sexta-feira, 26 de junho de 2009

Morre o mito.

Morre o maior mito da história da música pop, o genio Michael Jackson. O fim da era das grandes gravadoras tem agora seu marco.

A única necessidade imutável do mercado é a mudança contínua. Michael Jackson levou a sério o pressuposto e o conduziu a seu limite, marcando em seu próprio corpo a volubilidade do mercado pop. Dessa forma, sem se dar conta e contra sua vontade, acabou por revelar o caráter monstruoso do processo, o quanto ele carrega de negação de identidade. Pagou o preço por incorporar em si a essência do mercado, fazendo inocentemente (ele nunca cresceu de fato) o que Marlyn Manson faz de modo crítico e distanciado, e Madonna e David Bowie (nos primórdios) fizeram por meio de personagens. Michael, por ser mais talentoso, foi mais sincero e assumiu o caráter fictício do mundo pop como verdade. Ele era negro, branco, hetero, gay, adulto e criança, anjo, monstro, sexy, virgem, transitando por entre todas as categorias assim como a música pop (na qual ele foi um dos maiores mestres, quase seu sinônimo) tem a vocação intrínseca de juntar todas as manifestações artísticas do planeta em uma só forma. Nesse ponto o pop faz as mesmas promessas que o capitalismo: um mundo onde todas as diferenças aparecem conciliadas por uma mão invisível, o próprio espírito absoluto. O corpo (no sentido amplo, sua “figura”) de Michael – evidência inegável – revelava o caráter deformado da utopia mercadológica, que se oculta mediante estratégicas classificatórias, como público, tribo e, no plano formal, gênero. Michael era inclassificável, um anti-sujeito, realização maior – e por isso mesmo, inconfessável - da sociedade de consumo. Nem como rebelde ele podia ser classificado (ou como ET), porque sua “deformidade” devia-se, em última instância, a um apego excessivo – no limite da auto-negação – à norma. A estratégia midiática foi procurar associar a imagem ao imaginário, criando um monstro sem nariz ou etnia (por isso nem mesmo enquadrável em alguma minoria qualquer), comedor de criancinha.
O maior mito do mundo pop acreditou e incorporou visceralmente a própria mitologia, revelando desse modo a face negativa que o mercado, para sua própria sobrevivência, precisa esconder. Por essa razão, mais do que por qualquer outra acusação, real ou fictícia – nunca se provou nada, é sempre bom lembrar, diferente do que aconteceu com o pedófilo do Peter Touschand, muito menos importante - é que Michael foi perseguido e esculhambado, especialmente por aqueles que ajudaram a criar o mito.
Fica a música, e o talento. Esse sim, inquestionável. Que seja bem encaminhado pelos braços de Omolu, até o colo de Nanã.
DISCOGRAFIA:










Jacksons 5

1975 - Moving Violation (Faixa a faixa):
http://www.4shared.com/network/search.jsp?sortType=1&sortOrder=1&sortmode=2&searchName=1975+moving+violation&searchmode=2&searchName=1975+moving+violation&searchDescription=&searchExtention=&sizeCriteria=atleast&sizevalue=10&start=0
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THE JACKSONS

1976 - The Jacksons (Faixa a faixa):
http://www.4shared.com/network/search.jsp?sortType=1&sortOrder=1&sortmode=2&searchName=1976+the+jacksons&searchmode=2&searchName=1976+the+jacksons&searchDescription=&searchExtention=&sizeCriteria=atleast&sizevalue=10&start=0
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1977 Goin' places:
http://www.4shared.com/network/search.jsp?sortType=1&sortOrder=1&sortmode=2&searchName=1977+Goin%27+places&searchmode=2&searchName=1977+Goin%27+places&searchDescription=&searchExtention=&sizeCriteria=atleast&sizevalue=10&start=0
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1978 - Destiny:
http://www.4shared.com/network/search.jsp?sortType=1&sortOrder=1&sortmode=2&searchName=1978+destiny&searchmode=2&searchName=1978+destiny&searchDescription=&searchExtention=&sizeCriteria=atleast&sizevalue=10&start=0

Aqui, o momento em que o mundo deu-se que a coisa toda tinha mudado, e que era irreversível:



MICHAEL JACKSON SOLO:

