sexta-feira, 23 de julho de 2010

A Potencialização do Frágil: Bloco do eu Sozinho e Ventura, do Los Hermanos (1\1)


O artigo sobre o novo comercial da Renault me inspirou a escrever esse texto sobre o Los Hermanos, que eu acredito servir como complemento para as questões ali levantadas. Isso porque a meu ver o grupo também coloca em cena o mesmo tipo de subjetividade exposta e afirmada pelo comercial enquanto ideologia – a do vencedor derrotado, aquele que cinicamente aceita não mais ser um herói, tomando a fugacidade da forma mercadoria enquanto norma e novo padrão – mas para, a partir daí, construir uma postura mais crítica em relação aos valores tidos como “vencedores”. A fragilidade é um elemento de problematização, e não de ostentação.

Na verdade, esse posicionamento foi uma conquista gradual na carreira da banda. No seu primeiro disco, de maior sucesso, o que predominava era uma variação do mesmo esquema ideológico do comercial, que pode ser observada no maior sucesso do grupo, Anna Julia (que é uma boa canção passional).
Nunca acreditei na ilusão de ter você pra mim\ Me atormenta a previsão do nosso destino \ Eu passando o dia a te esperar \ você sem me notar \ Quando tudo tiver fim, você vai estar com um cara \ Um alguém sem carinho \ Será sempre um espinho\dentro do meu coração.
Esse sujeito passional e passivo da letra toma forma em uma estrutura musical retro, que repõem o esquema do rock clássico a la Beatles ieieie (a coroação máxima foi a regravação em inglês da canção pelo próprio George Harrison, o que não é pouca coisa). A propósito, essa é uma típica postura emo: aceitar afirmativamente um novo tipo de subjetividade fragilizada – o homem pós-moderno – mas sem alterar padrões já consagrados da superestrutura. O sujeito muda de atitude, como no estágio heróico do punk, mas essa nova revolta (agora literalmente passiva) vem embalada no velho esquema de sempre. Sua razão de ser é a reprodução da mesma forma. O significado de ser emo está tanto em chorar como em consumir os estilos fashions que vão se reproduzindo, na mesma proporção. Aliás, mesmo o sentimentalismo tem uma óbvia conotação fake, facilmente identificável nas lágrimas falsas que fazem parte do figurino, juntamente com o piercing no nariz ou na boca e o cabelo style.
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É disso que foge o grupo, apesar do Camelo não dispensar assim tão fácil

