez correspondentes a coordenadas "mudanas" como raça, pertencimento local, ofício, etc. A igreja não provia mais os filhos de mascates, tropeiros e mineiradores de escolas, mas a comunidade ainda sobreviva nas trocas de bens menores e outros socorros. Sendo menos neutro, as irmandades eram organizações que de maneira tão pouco declarada como a do Estado - só que nas esferas que o Estado já abandonava - tinham a função de "salvar e abandonar" conforme critérios de identidade e interesse próprios. Em suma, sob a base comum de crença, dentro da qual os grupos divergiam na interpretação do culto, a religião desenvolvia-se de acordo com as redes de identidades muito complicadas que se desenvolveram neste país multirracial e de contorno de classes pouco claros. E nesse contexto, a cada comemoração, as facções pugnavam em torno da salvação celestial, que, na prática, equivalia à ajuda mútua e a favoritismos. Daí porque, longe de compartilharem a riqueza, sob formas de juízos tão seguros e equânimes quanto o jogo e senso de solidadariedade cristã, as pessoas competiam pelos prêmios que, dependendo da situações, permitiam sobreviver ou desoneravam a renda incerta das lavras de alguns poucos gastos. É óbvio que quem tomasse maior parte nos negócios carolas garimpava às bênçãos mais generosas.
Pois bem. Acontece que a mesmíssima coisa, um século e meio mais tarde, dava-se em torno dos times de futebol de várzea. Alguns devem se lembrar da aura revestindo um tio ou primo que batia uma boa bola. No interior e nos bairros operários de São Paulo isso é muito frequente. Para os netos e bisnetos dessas potestades da várzea local de 1940, esses seres eram criaturas de exceção. Eles superaram as adversidade da má origem e ganharam a vida às custas do talento que Deus lhes deu, blablablá. Um pouco por isso, ainda em 1980, quando o filho nascia, cada família "torcia" para que o moleque fizesse pelo menos 30 embaixadas de olho fechado. Claro. A tal dádiva de Deus tinha um significado muito preciso: o talento do menino há pouco implicava também possibilidades na vida. As notícias de pobretões furando as condições e chegando a times de vulto internacional eram, obviamente, muito escassas; assim como havia sido um dia a distância entre a vendinha do seu Zé e, digamos, o truste dos Rothchild. Noutras palavras, como o capitalismo antigo não era internacional na escala que é, o futebol ficava na pequena escala que sempre ficou enquanto estava dividido como passatempo de grã-finos e cultura popular: como exceção, era caminho de intensa possibilidade de ascensão social (Garrincha, Pelé); como regra, era uma forma de gerir os restos da produção nas camadas médias e baixas. Mesmo no século XX, quando os grandes times começaram a se desenvolver, essa cultura local é que dava sentido ao grande espetáculo ouvido com fervor nos radinhos de pilha. E por isso, acompanhar o rito diário do grande futebol significava reforçar como legítima a outra prática: a das peladas semanais que, se botavam pouquíssima gente pra jogar com Pelé e Rivelino, salvavam muita gente de apuros e, principalmente, condenavam à mendicância e à cadeia um outro tanto.
Ora, é justamente essa base social nada romântica do futebol que sumiu de vista. Não só da consciência do torcedor como também da fachada limpa e apresentável do jogo atual. Neste exato momento, cada homem que veste uma camisa de time de bairro procura a iluminação súbita de seu craque multimilionário, cujos lances mais memoráveis ele tem gravado em cassete para os dias em que o mé não basta. E haja mé: se antes, exatamente como as irmandades, os times de várzea propiciavam ganhos a partir de uma disputa amigável por favores, hoje, o futebol de várzea (tanto quanto o profissional) não rende nada ao cidadão de classe média, rendo migalhas aos pobres e enriquece apenas aos grandes jogadores e aos empregados das sucursais internacionais da mídia (que vivem como cracas no queixo do tubarão). Aliás, exatamente como a igreja só rende mesmo aos pastores (e tanto mais quanto mais ruidosos e politiqueiros sejam e mais malas de dolares possas carregar para a Suíça).
