segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Algumas notas sobre a canção (Tropicália, MPB, Roberto Carlos, Funk)

Para marcar na agenda: é preciso deslocar a leitura hegemônica da história da canção brasileira, que busca qualificar seu momento "heroico" a partir da oposição entre MPB e Tropicália, cabendo ao público qualificado escolher com qual dos dois lados se identifica, o da “crítica reformista” tropicalista ou o do “engajamento elitista” da mpb. A história é entendida a partir de pares de oposição: a Bossa Nova cria a forma que é ampliada em todos os níveis pela MPB e, na sequência, rompida pela crítica tropicalista, que desvela seus limites. Pode-se compreender a ruptura tropicalista como avanço ou retrocesso. Em todo caso, nesse momento houve uma fissura, e o festival da canção aparece como polo de interesses políticos irreconciliáveis.

Contudo devemos instaurar um terceiro elemento nesse par de oposição, aquele elemento ausente da narrativa hegemônica, cuja presença invisível (sua rasura) determina o sentido desta, estruturando-a. Trata-se, evidentemente, do fator Roberto Carlos. Esse é o "verdadeiro" elemento de oposição da polêmica, em torno do qual os outros dois fatores entram em disputa por hegemonia (de uma perspectiva mais macro, o grande elemento ausente não é a disputa política - alto modernismo MPB ou pós modernidade tropicalista - mas a disputa pelo mercado, que não era apenas uma reivindicação Tropicalista). A história, contada a partir dessa irrupção carlista, apresenta outro esquema. A ampliação do fator Bossa Nova promovida pela MPB - que a coloca como o gênero mais vendável da época - é interrompida pelo surgimento de Roberto Carlos como elemento alienígena (produzido pelo mercado), abrindo o campo para uma disputa por hegemonia. A Tropicália, assim, não é oposta ao padrão MPB, mas é a forma mesma que a MPB precisou necessariamente assumir para continuar sendo o gênero hegemônico no sistema, expulsando o paradigma proposto por Roberto Carlos do campo. Dois pólos de um mesmo modelo que se transformam para permanecer no topo.

A relação entre MPB e Tropicália é, sobretudo, de continuidade. Uma disputa entre pares, por assim dizer. Tanto que, após esse momento heroico de confronto (que evidentemente tem uma dimensão política, atravessada, contudo, pelo mercado, como aliás enfatizava o tempo todo o próprio tropicalismo), fazer música com guitarra elétrica passa a ser um privilégio da MPB que, desse modo, torna-se a música pop (desdobramento do padrão rock) por excelência do Brasil, até os anos 80, quando o paradigma da formação nacional começa a ruir. Roberto Carlos é expulso do campo e, imediatamente 'envelhece', passando a trabalhar com materiais marginalizados como serestas, boleros, gêneros de matriz latino-americana, etc... Ou seja, sua passagem para esse campo romântico\brega não se deve apenas a um desejo mercenário do rei para aumentar suas vendas, e sim ao fato de ter perdido a disputa pelo gênero pop para a MPB (durante um tempo, entre 68 e 71, Roberto até tentou integrar-se ao campo aberto pela Tropicália - é quando produz seus melhores discos - mas aí seria para sempre um sócio menor, e não o rei). Diga-se de passagem, ele revolucionou os padrões da música romântica brasileira, introduzindo alguns aspectos propostos pela... Bossa Nova (mais Tom Jobim do que João Gilberto).
Tanto a MPB quanto a Tropicália podem ser compreendidas como participantes ativos de um mesmo processo geral de fundamentação da música pop Brasileira a partir do paradigma da Bossa Nova. Sua oposição não é absoluta, tratando-se antes das tensões decorrentes dos mecanismos de adaptação na disputa por hegemonia, um esquema de adaptação ao mercado fonográfico (em seu interior, contra e a favor), para não ficar pra trás. A disputa foi, efetivamente, vencida, mas a fratura retorna, por assim dizer, pela porta dos fundos: o enigma da majestade do rei - e de tudo aquilo que, com ele, foi marginalizado e, incorporado pelo mercado enquanto tal - é uma das questões mais espinhosas da canção brasileira.
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Voltando a distinção polêmica, nos termos colocados pela Ópera dos Vivos, da Cia do Latão. Construção, do Chico Buarque, para alguns o momento de seu amadurecimento, é seu disco mais Tropicalista (não é a toa que o arranjo da canção Construção é de Duprat, e segue o mesmo esquema dialógico dos arranjos tropicalistas). Significa que ele consegue romper com o conservadorismo tropicalista com as armas do inimigo, ou que ele se vendeu, mas depois entra nos eixos? Tom Zé, aquele do comercial da coca cola, é tropicalista. Quer dizer que o Tom Zé é mais conservador do que parece, ou que a Tropicália é mais a esquerda do que se assume? Os mutantes também são tropicalistas. Em que sentido o som que eles fazem pode ser classificado como uma regressão ao mais mercadológico e comercial da canção? Clube da esquina e Novos Baianos só existem via tropicalismo, ou não? E se desautomatizassemos esses pares de oposição, não seriam mais produtivas as leituras? Ou estaríamos sendo por demais tropicalistas (uma reedição no campo da canção do que no plano intelectual aparece como negativismo marxista versus positivismo pós moderno, enquanto Zizek, Jameson, Stuart Hall, Ramond Willians, Spivak, Judith Butler tão dando risada na nossa cara...)