[1972] Ben
http://www.4shared.com/file/96117136/8502f209/1972_Ben.html
[1972] Got To Be There
http://www.4shared.com/file/96121020/16732946/1972_Got_To_Be_There.html
[1973] Music And Me
http://www.4shared.com/file/96123811/ee43d320/1973_Music_And_Me.html
[1975] Forever, Michael
http://www.4shared.com/file/96126922/6a7b4b5c/1975_Forever_Michael.html
[1979] Off The Wall
http://www.4shared.com/file/96130650/d8638de6/1979_Off_The_Wall.html
[1981] One Day In Your Life
http://www.4shared.com/file/96133436/766bf4d5/1981_One_Day_In_Your_Life.html
















[1982] Thriller
http://www.4shared.com/file/96137443/c62201ca/1982_Thriller.html
[1984] Farewell My Summer Love
http://www.4shared.com/file/96140328/2d128de8/1984_Farewell_My_Summer_Love.html
[1987] Bad
http://www.4shared.com/file/96145673/f6a292fc/1987_Bad.html
[1991] Dangerous
http://www.4shared.com/file/96153888/f47d0cdd/1991_Dangerous.html
[1995] History - Past, Present and Future - Book I CD1
http://www.4shared.com/file/96343432/8eee4dd7/1995_History_-_Past_Present_and_Future_-_Book_I_CD1.html
[1995] History - Past, Present and Future - Book I CD2
http://www.4shared.com/file/96318333/e34763b5/1995_History_-_Past_Present_and_Future_-_Book_I_CD2.html
[1997] Blood On The Dance Floor
http://www.4shared.com/file/96161920/ec22b409/1997_Blood_On_The_Dance_Floor.html
[2001] Invincible
http://www.4shared.com/file/96187722/92e91992/2001_Invincible.html
[2003] Number Ones
http://www.4shared.com/file/96202413/4dbf0dc3/2003_Number_Ones.html
[2008] King Of Pop - Brazilian Collection
http://www.4shared.com/file/96382534/1b0308b1/2008_King_Of_Pop_-_Brazilian_Collection.html
[2008] Thriller 25th Anniversary Edition
http://www.4shared.com/file/96372048/d96f8767/2008_Thriller_25th_Anniversary_Edition.html
[2008] Seven
http://www.4shared.com/file/96486673/712a41a0/2008_Seven.html

terça-feira, 23 de junho de 2009

Alegria de pobre é o fim da cultura

Melancolia é um sentimento desgraçado. É como se todo o ar do mundo fosse trocado por éter e você flutuasse por aí.
Todo mundo sente, e isso desde sempre, taí o Albrecht Dürer que não deixa negar.
Não é tristeza sozinha, é uma tristeza rasa, sem esperança.Quando você sabe que está fodido e não há nada que possa fazer.

Na música ela é formadora, atravessa todos os povos, todos os tempos, todos os lugares.
O Voraz é que sabe.

Eu resolvi fazer um recorte.
Em geral quando pensamos em melancolia, aqueles poetas alemães do Sturm und Drang são as primeiras coisas que vem à mente. Ou uns franceses viciados em ópio. Enfim, gente nobre, desiludida com o fim do absolutismo e a dissolução de sua classe. Chorar é coisa de quem tem tempo sobrando, que não precisa trabalhar.

Mentira, melancolia é coisa de pobre também. Coisa de marinheiro que está longe de casa, coisa de gente que mora sozinha no deserto, de escravo que canta pra não morrer de fome.
A melancolia, como eu disse, é a falta de esperança.

Se eu entendi bem o que o Voraz tentou explicar, o que fizeram pra matar o samba foi lhe atribuir a máxima burguesa: "relaxa, vai dar tudo certo". Mais que esperança, deu certeza pro sambista. Chorar pra quê...

Nem todo mundo pode (ou podia) ter certeza no futuro e esses continuam chorando. Sem lágrimas. Com a voz, com o rosto, às vezes com os braços. Eis aqui alguns deles.
(E pra ninguém dizer que sou um desses comunistas chatos que fica escutando "grupo de maracatu transcultural das mulheres lésbicas da puta que o pariu", só valem os artistas consagrados.)

Começo por Amália Rodrigues. Pobre de Portugal, chamada a Rainha do Fado, consagrou e espalhou pelo mundo o estilo triste de um país que teve tudo e hoje é colônia das próprias colônias, além de quintal de um continente.
A voz é linda, e carrega a tristeza pesada de quem não tem nada a perder.

Chamo especial atenção para a música "Tudo isto é Fado". Para os FFLCHentos, "Coimbra".

"Tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é fado"

Amália Rodrigues - Ao Vivo no Olímpia
http://rapidshare.com/files/127303064/Amalia_Rodrigues_-_No_Olympia.rar


Depois passo pra outro continente. Mais um país que teve tudo e que acabou como colônia de N países diferentes. Da Etiópia sobrou muito pouco. Tirando que vieram de lá os escravos revolucionários e letrados, sua música chegou a uma ilhazinha chamada Jamaica e do cruzamento dela com ritmos modernos surgiu o Reggae.

Mahmoud Ahmed é uma espécie de Roberto Carlos etíope. Outra das não raras histórias de cara que superou a pobreza para se tornar um pop star. Venceu tudo pra cantar o que chama "Tezeta", a palavra etíope para melancolia.
Pra quem gosta de desgraça, tem também o Salif Keita, do Mali (aquele que o Chico César cita na "Mama Africa"). Ele nasceu pra ser príncipe, é descendente direto do fundador do império Mali. Acontece que veio ao mundo com uma desvantagem... é branco. Como a coisa esquenta pros albinos por lá, acabou exilado.

Esse disco dou Mahmoud Ahmed é um "hit": Ere Mela Mela, de 1975. Pros antropólogos antenados, algumas de suas musicas foram lançadas na coletânea Ethiopiques (como o hoje consagrado Mulatu Astatqé, primeiro africano a estudar em Berkley).
http://rapidshare.com/files/177919248/MA-EMM.zip

Por último eu vou ficar com um país bem estranho. O único lugar rico onde até hoje ser preto dá cadeia. Aqui também dá, mas a gente é pobre. Esse é um lugar onde o povo ficou melancólico de tanto apanhar.
Por lá, nos anos 40, tinha um folclorista que ficou famoso. Um tal de Alan Lomax, que a mando da biblioteca do senado de seu país gravou todos os cantores fodidos que conseguiu encontrar.
Uma de suas viagens mais loucas foi entrar nas cadeias só de pretos, onde eles eram forçados a trabalhar dia e noite quebrando pedra e gravar seu canto.
O que marca o ritmo dessas canções é o som do martelo batendo na pedra.

Como era de se esperar, esse país bárbaro não fica nem na África nem na Europa, é os Estados Unidos. Onde os pobre sofria até alguém inventar um jeito de ganhar dinheiro com isso.
A história do Blues não é muito diferente da do Samba, a diferença é que nunca ninguém foi com um gravador na mão ouvir o que o pessoal cantava nas cadeias brasileiras em 1947.
Essa é a martelada: Songs from the Parchman Farms. http://sharebee.com/a4831a9c

Tem gente que tem é motivo pra chorar. Seja etíope, português, norte-americano, até escandinavo há sempre uma boa razão.

Sinceramente? Ainda bem.
Uma das coisas que a humanidade parece ter aprendido durante seu desenvolvimento é que a evolução da produção cultural depende de sua própria involução.
Em outras palavras, o processo de criação artística no âmbito coletivo não segue um padrão dialético. Pelo menos não no sentido hegeliano. Ele depende na verdade de uma profunda ambiguidade: a cultura se estabelece e sua produção em termos materiais se estabiliza nos tempos de barbárie.
Toda a música popular do século XX é prova contundente disso, nem a Bossa Nova escapa.

Então eu nos pergunto. Se praticamente tudo que entendemos como cultura provém ao menos em parte da infelicidade individual ou coletiva, seriam a felicidade, a paz, a igualdade e a harmonia o fim da cultura como a conhecemos?

quinta-feira, 18 de junho de 2009

João Gilberto, da Bossa e Luis Carlos, do Raça Negra: alguns problemas práticos de conceituação teórica do samba enquanto gênero.






Sinhô se posicionando frente à Donga e Pixinguinha dizendo que ele é o verdadeiro rei do samba. Na seqüência, Ismael Silva desenvolve uma nova forma rítmica que Noel irá eleger como sendo o samba de raiz, e que de fato passará a ser, para revolta de Sinhô. Mais a frente a turma do Cacique de Ramos será criticada por deturpar o verdadeiro samba, para mais a frente serem eleitos (Zeca pagodinho à frente) como últimos representantes do samba autêntico. Desde seu início até os dias de hoje, uma questão de vital importância para o samba é a noção de autenticidade e tradição, como se para poder ter o direito de ser considerado samba não bastasse simplesmente um compositor trabalhar com o gênero, tendo que adentrar um espaço simbólico carregado de complexidades de toda ordem,em que mesmo aqueles que trazem alguma inovação para o campo precisem se apresentar como representante de algo que esteve sempre aí.É no jogo contínuo entre inovação e tradição que irá se constituir o espaço do samba.