Instalado como passatempo de sinhozinho, o futebol penetrou tanto no Brasil justamente porque, pouco a pouco, tornou-se um jeito de os pobres negros e a miserável classe média branca "agregarem valor". Valor aliás arrancado legitimamente de si mesmos (já que tinham e não tinham como sobreviver com um mercado interno tão escasso quanto o que havia no Brasil antes da década de 40). Era como o carteado. Era como o jogo do bicho, o lugar em que cada pobre diabo "fazia sua fezinha" e às vezes tirava a sorte... média. Com a modernização, essa pré-história do futebol-macumbeiro-jogo-do-
5. O ebó moderno de Káká x a fúria independente do torcedor esclarecido
Dito isso, o que tem Kaká a ver com toda a historia?
Pois bem. Marcelinho carioca era crente, muitos jogadores são crentes. Mas quando Kaká - jogador branco, criado no São Paulo e parecido com o boneco Ken - acende uma vela para seja lá qual for sua igreja, ele está mexendo nas regras do futebol esclarecido. Não só nas do espetáculo maroto de todas as noites (cujo horário a Globo determina), como também nas da própria indústria futeboleira. O caso não chega a ser grave, mas é suspeito. Ronaldinho com suas noitadas transsex provocou piadas, mas não conseguiu semelhante façanha. Pois, diferentemente dele, Kaká não só se presta como imagem (ou "santinho") para um comercial da Nike, como também está trazendo para o seio do futebol contemporâneo uma prática escancaradamente arcaica, duvidosa. Se o país fosse o mesmo, alguns milhões de suas contas bancárias estariam - ou só na imaginação dos torcedores estariam - tirando famílias da pobreza. Mas como a religião e o jogo populares já não têm o poder que tinham antigamente, quem leva seu bocado é uma outra indústria que não produz nada além de esperança para os pobres. Essa religião é que o assinante da Placar ataca. Primeiro, porque ela não rende nada a quem já anda a perigos. Segundo, porque a esquisitisse arcaica traz reminiscências da sobremesa cavada a gols pelos mais velhos...
O poder de choque disso só podia ser muito maior do que o da quebra de qualquer tabu sexual por um jogador excêntrico, já meio gordo e, ademais, menos branco. O ebó moderno de Kaká é forte demais. Suas preces e seus milhões correndo para o bolso dos gangsters da salvação fazem com que o público pagante e assinante da ESPN torça o nariz vendo ali, bem diante dos seus olhos, aquilo que com muito custo foi reprimido pelos seus ascendentes justamente a fim de que, para seus filhos, o futebol pareça ser isso que parece ser hoje: uma diversão democrática e a laica. O susto com as demonstrações públicas de fé vem, é claro, para reprimir qualquer tipo de aproximação entre o passado do futebol e as teatralidades correlatas que os crentes pobres da Universal de Deus fazem em pequena e desesperançada escala. E o ranço que recai contra isso é o ranço de gente que não gosta de ver um costume de pobre invadindo aquela que essa mesma gente cinicamente considera a mais democrática das diversões modernas. As caríssimas camisetas oficiais, o canal de assinatura com cobertura completa, as alas vips, as copas mundiais, bem como a discussão com peritos existem exatamente para manter bem estabelecida a distância
6. Epílogo - fim do fairplay ou Pai, se me abandonares ao triste 0 x 0, eu ainda com mais sofreguidão te servirei.
Faz sentido. Se o torcedor, hoje, sob a desculpa de cultivar um hábito querido, procura distintivos de classe que o comprovem como um torcedor mais competente, é justamente porque, tanto quanto os menos competentes, ele já não pode tirar a sorte miúda na "caixinha de surpresas". Nem daí, nem do truco, do poker, da cacheta, do bingo. Em certo nível confuso de sabedoria, todo torcedor sabe disso e enxerga no futebol uma dessas forças que magicamente fazem com que a violência instituída se justifique quanto mais lhe favoreça o livre usufruto do roubo coletivo e menos lhe pesem os desconfortos de consciência decorrentes. Tomando a forma de jogo, isso não tem mal nenhum. Alí, em terreno sublimado, cada um pode dizer que quer ver os outros chafurdarem na derrota e assim gozar as glórias de ser campeão.