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Se o funk carioca é um gênero que, ao que me parece, consegue dizer mais sobre aquilo que o país se tornou do que o excelente último disco do Chico Buarque, ou a ainda melhor trilogia Cê do Caetano ou o excepcional disco de estreia do Metá Metá. E se, além disso, o gênero causa mais incômodo aos setores conservadores da sociedade (MC Daleste foi morto por sua música, assim como John Lenon e Fela Kuti, e aos que afirmam que ele foi morto pelo posicionamento 'político' e não pelo potencial estético, a rigor, regressivo, pode-se argumentar que uma das complexidades do funk - e do rap, com as correspondentes diferenças de grau - é justamente a promiscuidade entre as dimensões ética, estética e política), gerando um quiproquó valorativo em que esquerda e direita concordam que a Bossa Nova é foda (e é mesmo) e esquerda e direita concordam que o funk é esteticamente 'pobre', ou mal estruturado (em certo sentido é quase uma ilustração didática do caráter regressivo da canção de massa adorniana, em termos de organização dos materiais. E é mesmo). E se ambos os juízos estão, em seus limites, corretos - não se trata de falar que o funk carioca é avançado esteticamente, negando suas limitações - pode ser que o que tenha mudado fundamentalmente seja a própria possibilidade de atribuir valor a partir da relação entre qualidade estética e posicionamento crítico (o fundamento da crítica imanente?). O que não é o mesmo que dizer que de nada serve mais atribuir valor (o mercado sempre atribui valor) mas, antes, que a própria noção do que seja valoração pode ter mudado radicalmente (é claro que isso não é novidade, mas é claro também que a tradição crítica brasileira está devendo em termos de crítica séria da cultura de massas - a mais rasteira - para além dos diagnósticos já conhecidos). Ao menos, essa relação entre forma avançada e crítica radical já não está dada de antemão, sobretudo quando o capital nivela tudo, reproduzindo-se tanto pela crítica mais radical quanto pelas formas mais conservadoras. Nem sempre a qualidade estética é progressista ou menos insignificante por ser foda (mas isso nós sabemos, não é, embora ainda se trate problemas formais em termos de insuficiência de radicalidade) e (aqui é mais complicado de aceitar) nem sempre o que é progressista é o que se precisa no momento para fazer a sociedade avançar em termos progressistas (ainda que as definições precisas sejam, mais do que nunca, necessárias. Afinal, o gigante acordou).

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