Pra ajudar a aprofundar a questão,vamos observar dois movimentos que causaram impacto no cenário musical brasileiro, em momentos e com intensidades diferentes.A Bossa Nova de João Gilberto e o movimento do pagode romântico iniciado pelo grupo Raça Negra, de Luís Carlos. Tanto um quanto outro guardam em comum certo questionamento da forma do samba, a partir de um gesto que podemos entender como um processo de "abstração" desse paradigma. Ambos o fazem a partir de intenções e formas distintas, evidentemente, e que iremos discutir, mas guardam semelhança nesse movimento de retirar o samba de um determinado lugar específico de modo a trabalhar mais livremente com sua forma, o que inevitavelmente conduz à questão sobre o que, afinal, caracteriza essa forma.

Nesse sentido, inclusive, ambos os movimentos não trazem novidade nenhuma, pois a própria história do samba revela um direcionamento nesse sentido desde sua formação. Não é outro o motivo da disputa entre Sinhô e a turma dos baianos (Ciata, Pixinguinha, Donga...) procurando desvincular o samba de um lugar geográfico específico (a bahia e os terreiros), e também da disputa entre Noel e Wilson Batista (o samba que não é do morro nem da cidade, mas nasce do coração). Esse movimento de abstração foi, aliás, fundamental para que o samba pudesse gradativamente vir a ser eleito como símbolo da nossa nacionalidade. Entretanto, e aí fica marcada a diferença mais profunda com esses dois outros momentos, podemos dizer que o samba realiza um movimento de abstração concreta, no sentido de que ele procurou se desvincular de um lugar concreto de marginalidade, mas incorporando em sua forma todo um imaginário formado por temas, modos de dizer, performances, etc, que vai se constituindo em uma tradição, evidentemente que fluída como todas. Noel, por exemplo, vai falar que o samba nasce do coração, mas nunca vai deixar de fazer crônica do cotidiano do pobre, com sua linguagem sem rebuscamentos e sua temática pé no chão:

“Um Zé Pau d'Água
Tem um amigo parasita
Não trabalha e sempre grita:
Viva Deus e chova arroz!
Gritando assim
Do seu povo ele se vinga:
Viva Deus e chova pinga
Que o arroz nasce depois”.
(Noel Rosa - Chuva de Vento)

Noel não quer que o samba deixe de ser malandro, mas que o malandro deixe de ser encarado como marginal. É a malandragem como espírito, o que é muito diferente de ser o espírito em si, ou o malandro de fato. E se em dado momento ele consegue tornar-se símbolo da nacionalidade é porque seus símbolos foram se universalizando, e não porque foram substituídos por outros mais universais. Caso contrário uma letra dessa, absolutamente dirigida para um público bem específico, não existiria nos dias atuais:

Chico não vai na curimba
Chico não quer curimbar
Bebeu água de muringa
Dormiu no pé do gongá
Hoje não faz mais mandinga
Não que saracutear
Chico não acende vela
Nem manda flores pro seu Orixá

Ele é de banda cheirô
Ele é de banda cheirá

(Zeca Pagodinho - Chico não vai na curimba)
[OUVIR]

A novidade tanto da Bossa quanto do esquema novo do Raça Negra é a opção feita pela inovação em detrimento da tradição, um em nome do esteticismo e outro do mercado pop, respectivamente. E ao resolver a equação acabam por criar algo novo, ao mesmo tempo em que questionam o lugar já estabelecido do samba.

A Bossa Nova [OUVIR] se afasta da parte mais por assim dizer mais "concreta" do samba, seus topoi, temas, convenções, para trabalhar com o gênero de uma perspectiva essencialmente estética. Ao fazer isso, deixa de fazer samba. Quer dizer, até fazem samba, mas musicalmente, e retrabalhando da forma que melhor lhe convier, uma concepção que escapa à noção de tradição que define estruturalmente o gênero. Ninguém diz que o lp Chega de Saudade seja um álbum de samba, embora o samba esteja presente em TODAS as canções. Mas o samba não é apenas uma categoria estética, e sim uma conjunção de fatores e elementos heterogêneos. Mesmo quando João Gilberto grava um samba, o faz deixando claro que se trata de algo novo, uma releitura. O samba colocado em outro lugar para ser artesanalmente resignificado. A ênfase se desloca assim do gênero para o artista, criando-se uma concepção distinta de fazer artístico. João Gilberto faz do samba prioritariamente uma questão de estética, o que ele, de fato, não é. A revelação coloca a questão: quais são, pois, os critérios de definição do samba? Nem a Bossa nem sua derivada direta, a MPB, irão se posicionar perante esse questionamento que sua simples existência coloca inequivocamente. João Gilberto irá resolver a questão simplesmente regravando os sambistas que mais lhe agradam. Mas o precedente está aberto, e até um grupo de roqueiros entre emos e Chico Buarque pode mais tarde questionar um cara como Bezerra da Silva (que evidentemente daria risada na cara dos dois):