Com o lançamento do Bloco do eu sozinho, disco de 2001, as coisas começam a tomar novos rumos na vida do grupo. Já a música de abertura do álbum anuncia a transformação
Toda banda tem um tarol, quem sabe eu não toco \ Todo samba tem um refrão pra levantar o bloco \ Toda escolha é feita por quem acorda já deitado \ Toda folha elege um alguém que mora logo ao lado \ E pinta o estandarte de azul \ E põe suas estrelas no azul \ Pra que mudar?
A primeira mudança significativa é uma tomada de consciência da própria sonoridade, expressa pela letra (postura típica da Bossa Nova e certa vertente da MPB, daí a aproximação de Camelo e Amarantes com o gênero, e uma das causas estruturais da dissolução do grupo). Essa percepção revela uma preocupação com o estabelecimento de uma relação mais orgânica entre forma e conteúdo. A nova atitude não pode vir ancorada nos velhos esquemas. Esse novo sujeito que ao invés de brincar e pular no carnaval prefere contemplar o seu fim, será agora expresso por canções que rompem com o grau de certeza do hardcore pop emo. Agora o padrão não é mais os Beatles, do surgimento do pop, mas o samba e outras bossas. Só que um samba sem refrão, percussão, roda ou sambista. Pois afinal:
Quem se atreve a me dizer do que é feito o samba? \ Quem se atreve a me dizer?
A identificação com o samba não se trata de uma simples reverência, mas tem por função manter a ambigüidade das canções, característica que irá marcar toda essa nova fase do grupo. Pois é óbvio que não estamos diante de um grupo de samba, mas tampouco se trata de um grupo de roqueiros descendentes do rock clássico. O sujeito derrotado vai ser agora aquele que se recusa a aceitar classificações fáceis e a se delimitar em um estilo ou categoria. A aceitação da derrota se converte em recusa contínua, que toma forma estrutural nas canções. Ser derrotado é estar à parte do mundo, e não tranquilamente inserido como na fragilidade emo. Em “A flor”, por exemplo, o triangulo amoroso se confunde até o ponto em que as identidades não podem mais ser facilmente reconhecidas. A canção começa com uma introdução meio capenga, para em seguida anunciar um hardcore convencional. Mas a partir daí a flor vai confundir todos os protagonistas até o breque que se anuncia em forma de samba. Definitivamente o grupo saiu do esquema pop hardcore.
Em “Retrato pra Iaia”, outro semi-samba tímido latinizado, a melodia faz um caminho inusitado – o grande talento de Amarantes - que sempre rompe com a linearidade esperada, especialmente no refrão. “Assim será” se constitui a partir da quebra de expectativa dos momentos de ênfase da melodia e do acompanhamento, que se mantem até o final. O rock mais pesado se anuncia e se retira continuamente, de modo que o lamento do sujeito nunca é levado até o limite. Sua subjetividade é interrompida pelo arranjo. A condição de fragilidade desse sujeito que não mais tem certezas ou expectativas é confirmado por uma forma que coloca a incerteza em seu cerne constitutivo, em oposição à certeza cínica exposta na ideologia emo e no comercial da Renault.
Papel fundamental nessa resignificação fica a cargo dos arranjos, que nesse disco são brilhantes, especialmente por conta dos metais, que inserem novos sentidos e estabelecem uma relação dialógica com a melodia e a letra, ao invés de simplesmente reforçar informações. Como no clima meio circense afrancesado de “Cade teu suin”, canção que expressa brilhantemente a adoção da incompletude e da incerteza como parâmetro de criação, a ponto de beirar o experimental:
Cadê teu repi \ quem é teu padrin \ onde é que tu to \ Cadê teu suin? \ guitarra não po \ desista mole \ quem é que te indi \ cadê teu suin?
O sentido se completa, mas deslocado, fora de lugar, re-elaborando a relação convencional entre as frases. Entre o samba, o rock e a chanson francesa revela-se esse novo sujeito que não aceita classificações simplistas.
Guilhotina? \ eu que controlo o meu guidom! \ Com ou sem suin
Aliás, o disco apresenta inclusive uma canção em francês “Cher Antoaine”, que termina com outra crítica ao mercado, em português. Além de uma valsa, “Mais uma canção”. Ao lado dessas, outras canções mais convencionais, como “Sentimental” e “Casa pré-fabricada”. “Deixe estar” é um ska com arranjo bem divertido, que remete a um saloon de faroeste, para no refrão cantar uma dor de cotovelo em estilo hardcore. O efeito do arranjo é realizar um comentário irônico que retira o peso da amargura do sujeito. Pensando retrospectivamente, esse disco parece mesmo ser uma transição entre o anterior e o Ventura, pois várias canções mantém os temas de separação e amor com resquícios do hardcore anterior, mas sobre o qual é acrescentado um comentário que o desmonta. O resultado é bastante inovador. “Deixa eu brincar de ser feliz”.
“Fingi na hora rir”, é uma baladinha positiva que não mantêm o nível das demais. Já a balada “Veja bem meu bem” é linda e poderia ser cantada por Roberto Carlos. O arranjo aqui é bem tranqüilo, convencional, mas a letra guarda uma surpresa ao final que novamente rompe com as expectativas e confere uma significação irônica para o acompanhamento (como acontece com os boleros de João Bosco). Enfim, todo o álbum, com exceção de algumas canções, procura instaurar essa aura de incerteza e ambiguidade para expressar esse novo sujeito que se assume enquanto perdedor sem aceitar um enquadramento fácil no mundo, seja dentro de um grupo, seja dentro de um carro. Ainda não tão claramente definido como no trabalho posterior, o disco aposta em diversas tendências diferentes, inclusive recuperando momentos anteriores, como em “Tão Sozinho”, e por vezes tentando um experimentalismo que não casa muito bem, apenas para brincar de ser feliz, como as cordas que fazem acompanhamento em “Adeus Você”.

