quarta-feira, 25 de março de 2009

A Mpbtização do samba


O samba voltou à moda. É claro, de fato ele nunca deixou de ser tocado, mas estava meio afastado daquela parcela da classe média que define qual o tipo de música de prestígio. Desde aquela redescoberta do samba do morro nos anos 60, ela havia substituído o samba pela MPB, deixando-o para o consumo das camadas populares. Porém mais do que isso, o samba a que se volta é uma certa concepção do que seria o este antes dos tempos do pagode, antes de Exaltasamba, Soweto, Zeca, Fundo, Martinho e Beth Carvalho. O estilo de samba dos anos 60 para baixo, que seria mais puro ou autêntico, de raiz. Não que se toque exclusivamente música de compositores já mortos (embora haja baladas dessas, em que a música mais recente é contemporânea de Ary Barroso). Mas o tipo novo de composição e, principalmente, sua forma de execução procura recuperar aquele tipo de sonoridade tida por mais autêntica - e que obviamente nunca foi isso de fato.

Curiosamente, essa autenticidade é assegurada por dois movimentos complementares. O primeiro, mais comum, é o distanciamento temporal. Quanto menos presente de forma concreta do mundo real mais tradicional é aquela forma. Daí chega-se a absurdo, como por exemplo considerar um Diogo Nogueira mais tradicional ou autêntico que Fundo de Quintal. O segundo é um progressivo distanciamento do batuque, o que se aproxima muito mais de uma concepção que vem da MPB do que propriamente do samba. O que se busca de fato nessa concepção é a elaboração de um samba de raiz e refinado, dois termos questionáveis e muitas vezes contraditórios, pois o refinamento vem com o tempo, em especial nessas manifestações de caráter mais popular. E lembrando que, se fossemos voltar às raízes do samba, iríamos nos deparar com o maxixe (pegue a gravação original de “Pelo Telefone”, por exemplo, ou algumas composições de Noel, oscilantes) e com os batuques de cunho religioso. Age-se como se a gravação de Cartola nos anos 60 com acompanhamento de choro fosse a maneira mais tradicional de performance do samba, e não a novidade que de fato representou na época (graças em grande parte, diga-se de passagem, as gravações de Bossa Nova). A Bossa redefiniu o tipo de olhar que define o que seja mais autêntico (na verdade, sejamos justos, João Gilberto e cia redefiniram o antigo samba, criando uma outra coisa, mas nunca disseram que aquilo que estavam fazendo era o verdadeiro samba. Ao contrário, faziam questão de frisar o seu avanço e diferença. O problema se coloca depois, quando a noção de bom gosto da classe média é transferida para o conjunto de manifestações culturais do país) como se fosse mais tradicional aquilo que mais se afasta do caráter de ritual que o samba tinha em seu início, ou seja, como se fosse mais autêntico justamente aquilo que se afasta do... autêntico.

Entretanto, paga-se certo preço ao livrar o samba da batucada. O batuque na música feita no Brasil, especialmente no samba, não é um elemento acessório como na música clássica – até certa época. Ele é constitutivo da própria forma. Ao se retirar o acompanhamento rítmico de determinados tipos de canção, sem se realizar todo um esforço harmônico e melódico para recriar aquele sentido em outro lugar, a música acaba sendo mutilada. Um samba-enredo regravado no esquema voz e violão não fica só estranho. Ele é completamente descaracterizado, deixando de “funcionar” esteticamente. Pode-se fazer, desde que seja com intenções de criar algo original, ou que este enredo seja o “Vai passar”. Em muitos sambas, é menos prejudicial em termos estéticos retirar o acompanhamento harmônico do que a percussão. O samba é feito para se ouvir sim, mas com o corpo. Ele pega pelo estômago, e não propriamente pela audição atenta de uma sala de concerto – como exige a Bossa Nova. Tirar o batuque do samba é tão grave quanto tirar o contrabaixo de um quarteto de cordas. O mesmo defeito ocorre se um grupo de funk e groove faz uma apresentação para uma platéia que não se move. A música não funcionou, a menos que seja algum tipo de variação jazzística. Ao procurar transpor a concepção ocidental de música para ouvir na execução de um samba que obedece a outros critérios (novamente, sem a transposição formal correspondente), perde-se justamente aquilo a que se procura exaltar. Como certos grupos de rock progressivo que pretendem fazer música erudita a partir do rock, mas inevitavelmente acabam soando como uma caricatura de uma música clássica já ruim, por desconsiderar a concretude da forma com que operam. Quando o fazem a partir do pop, como Pink Floyd, o resultado é muito mais interesssante, menos esquemático e mais criativo.