"Quem se atreve a me dizer
do que é feito o samba"
(Los Hermanos - Samba a dois)

[OUVIR]

O pagode romântico [OUVIR] também trabalha com elementos a princípio alheios ao samba, excluindo vários daqueles que comumente são associados ao gênero. Fazem música romântica no paradigma Roberto Carlos, seguindo o padrão rítmico definido por Jorge Ben (samba rock desacelerado, do Ive Brussel). Nada de crônica cotidiana, apego a tradição e aos bambas do passado - como a turma do cacique ainda mantém. Sequer o paradigma rítmico do Estácio será seguido, e a sonoridade muitas vezes não irá se distinguir das canções românticas do Wando - que começou tocando samba, a propósito. Todavia, esses grupos mantêm firme alguns poucos elementos típicos do samba – por exemplo, a formação base do fundo de quintal, especialmente tantan, cavaco e pandeiro, que já é uma invenção recente - e, principalmente, não deixarão de se afirmar enquanto sambistas (na sua vertente pagode). Fazendo isso, também revelam - como a Bossa - o quanto o samba tem de inorgânico, e o quanto de sua definição enquanto gênero depende de um complexo estrutural que não é apenas estético, suscitando uma avalanche de questionamentos sobre o que é samba de raiz, samba genuíno, que ao mesmo tempo é e não é um falso debate.

O pagode veio daqui ó:


O debate é falso porque a rigor não existe um gênero mais genuíno que o outro - mesmo o paradigma rítmico do Estácio foi uma conquista posterior ao início do samba, já bem afastado dos batuques de candomblé o dos sambas amaxixados de Sinhô. Samba é muito mais um lugar, formado a partir de inúmeras variantes que envolvem status, performance, melodia, harmonia, instrumental, agentes, momento histórico, etc... que estão em constante movimento. O que é samba genuíno hoje pode não ter sido (Zeca Pagodinho) ou pode deixar de ser, ou pode ainda suscitar debates eternos sobre seu lugar. Não existe, portanto, um samba que seja genuíno, pois como afirma Carlos Sandroni (no livro Feitiço Decente) seu padrão de constituição é naturalmente políritimico e heterogêneo.

Ao mesmo tempo não é um falso debate porque o samba só é samba na medida em que se afirma enquanto genuíno, e pertencente a uma tradição (isso, aliás, lembra um samba do Nelson Sargento, "o nosso falso amor é tão sincero"). Desse modo, afirmar que o Só pra Contrariar não faz samba de raiz é acusação grave, o mesmo que dizer que não faz samba. Todo samba é de raiz, mesmo quando inova. Almir Guineto surge fazendo um tipo de som bastante diferente daquele que fazia Ismael Silva, mas nunca deixou de se afirmar como pertencente à tradição de bambas do passado. Clara Nunes tinha um repertório muito similar ao de várias artistas da MPB e, no entanto, sempre afirmou sua ligação com o samba e com a cultura negra. É, portanto, encarada como sambista, a despeito de gravar Caetano Veloso e Luis Gonzaga. Mais do que fazer um determinado som, o sambista está em certo lugar, regido por leis próprias.

A existência do grupo Raça Negra e seus variantes coloca portanto um problema estético bem espinhoso - principalmente porque os pagodeiros não estão nem aí para a conceituação teórica da coisa, transitando entre Legião Urbana, Roberto Carlos e Arlindo Cruz com a mesma facilidade, e deixando o cenário ainda mais confuso. Ao romper com aspectos tidos como essenciais ao samba - o pertencimento à tradição, o apego às raízes, certa instrumentação, temas, postura malandra - ao mesmo tempo em que não deixam de se afirmar enquanto sambistas (basta ver o que estão fazendo hoje todos esses caras) o pagode romântico revela o quanto dessa essencialidade é de fato exterior e fluída, sem com isso fazer com que ela deixe de ser essencial. É de fato impossível responder se o Raça Negra e outros grupos são samba ou música pop, porque eles são e não são, porque o samba é e não é. Dependendo do ângulo que se observe, eles podem ser. Ou não. Nesse sentido eles fazem com o samba aquilo que a Tropicália havia feito antes com a MPB - e um grupo como o Art Popular tem de fato algo de muito tropicalista, inclusive no sentido positivo de criatividade estética. Tudo pode ser samba, desde que direcionado em certo sentido. Porque o samba é estruturalmente inorgânico desde que se conhece por gente. Afinal, Caetano cantando Peninha é música brega ou MPB? E - questão mais interessante - será que isso, de fato, importa? Se sim, para quem?