A Potencialização do Frágil: Bloco do eu Sozinho e Ventura, do Los Hermanos (2\2)


Depois do apanhado de canções francesas, faroeste, valsa e ska, que é o Bloco, Ventura pode ser visto a princípio como uma guinada do grupo para um indie mais tradicional. Pode, mas tal leitura seria, para dizer o mínimo, parcial. O Drummond de “Claro Enigma” trocou uma poesia de forma mais ostensiva, retornando ao soneto e à formas clássicas, e Pelé na copa de 70 já não era aquele furacão que por todos passava, mas o distribuidor tranqüilo e magistral. Pode-se dizer que esses gênios deram uma guinada mais conservadora, ou pode-se com mais propriedade, afirmar que eles passaram por um processo de maturidade. E é isso o que acontece com esse disco do Los Hermanos, seu álbum da maturidade, assim como o 4 será o da senilidade. Os elementos de ruptura do disco anterior estão ainda presentes, só que concentrados na forma mais elementar da canção, tencionando expectativas de uma forma mais contida, por vezes mais eficaz (processo semelhante ocorreu com outro monstro sagrado da nossa música, Itamar Assumpção, que sofreu um gradual processo de acomodamento das rupturas até atingir um maior grau de organicidade nos últimos álbuns, não se tratando aqui de juízo de valor estético, mas apenas descrição de um dado formal). A estética da ambigüidade, do rarefeito, do impreciso atinge aqui outro patamar, As letras revelam e ocultam, as melodias sugerem caminhos tortuosos, que poderão ser negados. Os metais voltam a ser ilustrativos, mais fortalecendo que dialogando com os sentidos da canção, mas ainda guardam o poder de ampliar sentidos e romper como em “Deixa o verão”. As músicas continuam dispensando o refrão, negando o jubilo conciliatório final. O louvor do perdedor implica na aceitação da fragilidade, tida agora como um modo de questionamento da força, da razão, daquilo que está estabelecido. Daí o aparecimento de certos personagens, como a mulher que não aceita mais o seu castelo-prisão em “Do lado de dentro”, ou que cansou de ser colocado em segundo plano pela “Outra”, e ainda o casal de velhos que aceitam a negatividade absoluta (morte) por amor. Todas figuras positivadas em relação ao lado vencedor, o já estabelecido, a norma. Mesmo o amor aparece fragilizado em vários momentos, com um misto de ironia e seriedade.

Impressiona a quantidade de excelentes composições do álbum, fazendo deste a meu ver um dos grandes discos da música brasileira. Peças delicadas que falam de dor e separação, mas também de se aprender a viver a dor, ao invés de exibi-la aos quatro cantos, que é outra forma de se esconder:
Não há ninguém capaz \ De ser isso que você quer \ Vencer a luta vã \ E ser o campeão \ Pois se é no "não" que se descobre de verdade
Logo de início, um samba auto referencial, diferente, que não aceita ser subjugado pela camisa de força do estilo, e depois “O Vencedor”, com sua letra manifesto pró-sujeito derrotado. Na sequência duas lindas baladas,o rockabillie suave “Ta bom”, com um excelente arranjo bastante dinâmico que ilustra, comenta e direciona o sentido das explicações de Camelo a seu amigo sobre as desvantagens de ser um macho vencedor com uma mulher, e a declaração de amor delicada de Amarantes em “Último Romance”, uma das poucas que não falam da separação, mas que também trata da fragilidade, pois pode ser interpretada como um caso de amor entre idosos, ou entre sujeitos em alguma situação extrema. Nesse disco Amarantes se revela como grande letrista, com suas canções de amor construídas a partir de eventos cotidianos, mas com certo grau de mistério que deve bem mais a Renato Russo do que a Chico Buarque, como se costuma dizer. Assim como na mais cifrada “Do Sétimo Andar”. Alias, essa é um bom exemplo de como as letras do grupo se constroem no limiar entre o que se revela e o que se oculta, pois nesse caso a descrição das cenas cotidianas carregam significados implícitos que não possibilitam constituir uma narrativa, mais um signo da fragilidade estrutural que diferencia o grupo.
E foi difícil ter que te levar \ àquele lugar \ Como é que hoje se diz? \ Você não quis ficar
Ao invés da especificação do lugar, uma pergunta que amplia a obscuridade, revelando entretanto certa incompatibilidade de interesses
E se eu numa esquina qualquer te vir \ será que você vai fugir? \ Se você for, eu vou correr
Correr dela ou correr para ela? Impossível dizer. Os encadeamentos narrativos são subjetivos e não se revelam. Podemos interpretar de inúmeras formas quais são os personagens envolvidos (mãe e filho drogado, Amarantes e seu cachorro, mãe e filho abandonado num abrigo...), nenhuma estará completamente certa ou completamente errada. O que importa captar é o próprio jogo de ocultamento\revelação que trava o que é narrado e se recusa a transformar a fragilidade em um discurso linear.

