quinta-feira, 21 de maio de 2009

O processo de formação da minha escuta musical (I de II)

Manifesto biográfico em favor der uma escuta sem preconceitos

As palavras grifadas são links para textos, discos e vídeos.
Balada forte, pagode, quatro e tantas da madruga. Uma amiga questiona:
_ Voce diz que gosta do brega só pra causar. É impossível voce realmente gostar de Roberto Carlos e Coltrane. Ou então sua escuta é completamente esquizofrênica.

Na hora me defendi como pude, mas aquilo me ficou martelando na cabeça por um tempo. Aliás, não é a primeira vez que ouço coisas do tipo, que sou um cara inteligente com gosto musical duvidoso. Com isso, aliás, eu concordo. E como eu sempre parto do princípio de que toda afirmação, por mais falsa que possa parecer, contêm seu momento de verdade, duas questões acabaram tomando forma: uma voltada pra mim, e outra pra quem perguntava. Como se formou esse meu gosto esquizofrênico, ou seja, quais os caminhos eu percorri até chegar a minha percepção atual, e de que perspectiva ela pode ser considerado esquizofrênica, ou seja, a partir de que lugar essa minha amiga me questionava? Foi então que eu comecei um delicioso exercício de memória para tentar recuperar o processo de formação de minha escuta musical e esboçar uma resposta.

Cresci no interior de São Paulo e, como todo mundo, ia ouvindo basicamente aquilo que minha mãe ouvia. E como boa carioca, o que ela mais escutava em casa era samba enredo (na proximidade do carnaval o disco das escolas de samba era onipresente), e aqueles grupos e cantores de pagode dos anos 80, como Reinaldo, Royce do Cavaco, Marquinhos Satã, Jovelina Pérola Negra e, principalmente, Jorge Aragão, Zeca Pagodinho, Beth Carvalho e Fundo de Quintal. Além disso, toda cidade possui sua trilha sonora específica, e Marília respirava os mais variados tipos de música sertaneja, desde as mais tradicionais até as inúmeras variações de duplas. Mas esse tipo de som nunca foi consumido em nossa casa, apesar de influir em meu gosto futuro.

O pessoal lá de casa sempre teve um gosto musical eclético, e minha mãe ouvia também, ainda que menos constantemente, uns lps do Chico Buarque comprados na época de seu lançamento. Lembro que gostava muito do LP da samambaia, e também que não era conflito algum gostar de Chico na mesma proporção que do Emílio Santiago. Outro dado importante é que eu fazia um curso de piano no conservatório local, e por isso parte de meu repertório incluía autores clássicos, com quem tinha uma relação de amor e ódio, por ser obrigado a saber tocar aqueles temas complicados. Com isso ia aprendendo a ouvir autores cujo universo no geral escapa ao brasileiro, e formando meu próprio cânone, que incluía Beethoven e Mozart, este muito por causa do filmaço Amadeus. Mas nunca considerei (como acontecia com muitos dos meus colegas de conservatório) essa música como o que há de melhor e mais elevado em termos de arte. Achava bonito e tal, mas nunca foi para mim a música por excelência.

Nessa época eu não definia um estilo predileto, ou mais interessante. Eu gostava de música, qualquer uma, desde que me agradasse. O interessante de se observar é que tal disposição auditiva para o ecletismo não era uma exceção minha ou de minha família. Seja porque o mercado é bastante heterogêneo em sua rigidez, seja por qualquer outra razão, o fato é que boa parte das pessoas tem uma propensão à heterogeneidade musical. É claro, formam-se os grupos e os gostos, e as preferências vão se fixando, mas mesmo nos casos das tribos existem aquelas mais fechadas e as mais abertas. Por exemplo, os metaleiros são muito mais intransigentes com outros estilos musicais do que os pagodeiros. De qualquer modo, é muito mais comum do que se imagina encontrar pessoas que gostam, por exemplo, de Pavarotti e Reginaldo Rossi, de Tim Maia e Ivete Sangalo. Existem casos de maior incompatibilidade, é claro, geralmente envolvendo questões exteriores ao plano estético, como de classe (gostar de João Gilberto e Waldik Soriano), ou de geração, (Francisco Alves e Marisa Monte), mas mesmo esses casos não são incomuns - apesar dos ouvintes das camadas cults (jazz, MPB, clássico e Cia), serem mais intransigentes do que a média, com o argumento pouco convincente de que são mais criteriosos e refinados. Outro dia mesmo fui jantar na casa de uns amigos cearenses que ouviam com o mesmo grau de interesse e prazer Fernando Mendes e Baden Powell. A princípio, as pessoas gostam de muitas coisas de diferentes modos, variadas formas de amor que depois vão se fixando (ou não) em uma só, como em qualquer relacionamento, o que sempre comporta certa dose de artificialidade, má fé, sinceridade e ingenuidade. Mas o certo é que muitas vezes as pessoas são mais ecléticas (ou esquizofrênicas, caso se parta de uma perspectiva que estabeleça o valor à priori) do que elas próprias imaginam. Creio que essa foi, pois, a primeira lição que aprendi – não existe uma única escala de valor para se julgar objetos estéticos diferentes.