terça-feira, 16 de junho de 2009

O samba virou música clássica


Galera, prometo que vou me esforçar pra que a próxima postagem seja de discos pra download. É que eu descobri que tem gente que lê mesmo os textos mais longos, e que gosta. Gente inclusive que eu desconheço e que elogia e coisa e tal. Daí eu me empolgo... mas em breve eu vou colocar discos, podem ficar tranquilos... mas enquanto isso...

Fuçando esses dias na internet encontrei esse blog do Luís Antonio Giron, editor da revista Época e autor da biografia sobre o Mário Reis, encontrei esse texto que estabelece um diálogo direto com um dos últimos textos postados aqui (“A mpbtização do samba”). Pois é, não sou só eu que não agüenta mais samba pau-mole, e que reconhece nesse processo de mumificação muitos aspectos negativos. É muito bem vindo e desejável o reencontro de Cartola e Nelson Cavaquinho, mas precisa mesmo tratá-los como peça de museu e reconhecer-lhes valor na exata medida em que os transforma em objetos culturais estéreis? Só falta acender uma vela e ficar cultuando o samba, sentadinho e bem comportado – ou será que não falta nem isso?

Agora, eu discordo de alguns prognósticos mais fatalistas do Giron, ou antes, eu escolho outra vítima para sacrificar- já que um juízo estético em que não role nem um pouco de sangue não tem a menor graça. Essa espécie de samba de câmara que hoje está na moda não indica a morte do gênero, mas a apropriação de determinado tipo de público que perdeu a representação do gênero que lhe era característico, a MPB, essa sim, com os dias contados. As variações de É o Tchan e similares continuam a causar frison no carnaval baiano, assim como a quantidade de comunidades de samba (com música própria), que só fazem aumentar pelo país. Tanto Tereza Cristina quanto Monica Salmazo são muito mais cantoras de MPB – seja na postura, no timbre, no estilo – do que sambistas, estão muito mais pra Marisa Monte do que pra Ivone Lara, diferente de uma sambista como Fabiana Cozza, essa sim, pagodeira das boas.

Aliás, a comparação que o autor faz com o jazz cabe muito mais à MPB – a Bossa não é um samba com cara de cool, ou vice versa? – que ao samba. O jazz sim, parece cada vez mais com os dias contados, e há muito deixou de ser um gênero popular. E numa cultura de massas, esse pode ser o primeiro passo na escala que vai da falta de interesse, para a falta de relevância (social) e subseqüente desaparecimento.

Também discordo do autor quando este assinala como possível causa mortis do samba a sua incapacidade de inovação. Ele chega a dizer em dado momento que é impossível ocorrer qualquer inovação no samba depois da Bossa Nova. Pois é, mas a Bossa não é samba, ao menos não com o mesmo teor que este adquire na Bossa, a chamada moderna música brasileira. O novo não é um valor no samba, que mesmo quando se atualiza o faz ancorado na tradição. Ele não quer ser moderno, ao contrário, procura sempre o respaldo da tradição, extraindo daí o seu valor e encanto. Não se pode cair no erro de julgar um a partir do paradigma do outro. A moçada do Fundo de Quintal faz um tipo de samba completamente diferente daquele da turma do Estácio nos anos 30, e no entanto não cansa de dizer que sua qualidade deriva diretamente de bambas do passado, como Paulo da Portela, Cartola, Manacéa... O samba se renova sim, continuamente, mesmo porque ele segue um padrão composto e heterogêneo (nesse sentido, o Raça Negra não deturpa o samba, mas ao desvincular ele de certa tradição, revela o quanto o gênero comporta de naturalmente inorgânico) mas a concepção de tempo com que trabalha e atualiza guarda ainda forte vínculo com a matriz de onde surgiram as rodas de samba e partido alto. A aparente não renovação do samba, ou seu desenvolvimento circular não é marca de esgotamento, mas sua própria razão de ser.

