terça-feira, 23 de junho de 2009

Alegria de pobre é o fim da cultura

Melancolia é um sentimento desgraçado. É como se todo o ar do mundo fosse trocado por éter e você flutuasse por aí.
Todo mundo sente, e isso desde sempre, taí o Albrecht Dürer que não deixa negar.
Não é tristeza sozinha, é uma tristeza rasa, sem esperança.Quando você sabe que está fodido e não há nada que possa fazer.

Na música ela é formadora, atravessa todos os povos, todos os tempos, todos os lugares.
O Voraz é que sabe.

Eu resolvi fazer um recorte.
Em geral quando pensamos em melancolia, aqueles poetas alemães do Sturm und Drang são as primeiras coisas que vem à mente. Ou uns franceses viciados em ópio. Enfim, gente nobre, desiludida com o fim do absolutismo e a dissolução de sua classe. Chorar é coisa de quem tem tempo sobrando, que não precisa trabalhar.

Mentira, melancolia é coisa de pobre também. Coisa de marinheiro que está longe de casa, coisa de gente que mora sozinha no deserto, de escravo que canta pra não morrer de fome.
A melancolia, como eu disse, é a falta de esperança.

Se eu entendi bem o que o Voraz tentou explicar, o que fizeram pra matar o samba foi lhe atribuir a máxima burguesa: "relaxa, vai dar tudo certo". Mais que esperança, deu certeza pro sambista. Chorar pra quê...

Nem todo mundo pode (ou podia) ter certeza no futuro e esses continuam chorando. Sem lágrimas. Com a voz, com o rosto, às vezes com os braços. Eis aqui alguns deles.
(E pra ninguém dizer que sou um desses comunistas chatos que fica escutando "grupo de maracatu transcultural das mulheres lésbicas da puta que o pariu", só valem os artistas consagrados.)

Começo por Amália Rodrigues. Pobre de Portugal, chamada a Rainha do Fado, consagrou e espalhou pelo mundo o estilo triste de um país que teve tudo e hoje é colônia das próprias colônias, além de quintal de um continente.
A voz é linda, e carrega a tristeza pesada de quem não tem nada a perder.

Chamo especial atenção para a música "Tudo isto é Fado". Para os FFLCHentos, "Coimbra".

"Tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é fado"

Amália Rodrigues - Ao Vivo no Olímpia
http://rapidshare.com/files/127303064/Amalia_Rodrigues_-_No_Olympia.rar


Depois passo pra outro continente. Mais um país que teve tudo e que acabou como colônia de N países diferentes. Da Etiópia sobrou muito pouco. Tirando que vieram de lá os escravos revolucionários e letrados, sua música chegou a uma ilhazinha chamada Jamaica e do cruzamento dela com ritmos modernos surgiu o Reggae.

Mahmoud Ahmed é uma espécie de Roberto Carlos etíope. Outra das não raras histórias de cara que superou a pobreza para se tornar um pop star. Venceu tudo pra cantar o que chama "Tezeta", a palavra etíope para melancolia.
Pra quem gosta de desgraça, tem também o Salif Keita, do Mali (aquele que o Chico César cita na "Mama Africa"). Ele nasceu pra ser príncipe, é descendente direto do fundador do império Mali. Acontece que veio ao mundo com uma desvantagem... é branco. Como a coisa esquenta pros albinos por lá, acabou exilado.

Esse disco dou Mahmoud Ahmed é um "hit": Ere Mela Mela, de 1975. Pros antropólogos antenados, algumas de suas musicas foram lançadas na coletânea Ethiopiques (como o hoje consagrado Mulatu Astatqé, primeiro africano a estudar em Berkley).
http://rapidshare.com/files/177919248/MA-EMM.zip

Por último eu vou ficar com um país bem estranho. O único lugar rico onde até hoje ser preto dá cadeia. Aqui também dá, mas a gente é pobre. Esse é um lugar onde o povo ficou melancólico de tanto apanhar.
Por lá, nos anos 40, tinha um folclorista que ficou famoso. Um tal de Alan Lomax, que a mando da biblioteca do senado de seu país gravou todos os cantores fodidos que conseguiu encontrar.
Uma de suas viagens mais loucas foi entrar nas cadeias só de pretos, onde eles eram forçados a trabalhar dia e noite quebrando pedra e gravar seu canto.
O que marca o ritmo dessas canções é o som do martelo batendo na pedra.

Como era de se esperar, esse país bárbaro não fica nem na África nem na Europa, é os Estados Unidos. Onde os pobre sofria até alguém inventar um jeito de ganhar dinheiro com isso.
A história do Blues não é muito diferente da do Samba, a diferença é que nunca ninguém foi com um gravador na mão ouvir o que o pessoal cantava nas cadeias brasileiras em 1947.
Essa é a martelada: Songs from the Parchman Farms. http://sharebee.com/a4831a9c

Tem gente que tem é motivo pra chorar. Seja etíope, português, norte-americano, até escandinavo há sempre uma boa razão.

Sinceramente? Ainda bem.
Uma das coisas que a humanidade parece ter aprendido durante seu desenvolvimento é que a evolução da produção cultural depende de sua própria involução.
Em outras palavras, o processo de criação artística no âmbito coletivo não segue um padrão dialético. Pelo menos não no sentido hegeliano. Ele depende na verdade de uma profunda ambiguidade: a cultura se estabelece e sua produção em termos materiais se estabiliza nos tempos de barbárie.
Toda a música popular do século XX é prova contundente disso, nem a Bossa Nova escapa.

Então eu nos pergunto. Se praticamente tudo que entendemos como cultura provém ao menos em parte da infelicidade individual ou coletiva, seriam a felicidade, a paz, a igualdade e a harmonia o fim da cultura como a conhecemos?

3 comentários:

  1. Puta que pariu Colombo, vc me botou uma dúvida cruel na cabeça... será que eu quero que o mundo inteiro vire uma suiça, com todo mundo bem alimentado e onde toda criatividade está investida na fabricação de chocolates e relógios, ou que o mundo se africanize de vez, com o risco da África de fato desaparecer, mas onde a gente vai se divertir com qualidade. "Trabalhadores, uni-vos" ou "Nós é pobre mais se diverte"?

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  2. Muito bom esse post. Acompanho seu blog já tem um tempinho. Abraço
    Ana

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