Mas até esse ponto meu gosto musical estava ainda em formação, não sendo diretamente fruto da minha escolha. Eu precisava ainda matar meus pais (no caso, minha avó e minha mãe, o que ajuda a explicar tanto meu amor pelas mulheres quanto meu lado mais afeminado) para me formar enquanto sujeito. Foi então que eu me tornei punk – ainda bem que na época não existiam os emos. Só que um punk de interior, que se limitava a ouvir as músicas e a usar roupa rasgada junto com mais dois ou três adolescentes. E punk de uma banda só. Foi nessa época em que o cd se popularizou, e todos os meus eram do Ramones. Foi um momento importante de definição de identidade, o momento “Morte ao mainstream e as rádios, ao breganejo e ao pagode”! A essa fase imediatamente se seguiu outra, sem grandes conflitos, quando eu comecei a tocar justamente em um grupo de... pagode. O grandioso Sob Medida. Sai de cena a camiseta preta rasgada e entra a camisa pólo bem passada. E agora minha escuta se concentrava basicamente em Soweto, Exaltasamba, Art Popular, além de continuar ouvindo os pagodeiros mais antigos como Zeca Pagodinho e alguns artistas da MPB, como Gilberto Gil e Djavan. A grande descoberta na época foi, além é claro do prazer de se tocar em conjunto, a da complexidade daquelas músicas, em especial no que diz respeito aos arranjos. Os argumentos daqueles que diziam não gostar de pagode porque eram musicalmente pobres a partir dali não colavam mais, e tampouco aqueles que reclamavam da pobreza das letras (quem curte uma banda que tem uma música chamada “Fear of the dark” não pode falar muita coisa). Mas mesmo nessa época eu achava os pagodeiros anteriores (Fundo, Jorge, Zeca, Paulinho da Viola) mais interessantes, e curtia mais partido alto do que aquele som mais meloso de pagode sem percussão. E nesse período eu ainda desconhecia Cartola e Nelson Cavaquinho, por exemplo.

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Mesmo nesse momento de fixação de identidade, portanto, eu acabei não me prendendo a uma coisa só, ouvindo com a mesma naturalidade e para finalidades diferentes tanto Legião Urbana quanto Soweto, descobrindo inconscientemente suas afinidades. O passo seguinte do processo se deu quando sai da minha cidade para ingressar em um curso de ciências humanas da USP. Um momento central de rompimento com o ambiente familiar, de ampliação de horizontes e ao mesmo tempo de recrudescimento. O que leva para a segunda questão proposta, que seja, para quem o ecletismo constitui um problema. Logicamente, para aqueles que pretendem definir quais os critérios de valoração estética a partir de uma perspectiva mais rígida. E a USP é justamente o espaço onde se encontram aqueles que se julgam os mais gabaritados para definir o que tem ou não valor. O antro do bom gosto e a vanguarda do já estabelecido. E foi nesse espaço com o qual eu não havia tido contato anteriormente que eu pude ampliar meu repertório de uma maneira extraordinária, e ao mesmo tempo passar para o time de defensores da boa música contra o lixo que reina por ai.

Muitas foram as descobertas, que continuam até hoje, mas algumas foram de fato marcantes, como o encontro com a música mais experimental. A grande transformação se deu quando eu ouvi Tom Zé (acho que o primeiro foi o Jogos de Armar), bem quando da época do relançamento de seus discos pela Trama. Até então eu não imaginava que aquilo podia ser feito com a música, uma coisa ao mesmo tempo radicalmente estranha e divertida. Nessa época tinha um ambulante na USP - a quem eu devo muito - e que era um dos caras que mais entende de música que eu conheço. Com ele comprei todos os discos do Tom Zé. Fiquei fissurado no Estudando o Samba, tentando decifrar todos os experimentos que ele fazia com o estilo. Descobri – a grande lição da arte moderna - que a música pode servir também para questionar o já estabelecido, ao invés de só estabelecer. E quase inevitavelmente caí no equívoco muito comum de achar que essa é a única, ou a mais importante função da música (ou da arte em geral). A partir desse encontro com o baiano fui atrás de outras coisas experimentais, radicalizando até chegar a vanguarda da música de concerto, como Stockhausen, Ligetti, Bério. Por algum tempo só ouvia isso, fazia parte dos Viciados em Xenaxis. Meu radicalismo na época chegou a tal extremo que eu não agüentava ouvir uma escala cromática Ocidental, tanto que passei a ir atrás de sons de outros Continentes, dos ragas indianos mais tradicionais ou das polifonias africanas mais desconcertantes. Descobri concepções de mundo a partir de sonoridades radicalmente diferentes da nossa. Sugiro a todo mundo que procure o Kecak de Bali, ou o canto sagrado dos monges tibetanos, a coisa mais sombria que eu já tive oportunidade de ouvir. Ainda hoje tenho uma coletânea de cantos de ciganos do sul do rajastão, que ilustra muito bem esse momento de rejeição absoluta de tudo o que fosse pop.