Não é que o samba morreu. É o seu Giron que esta procurando no lugar errado, num espaço que prima pelo bom gosto, refinamento e, consequentemente, por certo grau de assepsia como é o SESC e similares piores (porque o SESC é bom). Mas numa coisa a gente concorda integralmente: eu também prefiro É o Tchan ao samba de ex-cátedra uspiano. Ou será que temos que agüentar que todo samba fique com essa cara:

O samba virou música clássica
"É o Tchan" ministrou viagra ao samba e o bom velhinho sacudiu os ossos por algum tempo. Mas hoje o samba está morto. Maestro, chame "É o Tchan" para tocar no funeral, por favor!

Luís Antônio Giron

Outra noite fui assistir no teatro do Sesc-Pinheiros em São Paulo ao show das cantoras Teresa Cristina, carioca, e Mônica Salmaso, paulistana. Ambas possuem voz e técnica excelentes, são acompanhadas por músicos melhores ainda – se isso é possível. Elas souberam mesmo entrelaçar seus respectivos repertórios, baseados nos clássicos do samba, de Donga a Paulinho da Viola. Mas confesso que, apesar do maravilhamento da platéia de mais de mil pessoas, comecei a ter uma sensação esquisita: um certo formigamento que só me ocorre em alguns concertos eruditos.

Em tais ocasiões, olho para os lados e observo que estou cercado por gente rica e importante, dona de uma expressão gelada para combinar talvez com as peles cheirando a naftalina. Ao lançar o olhar ao palco, vejo os músicos de alta reputação e competência escravizados aos espectros de Brahms, Schumann ou seja lá quem elaborou a partitura e não permite senão a submissão total do ser à clave. A essa altura, eu já havia voltado para o show de Teresa e Monica. O público é bacana, formado por gente de todas as idades. Não é isso que importa. É que o público parecia tão perplexo quanto distante. E pensei: é isso, é o caráter olímpico da música erudita, a corrida de obstáculos para soprar vida ao passado – isso que rola no palco das sambistas. Elas não pareciam meras cantoras populares, mas mezzo-sopranos de uma arte quem sabe extinta. Elas estavam ali como sacerdotisas de uma prática perdida. E me passou um calafrio pela espinha: o samba está morto. Maestro, chame É o Tchan para tocar no funeral, por favor! O samba acabou e o dia não clareou, como queriam os versos de Paulinho da Viola. Ao contrário do que preconizou Nelson Sargento, o samba agonizou e morreu.

Quando a música morre, ela se torna erudita – ela passa a ser praticada por alguns eleitos, que mantêm a chama acesa a duras penas, com performances virtuosísticas e insuperáveis. Teresa e Mônica, vestais e virtuoses do samba defunto. Elas desfiaram as tramas de letra e melodia como se fossem mantras ou cantochão. Mesmo as canções modernas, de compositores atuais, foram concebidas para vibrar no diapasão do passado, na vibe do irremediável.
O samba é uma dos gêneros da música popular brasileira que se converteu em clássico. Experimenta, nos centros urbanos do Brasil (desconheço os rurais, se é que existem) o mesmo processo vivido pelo jazz nos anos 90. De um momento para outro, todos os grandes músicos de jazz haviam morrido, as maiores descobertas já realizadas e só restava às novas gerações repetir o passado, talvez acrescentando um ou outro melhoramento, mas sempre no sentido de uma reforma respeitosa em relação aos originais. O jazz, que nasceu na dionisíaca New Orleans, hoje vive por aparelhos em festivais e casas noturnas de Nova York e na Europa – tudo a peso de ouro. Quem quiser sentir um pouco do gosto do velho jazz, precisa ir no Memorial Hall de New Orleans e se horrorizar com o rigor mortis a que o dixieland e mesmo o hard bop chegaram. O dixieland do século XXI é o hard bop, executado por anciãos. No samba, dá-se coisa parecida, mas por aqui não existem museus ou salas de lembranças. Não há inovação possível desde que a bossa nova arrancou a batucada do morro, nos anos 50. O samba-de-raiz não passa desamba-de-acervo.