É assim que o futebol tem funcionado no Brasil, desde sempre. O problema, no entanto, começa a aparecer quando a dificuldade da salvar-se da miséria geral já está tão forte que já não permite que o torcedor confie apenas em seu amor pelo esporte. Esse, desde que a indústria fez do futebol um sítio de pequária intensiva, já não proporciona por si só grandes emoções. Ou então, a gente poderia dizer que os sufocos da situação de subemprego e desemprego superam-nas, obrigando o dito cujo a esforços de fanatismo displicente que nem mesmo seu avô compreenderia. Consequentemente, o amante de futebol, em nome de manter acesa a chama, precisa cada vez mais se recobrir da aura de destreza e determinação com que a propaganda reveste os craques de futebol. A contemplação distante do espetáculo se torna tão mais imperiosa quanto mais seu subtexto obsceno ameaça romper à luz do dia. Justamente por isso é preciso relativizá-la, encurtar imaginariamente a distância, fazer com que cada um, conoisseur ou não, tome parte no campo, leve às ruas as cores do time amado. Esse é o trabalho realizado pelo merchandise, que estende sob preços diversos até ao mais comum dos mortais badulaques futebolísticos.
Exatamente por essa democratização compesadora da imagem do futebol, seu caráter de luta baixa vem à tona. Quanto mais o torcedor compra gato por lebre, mais a imagem arrojada e bela do passado futebolístico - cuja força vinha da imagem de belos corpos atléticos constituídos como que espontaneamente - reverte-se no seu contrário. Um breve passeio pelas ruas em épocas em que o futebol não é uma histeria geral demonstra que a preferência por adereços de futebol desponta nos "manos" de subúrbio (não os de verdade): nos filhos de donos de microempresas. A pletora das bandeiras recobre preferencialmente hoje essa diversidade de lumpen-classe-média-baixa que não esconde a disposição de ir às vias de fato nem mesmo quando fala. Só neles a camisa veste bem - não no playboy que conhece todos os resultados de jogos desde 1930; não no moleque de rua que ostenta no peito a marca adidas. Neles, os que, recém-emersos do abismo, para não cairem de novo no fundo do poço, praticam a violência vulgar que nos demais toma a forma de assaltos ou de finas ironias. Ora, exatamente por isso, a imagem do futebol como um todo evoca a figura que constitui o maior pesadelo de tal espécime: a dos aposentados e desempregados que lotam as praças de subúrbio com suas velhas caixinhas de dominó - a inadequação da imagem residindo apenas no fato de que uns, cientes da própria situação, já perderam a voz e outros, na esperança de algum olheiro divino ou de ensurdecer o vizinho, ainda gritam.
Disso tudo se tira o seguinte: as esperanças que eram remediadas no futebol de várzea antigo de fato sobrevivem na torcida pelo futebol high-performance, mas como um fantasma. E esse, justamente, é que é o seu demoníaco sentido político. Um sentido que só tem na religião sua melhor expressão porque a religião nada mais é do que a protoforma reprimida da política moderna, precisamente a que medrou nos países em que a desigualdade extrema instalava os pobres e as classes médias como marginais da vida pública. Como se sabe, em contexto diverso, a religião era a forma de política que predominava na Europa, antes que a famigerada burguesia, uma vez completamente instalada no poder, inventasse a primeira estratégia de dominação baseada no consenso consciente dos dominados: a democracia.
Pensando nisso, a gente poderia dizer que, encantado com o jogo que já não tem nada de magia e desesperado com o risco de tornar-se um derrotado, é justamente a favor dos dribles que a vida dá na sua consciência de cidadão abandonado e de peça sem valor no mercado de trabalho que o torcedor grita "gol".
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