Na verdade, o problema assume dimensões ainda maiores, pois a tradição Ocidental (da qual a gente participa, e que sistematizou as normas musicais usadas por todos) não faz a menor idéia de como lidar com a percussão. No geral se pensa que a percussão (a cozinha, termo significativo por conter uma dimensão dupla, a de cômodo mais essencial da casa e ao mesmo tempo o mais desprezado) acompanha do jeito que dá as transformações harmônicas – concepção eurocêntrica – sem se fazer a menor idéia de como explicar as transformações que a harmonia e a melodia sofrem por conta do batuque. De fato, muitos sequer consideram a hipótese, sendo que nas tradições mais antigas é a partir do ritmo ditado pela percussão que os gêneros tomam forma. Mesmo a história da música brasileira é a narrativa dos impasses e percalços da harmonia e da melodia para se ajustar ao batuque. Foi isso que ocupou todos os nossos arranjadores e maestros ao longo do século XX. Mas ninguém consegue de fato pensar em como a batida original de João da Baiana para o pandeiro influiu no contorno melódico do samba, ou em como as transformações da linguagem do samba para o pagode da turma do Cacique de Ramos foi condicionada por suas inovações no campo dos instrumentos. É claro que sempre se pode explicar tudo em termos harmônicos, mas o quanto dessa nova harmonização não passa pelo ritmo, pela diferença de acento que existe entre o suro, a timba e o tantan, ou pelo novo molho introduzido pelo repique de mão? A voz tem que ser colocada de outra forma, responder em outra intensidade e interagir com a nova dinâmica proposta pela cozinha, etc. Em suma, criar uma nova forma de dizer, condicionada em grande medida pela percussão. Em certo sentido, toda a riqueza e complexidade de nossa música só conseguiu ser descoberta quando a Bossa transformou a linguagem rítmica em harmônica. Ai não só o Brasil, mas o mundo compreendeu que fazíamos arte. Por isso se colocam sempre os nomes da MPB como os maiores compositores do país. Não porque de fato o sejam, mas por uma incapacidade cognitiva de compreender (e explicar) a genialidade de Cartola, por exemplo.


Aliás, esse esquema de livrar o samba da batucada aproxima-se muito do esquema de padronização e massificação daquele novo estilo de musica brega, tornada possível pela difusão e barateamento do teclado eletrônico (aquele tipo de som feito pelo Frank Aguiar). Com a diferença que no caso do Frank o problema é menor porque a padronização que ele cria está visando à música para dançar. Tanto faz se é Beethoven, Jobim ou Calcinha Preta: o que importa é se dá pra dançar e gritar junto. Já a MPB visa à escuta mais atenta, e ao padronizar o samba mais ritual, faz com que o mesmo decaia em qualidade, e deixe de prestar enquanto música para se ouvir.

Outro movimento do qual acaba se aproximando, embora a princípio por razões opostas, é o tão temido e abominado pagode romântico paulista, que tem no afastamento do batuque uma de suas principais característica, e novamente com vantagens para o pagode, porque o tipo de sonoridade por ele buscada parte dessa separação, enquanto que a higienização do samba é realizada em lugares que a princípio não lhe cabem – novamente, a não ser que a estrutura musical sofra uma alteração correspondente, o que não é o caso. Os pagodeiros faziam música para ser Fabio Junior (os mais ousados, Djavan), já os sambistas da MPB querem sempre soar como Chico Buarque. Até funciona, quando se toca Chico, Baden Powel, Paulinho da Viola, João Bosco, que fazem samba também, mas de um outro tipo, fazendo aquela transposição estrutural que comentamos. Quando a história muda pra Zeca Pagodinho, Ismael Silva, Silas de Oliveira, Geraldo Filme, Candeia, Clementina, Ivone Lara, Martinho da Vila (talvez “disritmia” funcione), aí a sonoridade resultante só consegue marcar a distância com o que aquela música é de fato. Torna-se uma espécie de samba da falta (de vergonha?).

O samba mpbzado das Vilas Madalenas do Brasil padecem do mesmo defeito amadorístico daquelas gravações iniciais do samba, em que era preciso ter voz de tenor e orquestrações empoladas que limpavam o gênero. Foram necessários 50 anos para se perceber que a estrutura daqueles sambas se sustentam no e pelo batuque, tanto quanto (e por vezes ainda mais) na harmonia e na linha melódica. E só a partir dessa descoberta é que puderam de fato criar uma estrutura própria que o prescinde. Tocar “Aquarela Brasileira” de Silas de Oliveira sem a percussão sustentando seu peso não é uma opção estética entre outras, padecendo da mesma pasteurização promovida pelo cãozinho dos teclados. E sem os méritos que porventura aquele possa ter.

Um comentário:

  1. Bacana.
    Na festa de quinta - feira, lá no KABUL você poder tocar o que quiser, a pista é sua!

    Sabia que hoje a cozinha é o centro da casa nas plantas dos imóveis mais modernos e moderninhos.

    ResponderExcluir