“A outra” cede voz ao eu lírico feminino, um desdobramento lógico da crítica ao vencedor (o macho dominante) empreendida pelo grupo nesse disco, em um clima meio Havaí zen (“Como uma onda”, do Lulu Santos) latinizado, em outra canção circular onde o clímax constantemente se anuncia e se esvai. “Cara estranho” tem a forma de um rock mais tradicional, mais ainda aqui a relação forma conteúdo é bem realizada, porque a personagem principal é um vencedor típico, hardcore. Só que este é aqui visto a partir de um olhar crítico. “Além do que se vê” tem letra e melodia excepcionais, além de um arranjo bastante competente que cria o clima perfeito para tratar de uma história de separação e superação. Nesse disco o talento dos dois compositores está a toda força, as letras tem um desenvolvimento melódico e semântico bastante incomuns, sem perder a delicadeza e o poder de fixação.


Na sequência surgem três peças geniais que merecem um olhar mais detido. “Conversa de botas batidas” é uma canção brilhante, que confirma que o tema do grupo deixou de ser o amor imaturo de adolescente emo. Ser um derrotado não é se exibir por ai com cara de choro, mas aceitar com humildade e consciência o vazio primordial da existência. Diferente das outras composições, dessa vez a base do arranjo fica por conta do piano, o que a deixa soando como aquelas grandes canções do Elton John do Goodbye Yellow Brick Road, apesar de se tratar aqui de um samba enrustido. A música se constrói a partir do encaminhamento perfeito de partes com sentido melódico distintos, que fazem com que a exaltação final – com coral e tudo – não soe piegas. Uma análise semiótica dessa composição seria bem útil para revelar seu alto grau de complexidade e acabamento formal. Aliás, o clima final, exultante, é bem diferente do restante das composições do grupo, que no geral terminam sem ênfase, em pianíssimo. É que nesse caso a letra, baseada em história real segundo o próprio Camelo, trata de um casal de velhos amantes que decide caminhar juntos para a morte, em paz e sem mais esconder seu amor, em um hotel que sofre um incêndio. Estamos dessa vez diante de um caso extremo de aceitação da maior “derrota” de todas, a morte.
Deixa o moço bater \ Que eu cansei da nossa fuga \ Já não vejo motivos \ Pra um amor de tantas rugas \ Não ter o seu lugar
Na sequência, “Deixa o verão” e “Do lado de dentro”, duas canções que retomam a forma das peças mais “inusitadas” do disco anterior. A primeira é um ska alegre e divertido sobre um casal que prefere fazer sexo a ir pra balada. Toda a música é marcada por um arranjo descritivo que tece comentários sobre a narrativa, seja o som da mesa do bar, seja o tic tac do relógio a marcar a passagem do tempo. O encademento melódico também tem grandes momentos, como na passagem E ainda é cedo pra lá \ chegando às seis tá bom demais \ Deixa o verão pra mais tarde, que prepara para o refrão acelerando o encadeamento dos versos, sugerindo a urgência toda da coisa, que vai culminar no bocejo ao final da música. E ainda tem uns breques excelentes, como aquele em que o andamento da música é consideravelmente reduzido, antes de voltar para o fim, ou aquele imediatamente anterior que sugere um clima country. O Amarantes é de fato mais divertido que o Camelo. É a parte rock n’ roll do grupo, fundamental pra que eles não se tornassem mais um grupinho de MPBosta universitário. Alias, a primeira musica do último disco revela as razões do fim do grupo – Amarantes não conseguiu mais conter a chatice do Camelo.
“Do lado de dentro” é um exemplo magistral de trabalho com arranjo. Começa com uma introdução em que a guitarra vai gradualmente perdendo sua força, até que só sobra o silêncio a partir de onde o homem (vencedor) vai falar. De tal modo que quando sua fala se inicia, o silêncio da guitarra ecoa por todo o trecho (até sua volta na estrofe seguinte). O resultado é que a introdução retira a força daquele enunciador, o homem, o que no fim das contas vai ser o tema da canção, a negação do macho dominante (que, pra variar, é um diálogo – outro modo de se operar com o relativismo das posições). Quando a guitarra volta, o arranjo e a melodia vão caminhando para um crescendo, até a afirmação do sentido último “Que eu sou teu homem, viu”, razão pela qual a moça deveria aceitar o rapaz de volta. Quando entra a voz da mulher, ela também surge em silêncio, mas a situação criada pelo arranjo é completamente diferente. O corte é abrupto e serve para destacar sua fala, que está dando ordens, e não fazendo um pedido. A seguir, em um momento genial, suas palavras vão se destacar sobre uma base circense, revelador da tomada de consciência de que aquilo se tornou um circo, mostrando um distanciamento de alguem que já superou o trágico da situação. Ao final desse momento, os metais entram fazendo um alarde de grande intensidade, sobrepujando completamente o clamor masculino da primeira parte. E por fim, a parte final, a libertação e fuga daquela prisão. Uma canção genial.
O disco se encerra com “Um par”, em que a relação entre pai e filho é tratada como uma relação entre marido e mulher que só no fim revela-se outra coisa. A relação óbvia que se estabelece é entre o marido e a criança, mais uma crítica à supremacia do macho. E pra finalizar, como não poderia deixar de ser, uma canção mais down “De onde vem a calma”, em louvor aos perdedores, mas que não é tão boa, talvez anunciando o que seria o próximo disco, um álbum com canções bem realizadas, mas que se leva a sério demais, perdendo em ironia, o que lhe diminui consideravelmente a ambigüidade – ponto de força do grupo.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Sobre a nova propaganda do Renault Clio (1\2)