Seguindo pelo mesmo caminho, me deparei com o Jazz, e me apaixonei pelos álbuns do Miles Davis (um dos sujeitos mais heterogêneos e inovadores da história da música), pelo sax visceral de Coltrane, pelos álbuns ao mesmo tempo modernos e tradicionais de Mingus, por Herbie Hankcok. Formei assim meu segundo postulado da época, de que a música além de se afastar do pop, tem que ser brilhantemente executada por músicos extraordinários. Não que eu houvesse abandonado a escuta de canções mais tradicionais. Ao contrário, apreciava agora bastante a poesia de Chico Buarque e de Vinicius, a delicadeza complexa da Bossa Nova (especialmente do brilhante João Gilberto, em quem fiquei um tempo viciado) e seus derivados mais interessantes, como João Bosco. Admirava também os grupos do manguebeat, que representavam ao mesmo tempo uma grande originalidade e um apego ao mais tradicional, algo também muito valorizado pelas camadas cults – música tradicional é aquela que não se “vende” ao mercado, como jongo, maracatu, cacuriá e outras manifestações populares mais tradicionais. Nessa época comecei a conhecer e freqüentar os grupos de cultura popular, seja tocando, seja dançando. Em suma, ouvia e apreciava a música de bom gosto e refinada, complexa e essencialmente não mercadológica, como se isso de fato existisse. Nessa época aprendi a lição transmitida por Coltrane e Hermeto, de que é possível criar obras geniais que se afastam dos parâmetros mais imediatos da escuta comum, mas que ainda assim guardam uma estranha beleza. E também a de João Gilberto, de que a canção é um conjunto altamente complexo sob uma aparência de despojamento. Esse foi o momento em que eu adotei irrestritamente o ponto de vista da camada cult defensora do bom gosto, julgando todas as manifestações musicais a partir do paradigma muito especificamente localizado da música para ouvir. Todas as músicas valorizadas por essa vertente têm em comum (com exceção da música mais tradicional, anterior) o fato de ter como horizonte uma sala de concertos, com uma platéia totalmente absorta e consciente, o próprio sujeito Ocidental moderno encarnado. Criticava o pagode e a música brega como o pior dos lixos, música de massa, desinteressante, cuja única função relevante era a dominação, mais ou menos como o samba era visto em seus primórdios. Ou seja, emburrecia na medida em que ia ficando mais culto. De fato existe algo de verdadeiro nessas afirmações, porém o que atualmente me parece o mais importante é que a acusação de baixa qualidade musical tem como principal finalidade desobrigar o autor da crítica a se aproximar do objeto criticado. Mantêm-se dessa forma uma estrutura sustentada em um preconceito profundo disfarçado de senso estético. Porque dizer simplesmente se algo é bom ou ruim não traz nenhuma contribuição relevante para o conhecimento, traduzindo mero descaso, preguiça ou má vontade. O relevante é saber de que modo essa coisa é ruim.

Um comentário:

  1. Salve,salve!

    O que posso dizer? Adorei o texto. Os links também são ótimos e como eu gostaria de ter mais tempo para assistí-los, um por um.
    Você discute o ponto que descobri fundamental desde que resolvi experimentar - como costumo dizer- essa roupa apertada que é a academia: os critérios de valor.
    Sim, sim, sim a todo instante estamos confirmando sistemas de valor e raramente há uma discussão conceitual deles.
    Na letras isso é explícito. Somos, teoricamente, instrumentalizados,capacitados para ler com rigor e distinguirmos a boa da má literatura...aliás, mais que isso para aprendermos a reconhecer o que é literatura. Mas quais são os textos utilizados para essa "ensinança"? Os já legitimados, e por critérios de valor cujos pressupostos muitas vezes permanecem obscuros(o Jaime GINZBURG tem um texto interessante sobre isso, te passo por e-mail).
    Enfim, depois, na melhor das hipóteses,dá nesse tipo de comentário que você ouviu.

    Vixe Acauam, e agora?! Será que vc tá se tornando um eclético pós moderno? Ou seria um relativista pós estruturalista? Ai,ai,ai...

    Beijos
    F.

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