Exemplos dessa prática estava diante de mim, Teresa e Mônica. Aquela
até compõe, mas repete os moldes velhos. Expõe um timbre tão perfeito que a gente desconfia. Canta Paulinho da Viola como se estivesse fazendo uma oração. Monica é acadêmica até debaixo d'água: sua expressão, apesar de esbanjar sinceridade, guarda qualquer coisa de estalactite. Nos últimos discos e espetáculos, ela se converteu em objeto de culto de um grupo de intelectuais paulistanos cuja ligação com a Tia Ciata – a baiana que ajudou a popularizar o samba na Praça Onze carioca há cem anos – é conhecê-la de um verbete qualquer de enciclopédia. Esses intelectuais nutrem o fascínio pelo folclore que jamais vivenciaram. Mônica é a voz do samba paulistano, desidratado e embalado a frio, mais artificial que um pacote genial de salgadinho. Teresa representa o conservadorismo que mumifica o samba e o enterra nos velhos Arcos da Lapa como atração para turista. As duas são piores que salgadinho porque enganam. Porque dão impressão de ser genuínas filhas de Ciata, e têm boa intenção. Elas conjuravam os mortos no túmulo do samba que sempre foi São Paulo (para roubar a observação feliz de Vinicius de Moraes).

Só para contrariar, alguém pode brandir o último Zeca Pagodinho, o revival de Beth Carvaho no DVD ao vivo e a Velha Guarda da Portela. Eu lhes digo, porém, que todos esses talentos já cantam fora deste mundo: manipulam timbres do além. Os arranjos do Zeca, chamado de "Anjo da Velha Guarda”, parece que foram escritor pelo Padre José Maurício. E Beth escreveu o primeiro capítulo do adeus do samba nos anos 70. E hoje é o revival de si própria. A Velha Guarda da Portela anda tão mal que foi proibida de desfilar sem carro alegórico na Sapucaí no último carnaval. As madrinhas de bateria passaram como um rolo compressor sobre Zeca, Beth, Monarco e tantos outros vultos da pátria do tamborim. Não estou dizendo que não sejam todos lindos e maravilhosos. Em 1986, defini Zeca Pagodinho, então no olho do furacão do pagode acústico, de "o Noel Rosa do gênero". Acho que tive razão. Eu mesmo choro cada vez que ouço um samba-canção triste do passado entoado por Zeca.
Estou apenas pedindo um pouco de reflexão. Essa música reverencial e litúrgica que virou o samba não se parece em nada com o som festivo dos anos 1910 e 1920, conservado em gravaçõs históricas. Antigamente, nas festas das tias baianas, o samba era sensual, feliz e divertido. Acompanhava um banquete com dança no final. Era a divertida profanação do candomblé. Rerpesentava a antevisão de uma democracia racial que jamais chegou a existir... O samba pede passagem no além-túmulo. Apesar dos esforços dos médicos, ele agonizou num orgasmo, há uns cinco anos mais ou menos. Quem matou o velho mesmo foi É o Tchan, orquestra de pagode movida a bailarinas sensuais que está completando uma década com um CD duplo É o Tchan – 10 anos (EMI), gravado no berço do gênero, em Salvador, Bahia. Os garotos do Compadre Washington, um gênio da diversão de massa, revolucionaram o samba, trouxeram-lhe de volta à vida. Pelo menos por algum tempo. É o Tchan ministrou viagra ao samba e o bom velhinho sacudiu os ossos por algum tempo. Ao som de um acompanhamento tradicional de samba-de-roda digno de Donga e Sinhô, o rebolado frenético das Scheylas e da Carla Perez surtiram um efeito de encantamento, e o samba levantou as asas sobre nós, extasiado de prazer.É o Tchan pôs sustagem no samba e o fez voltar às paradas de sucesso em 1994 e 1995. As letras podem não ser tão boas quanto as de Cartola ou Noel. Mas preste atenção nisto, e cante comigo, pessoal: "Bota mão no joelho/ e dá uma baixadinha/ Vai mexendo gostoso, balançando a bundinha/ Agora mexe/ Mexe, mexe, mainha/ Agora mexe, mexe,/mexe, loirinha/ Agora mexe, mexe/mexe, neguinha/ Agora Mexe/Balançando a poupancinha". Isso é puro Duchamp, puro Dadá. É a falocracia racial sonhada por Gilberto Freyre. Compadre Washington desconsiderou a história do samba para alívio deste. E o samba voltou a sentir prazer e a ejacular. Era o que o velho queria, retornar à juventude e a encantar as menininhas numa micareta eterna. Não reconheço o samba de verdade no arquivo de cera de Teresa Cristina e Mônica Salmaso. Saí do espetáculo com um travo amargo de morte. No Largo da Batata, ali perto, só se ouvia forró e rap. Nada de samba. Vou ser sincero: eu preferia o Tchan ao samba-ex-cátedra uspiano. Pena que até o Tchan já não tem mais fôlego para fazer uma respiração artificial no velho festeiro. As Scheylas sapateiam no caixão e ninguém se mexe. Um pouco do Brasil teve um surto de euforia moribunda e se foi com o Tchan.