O blog anda às moscas. A vida virtual e a real podem ser incompatíveis, enfim, ao invés de complementares. Todos sabemos disso. Assim como para alguns, o mundo virtual parece ter mais concretude. E assim também, o que é mais grave, nossa vida real se torna cada dia mais virtualizada, valores e atitudes imagéticas. Os comerciais tornam-se mais interessantes que a própria vida, o que não seria problema nenhum (o sentido geral da ficção é tornar mais viva a vida) caso nossa vida não estivesse tornando-se, por principio, ficcional. E a propósito de comerciais e vidas esvaziadas, segue um texto excelente de um brother do peito. E quem diria que a consciencia crítica dos modernos se converteria no cinismo atual. O que significa ter consciência crítica nesse caso? E para que serve crítica ideológica então, se é que já serviu pra alguma coisa? Mais instrumentos para o cinismo?



Dois amigos vão andando pelas ruas, conversando. A rua já tem aquela cara de background de novela (cores chapadas, luz fosca). São sempre os mesmos dois atores que estão ali; as transformações acontecem como mudanças de figurino.

A lógica da propaganda é a seguinte: cada coisa que o cara diz é contrariada em seguida. Por exemplo, "a coisa mais ridícula é andar de patins". De repente eles aparecem, os dois amigos, vestidos como patinadores. A transformação é "mágica" e muito rápida, acontece do nada mesmo.

Essa mesma sequência segue, pautada pelos assuntos comentados pelo rapaz, passando por "trabalhar em empresa" e "casar". Quando é chegado o "casar", o amigo como que cai num buraco. Logo em seguida sobe por detrás (como um boneco de pimbolim) uma mulher vestida de noiva. Imediatamente ele também se transforma em noivo.

O ponto final das transformações, claro, é quando aparece um Renault Clio. Nesse momento todo o exterior some, estamos dentro do Clio. É aí que o cara fala algo como "você é tudo pra mim, querida" e a mulher olha com uma cara desconfiada. No corte entre a "externa" e a"interna", uma voz em off comenta algo do tipo: "você vai se contradizer sempre. Esse carro é um popular que não é popular, experimente", ou qualquer merda do tipo...

