segunda-feira, 26 de agosto de 2013

A insustentável leveza dos pequenos gestos

TEXTO PUBLICADO ORIGINALMENTE NA PÁGINA DA TORCIDA BAMBI TRICOLOR, SOBRE A FOTO PUBLICADO NO INSTAGRAM PELO JOGADOR EMERSON SHEIK, DO CORINTHIANS, EM QUE ELE APARECE DANDO UM SELINHO EM UM AMIGO.

Quando a sueca Emma Green Tregaro mostrou suas unhas pintadas com as cores do arco-íris, recebeu da supercampeã russa Isinbayeva uma reprovação forte: "É desrespeitoso com o nosso país. É desrespeitoso com nossos cidadãos porque somos russos". Isinbayeva se referia, então, à legislação que cerceia direitos dos homossexuais na Rússia, como adotar crianças ou "fazer propaganda homossexual". A imprecisão desse conceito serve bem à homofobia, como ficou claro na tentativa de explicação que Isinbayeva deu, após a repercussão de suas palavras: "Quero expressar de maneira firme que me oponho a qualquer discriminação contra a comunidade gay a respeito de sua sexualidade (...). Se nos permitirmos promover e fazer esse tipo de coisas, tememos muito por nossa nação porque nos consideramos normais, com um padrão. Nós apenas vivemos com homens ao lado de mulheres, e mulheres ao lado de homens. Tudo deve estar bem. Isso vem da história. Nós nunca tivemos problemas assim na Rússia. E não queremos ter problemas assim no futuro."

A homossexualidade seria, portanto, um desvio de conduta, um problema, uma anormalidade que ameaça o futuro e o estilo de vida russo que, segundo Isinbayeva, se calca na existência de casais heterossexuais exclusivamente. Numa lógica de tal forma opressora e contrária à diversidade, não admira que um gesto tão simpático à causa LGBT quanto simples - unhas pintadas com as cores do arco-íris - adquira esse superpoder de contrariar e desrespeitar uma nação, suas leis, seus cidadãos, seu projeto de sociedade, seu futuro. Esse temor pelo diferente, essa necessidade de que ele permaneça escondido, inaudito, invisível, isolado é, ora pois, a raiz primeira da homofobia. E a homofobia, como projeto político, depende de amarras tão apertadas, de um discurso tão restrito que basta um gesto positivo em relação aos LGBT, por menor que ele seja, para que se exponha seus limites e fissuras, sua artificialidade (a despeito de toda pretensão "naturalista" que o homofóbico evoca). Esses gestos apontam, quando não criam, os espaços de resistência que não permitem, afinal, que o discurso homofóbico seja o único possível, ainda que muitas vezes ele seja proferido pela maioria.

Não é muito diferente do beijo do Sheik no amigo. Há quem relativize o gesto sob o argumento de que Sheik não é gay, não saiu do armário, chamou os são-paulinos de "bambis" há pouco tempo, etc. Que seja. Vamos primeiro estabelecer uma coisa: o Brasil não possui leis que proibem "propaganda homossexual" mas sustenta discursos muito alinhados com esta lógica. Basta lembrarmos da presidente Dilma no episódio da cartilha anti-homofobia retirada do programa escolar, da nossa atual Comissão de Direitos Humanos da Câmara, dos casos de agressões e assassinatos provocados por homofobia. Num país em que pai e filho são interpretados como casal gay por demonstrarem afeto publicamente e, por isso, são espancados, um selinho entre dois homens ganha dimensões de resistência. Não importa se Sheik é hetero, gay ou bi pois a ordem primeira é dissolver a ideia de que há eles, os gays, e nós, os normais, o padrão (essa é a conversa da Isinbayeva, aquela que não discrimina gays, lembram?). Dissolver a ideia que essas demonstrações de afeto entre homens é da alçada deles, os gays. Que beijar um homem implica em declarar-se gay, sair do armário, assumir uma opção. Pode ser isso, mas não precisa ser só isso. A possibilidade de que homens, independente de sua orientação sexual, executem gestos de afeto publicamente é algo que nós devemos celebrar e cultivar. Especialmente se esse gesto vem de um atleta, imerso num dos meios mais homofóbicos da atualidade (como temos discutido), consciente da repercussão que causará (como a legenda da foto demonstra). A definição da orientação sexual do jogador não importa em absoluto, importa o beijo.

A reação (de boa parte) da torcida corinthiana lembra um pouco a Rússia de Isinbayeva. "Aqui é Corinthians" é o grito de ordem, a necessidade de delimitar o espaço da interdição e lembrar que, ali, naquela torcida, "não há esse tipo de problema". Que isso é "coisa de bambi". E não nos enganemos, se fosse um jogador de qualquer outro clube, receberia as mesmas chacotas de rivais e a mesma rejeição dos seus. Uma comunidade homofóbica, seja uma nação ou uma torcida de futebol, depende dessa "defesa" de sua honra, dessa manutenção de sua "pureza", uma vez que homossexualidade é defeito de caráter, vergonha, nojeira. Defender-se da acusão de ser gay e, ao mesmo tempo, lançá-la sobre o outro e torná-lo fraco, ridículo, humilhado é a lógica dos discursos dos rivais, e talvez isso explique porque "o bambi" é sempre o outro.

Na nossa cultura, é difícil provar o teor nocivo de uma piada preconceitosa. Nossa maneira de lidar com o riso, com o esculacho, nossa postura acrítica aos discursos "politicamente incorretos" tornam complicada a tarefa. Não raro as mesmas pessoas que reproduzem piadas homofóbicas são aquelas que, diante de agressões físicas contra LGBTs, percebem ali o limite: bater não, tirar sarro sim. Então é preciso entender que, diante de racionalidades e falas em disputa por legitimidade política, é esperado que algumas contradições se apresentem - dentro de certos grupos, de sociedades, de pessoas. Talvez seja o caso de Emerson sheik, que usa a expressão "bambi" pra provocar os são-paulinos e depois posta uma foto dando selinho num amigo e dizendo não se importar com as piadas preconceituosas (que ele sabia que viriam). Isso não diminui seu gesto, apenas torna mais tortuoso o quadro geral dos acontecimentos. Não nos deixa esquecer que assim como "o gay" é sempre o outro, "o homofóbico" também o é; que ninguém está livre de expressar esse tipo de raciocínio negativo quanto à sexualidade, por melhores que sejam minhas intenções.

Reconhecer em si o preconceito, admitir e trazê-lo à tona, tentar desmontar seus mecanismos... nada disso é fácil. É preciso, no mínimo, um ambiente que apresente argumentos, interpretações, possibilidades diferentes das tradicionais, das "normais". E, nesse sentido, o beijo do Sheik, sendo tão único no contexto do nosso futebol, vale muito mais do que suas provocações homofóbicas, que se juntam aos milhões de piadas homofóbicas repetidas e cristalizadas por aí. Todo gesto positivo é bem-vindo.

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