segunda-feira, 26 de agosto de 2013

O Senhor dos ané(a)is


 
Esqueça Grande Sertão: veredas. A grande saga homoerótica da literatura do século XX é O senhor dos an(a)éis. Nunca queimar o anel foi tão celebrado e tratado como um feito tão heroico (Brokeback Mountain passou muito longe disso), capaz de salvar toda humanidade, apesar de seu alto custo em termos pessoais. Um dos trunfos do filme é alegorizar o superego castrador do Hobbit em uma figura repulsiva marcada pela dualidade: a função de Smeagol é evitar a todo custo que Frodo queime seu anel com Sam. Para isso, procura o tempo todo causar discórdia entre o casal. Seu grande trunfo, inclusive, não poderia ser mais explícito: o gesto mais radical de Smeagol pra evitar que o senhor Frodo enfim queime o anel é atirá-lo diretamente para uma ARANHA enorme, cabeluda. Mas o amor vence, e o guerreiro Sam salva a mocinha mais uma vez.

Quando enfim, consumado o ato, e tudo volta à normalidade, Sam arruma um casamento qualquer pra obedecer as convenções homofóbicas da época (é interessante que do quarteto de Hobbits, só ele precise se casar). Frodo imediatamente cai em depressão profunda, até que decide morrer. É o fim da Sociedade do Anel.
 
O texto-piada acima rendeu uma discussão breve no facebook. Uma das críticas, feita pelo amigo de um amigo, é a de que era uma análise vulgar. Segue então a resposta que escrevi.
Primeiro que eu concordo com seu amigo, se por vulgar ele estiver entendendo uma análise rasa, empobrecida. De fato, eu acho que esse misto de 'análise' com piada não se sustenta enquanto proposta analítica do filme, por ser muito redutora. É muito pobre e, nesse sentido, vulgar. E menos ainda com relação ao Grande Sertão, muito superior, mas aí o rebaixamento foi pura provocação (mas... penso também que uma análise séria de gênero do Grande Sertão, que considere o feminino ou a pulsão homoerótica evidente ali como um elemento disruptor de padrões discursivos hegemônicos, pode apresentar conclusões interessantes).
Agora se por vulgar ele estiver recolocando em pauta essa divisão que vc apontou, entre vulgar e não vulgar, aí eu concordo integralmente com vc: para pensar a cultura de massa, é preciso descondicionar o discurso saindo de qualquer variação do dualismo alto x baixo com o qual o discurso hegemônico procura enquadrar o popular (bom x mal gosto; vulgar x elevado; atrasado x progressista). Engraçado que eu tava lendo justamente sobre isso hoje, o como a reencenação desse dualismo é o modo de contenção do poder disruptor do popular, capturado em categorias de gosto, valor, cânone.
Enfim, se vulgar se refere ao alcance analítico da leitura, eu concordo com seu amigo. Agora se está se referindo a um critério metodológico, aí eu concordo com você.
Agora, duas outras coisas. Por mais que seja mais piada que análise, eu acho que capta algo do movimento geral do filme, que é interessante. De fato, é como se o filme tivesse uma dupla ambientação: a parte masculina, ativa, das guerras, e a saga homoerótica dos hobbits. No livro do Tolkien, isso tem a ver com certa valorização da burguesia inglesa, os heróis da nova era. Já no filme, penso ter a ver com uma fragilização do macho presente na ideologia dominante em hollywood, presente em incontáveis níveis, e que marca a passagem a partir dos anos 90 para a forma cínica contemporânea.
O outro ponto que é interessante é um lance bem pós estruturalista, porque tem a ver com tradução. Eu não faço ideia se termos como 'queimar o anel' e 'aranha cabeluda', que são "conceitos" chaves da minha 'interpretação', em inglês tem a mesma conotação sexual! Se não, é como se fossem pontos da sacanagem que só poderiam estar visíveis para quem não compartilha da linguagem de quem produziu a história. Ou seja, só faz sentido no ponto cego da linguagem, mas não deixa de ser 'verdadeira' porque o filme, de fato, tem algo de gay. Derrida adoraria isso...
Abraços mano! Compartilha com o seu brother.

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