O cara que vendeu essa ideia para o diretor de marketing da renault não precisou dizer muito mais do que "a renault precisa investir na sua linha de carros populares, mas manter o padrão "importado" que é a razão pela qual nossos clientes nos escolhem. Por isso a gente tem que desfazer a aura de pobreza do carro popular. Pra fazer isso, é claro que a gente precisa mostrar pros recalcitrantes que eles já fazem opções popularescas mesmo que eles não saibam e ao mesmo tempo dizer que esse nosso popular não é como os outros.

Mas isso é só o começo da história...

O que caracteriza essa propaganda é a generalização da relatividade das coisas. Ela parte do pressuposto de que a noção cínica de que opiniões e crenças não contam é uma lei geral da vida hoje. Segundo essa propaganda todos precisam viver desavisadamente, aceitar como verdadeiro tudo o que aparece, mas sempre com o olho nas mudanças que desmentem a verdade do que se acreditou. É essa ideia que esse comercial quer estabelecer como geral, apesar de ter público-alvo certo.
Para fazer isso formalmente, toda a "cenografia" do reclame ganha algo de artificial e a lógica é sempre a de denunciar essa aparência como aparência. A propaganda não diz "compre o Clio"; não diz "Clio, elegância e conforto ao seu alcance"; ela diz que os ideais de elegância e conforto em que você acredita são relativos, sempre substituidos por outros conforme chega um novo produto (na verdade, diz algo mais grave, comentado a seguir); ela sabe que você sabe disso, e, assim, apelando para a sua experiência como consumidor, te vende a mesma ideia.

Sobre a nova propaganda do Renault Clio. (2\2)


Como ja se comentou sobre a propaganda, isso é um desvirtuamento do v-effect brechtiano, que na autodenûncia do teatro como aparência, queria levar o espectador a se defrontar com as antinomias sociais naturalizadas pela ideologia. Nesse caso, no entanto, o fato de todo horizonte de valoração ser relativo não leva a entender por que as coisas são assim, nem a destrinçar os conflitos que sustentam essa inconsciência. A propanganda, descreditando tudo, inclusive seu produto, leva a uma aceitação da inconsistência de tudo e à lógica do mal menor.

Isso é tão radical, que a tranformação mágica do reclame engolfa não só as bobeiras adolecentes, como também toda a paisagem e as estruturas de uma pessoa. O tempo, ali, tudo destrói; não apenas as opiniões do moleque bobão. Ele leva as opiniões, as roupas, o amigo, o próprio mundo embora. Deixa no lugar apenas a mesma pessoa, sempre identica a si mesma e tão mais invulnerável e cabível nas tranformações quanto mais ela reage a elas com o gesto mesmo de aceitá-las (ou de sofrê-las sem percebê-las).

Aparentemente instalando o cara no seu lugar definitivo, o interior confortável do Clio, ele deixa entrever que até mesmo a aquisição automotiva e seu casamento são frágeis. Afinal, o que ele diz à mulher é a mesma coisa que ele dizia ao amigo. Por outro lado, a única tranformação real que essa pessoa sofre, na estética do tal reclame, é aquela em que câmera e atores mudam de posição. Só dentro do carro aquele cara é visto de outra perspectiva. Uma em que, supostamente, ele está à cavaleiro das mudanças, com a mão na direção. Exatamente por isso, os votos dirigidos à mulher não são contrariados por nenhuma sequência. Se todas as crenças se equivalem diante da marcha louca do mundo, o gesto de estabelecer como definitivo isso ou "aclillo" é a única débil força de que alguém pode dispôr. Na disposição de que é no mundo movediço que se vive e na razão distanciada que manda sobreviver a tudo isso e garantir o seu estariam os paradozais pontos fixos desse mundo permanentemente "revolucionado".

Ainda sob tal perspectiva, é óbvio que isso é falso. Essa visão das coisas como relativas é colocada, de maneira geral, como contrapeso do mundo de liberdade e irrestrita transformação que está ao alcance de todos. Lutar para viver bem nesse mundo, é fazer parte das transformações, sopesando ao mesmo tempo o vivido e descobrindo onde estão os pontos ainda sólidos, amanhá prontos a se dissolver.

Acontece que nem todos estão tendo que fazer essa dolorosíssima ginástica para viver bem. Para
muita gente adaptar-se à mudança significa apenas dispôr de espírito de abertura para escolher essa ou aquela mercadoria que se contradizem nos valores por ela encampados. Pois bem, justamente esse lugar de poder, que não tem seu mundo reduzido à pó (mas balança indulgentemente com a barcaça) está e não está presente no comercial. Ele está além das câmeras (no mecanismo cego que tudo rege ali) e, como razão cínica, dentro do Clio.
O motorista do Clio sabe que não está na posição de usufruto e gozo tranquilo de quem recebe uma mercadoria de bandeja. Sabe também que tem gente que está. Sabe além disso que isso não é uma possibilidade para milhares de pessoas. Ainda assim, mesmo sabendo que a mercadoria não é a resolução dos problemas do mundo e sim seu agravamento; mesmo sabendo que confortar-se com aquilo é contrubuir com a merda toda; mesmo sabendo que compensando tudo isso há apesar sua alegria momentânea, pois os custos disso irão destruir o frágil lugar de repouso que o consumo constitui, mesmo assim ele embarca nessa sob a lógica do mal menor.

Ter um Clio equivale, portanto, a se identificar sem se identificar com estes que, em um mundo desgovernado (ou mal governado pela lógica amoral da necessidade de criar valor), têm um mínimo controle de seu entorno e de si mesmo. Ora, isso só é possível quando a instabilidade do mundo se tornou tão grande que mesmo o lugar mais estável nesse mundo sofre de descrédito. Se as desgraças de todos os dias tornam impossível a alegria até mesmo para quem possuem todas as condições para usufruí-las, então não há um lugar sólido de mando nesse mundo, há uma imagem de supremacia que deve ser perseguida a qualquer custo. Sendo verdade e mentira ao mesmo tempo, é essa crença popular (profundamente popular, Villon puro) que constitui o mecanismo profundo desse comercial.

Sim, "esse popular não é como os outros". Quem tem o Clio é o vencedor sendo de partida o perdedor, como aliás seria tudo mundo. É essa falsa generalização da lógica da redução de danos que está na base do comercial. Aquele que deixa os remorsos, as lembranças, as roupas, o amigo e a mulher para trás, escolhe o que tem chance de sobreviver e só com isso se identifica, ademais ciente de que isso também pode se dissolver e o caminho abrir-se a novas conquistas esse é o que merece viver e usufruir. Só para ele é que o prazer falso, contabilizados em inúmeros deseperos, torna-se substancial na sua falta de substancialidade.

A falta e a instabilidade do produto, do cliente e do mundo, são positivadas como razão para
aceitar a alegria que se sabe de antemão instável e falha. Quando aparentemente nenhum negociante domina mais a integridade das tendências de mercado (o que está longe de ser verdade, pensando que as corporações garantem esse mando com as suas fusões e manobras financeiras), esse excelente surfista do caos é o único que se torna objeto de admiração. Só com isso alguém se pode verdadeiramente se identificar. Quem manda na vida sem sofrer seus empuxos não é o herói; é heroi quem é mandado, mas não por alguém, pelo simples fato de ficar abandonado ao deus-dará. Como essa ingrata posição de popular é que é proposta para os pobres e a classe média; omo essa atitude, ao mesmo tempo, se torna cada vez mais difícil de ser sustentada e supostamente é a única possível para todo mundo, justamente essa disposição do impotente potente é a que se torna mais apelativa para o consumidor e transforma-se em material para o comercial. Popular aqui, é isso. Sinônimo de guerreiro, mas não do que há de óbvio na figura do guerreiro grosseiro e arraigado em crenças. É o portador da pura disposição à disputa; é aquele que comporta a inabalável intenção de estar por cima da carniça. Esse é o popular que, sendo igual, ao garantir sua sobrevivência por dar de ombros à ruína dos outros, de si mesmo, e do mundo, é diferente dos outros. Esse homem é que é digno de um Clio.