quinta-feira, 18 de junho de 2009

João Gilberto, da Bossa e Luis Carlos, do Raça Negra: alguns problemas práticos de conceituação teórica do samba enquanto gênero.






Sinhô se posicionando frente à Donga e Pixinguinha dizendo que ele é o verdadeiro rei do samba. Na seqüência, Ismael Silva desenvolve uma nova forma rítmica que Noel irá eleger como sendo o samba de raiz, e que de fato passará a ser, para revolta de Sinhô. Mais a frente a turma do Cacique de Ramos será criticada por deturpar o verdadeiro samba, para mais a frente serem eleitos (Zeca pagodinho à frente) como últimos representantes do samba autêntico. Desde seu início até os dias de hoje, uma questão de vital importância para o samba é a noção de autenticidade e tradição, como se para poder ter o direito de ser considerado samba não bastasse simplesmente um compositor trabalhar com o gênero, tendo que adentrar um espaço simbólico carregado de complexidades de toda ordem,em que mesmo aqueles que trazem alguma inovação para o campo precisem se apresentar como representante de algo que esteve sempre aí.É no jogo contínuo entre inovação e tradição que irá se constituir o espaço do samba.

Pra ajudar a aprofundar a questão,vamos observar dois movimentos que causaram impacto no cenário musical brasileiro, em momentos e com intensidades diferentes.A Bossa Nova de João Gilberto e o movimento do pagode romântico iniciado pelo grupo Raça Negra, de Luís Carlos. Tanto um quanto outro guardam em comum certo questionamento da forma do samba, a partir de um gesto que podemos entender como um processo de "abstração" desse paradigma. Ambos o fazem a partir de intenções e formas distintas, evidentemente, e que iremos discutir, mas guardam semelhança nesse movimento de retirar o samba de um determinado lugar específico de modo a trabalhar mais livremente com sua forma, o que inevitavelmente conduz à questão sobre o que, afinal, caracteriza essa forma.

Nesse sentido, inclusive, ambos os movimentos não trazem novidade nenhuma, pois a própria história do samba revela um direcionamento nesse sentido desde sua formação. Não é outro o motivo da disputa entre Sinhô e a turma dos baianos (Ciata, Pixinguinha, Donga...) procurando desvincular o samba de um lugar geográfico específico (a bahia e os terreiros), e também da disputa entre Noel e Wilson Batista (o samba que não é do morro nem da cidade, mas nasce do coração). Esse movimento de abstração foi, aliás, fundamental para que o samba pudesse gradativamente vir a ser eleito como símbolo da nossa nacionalidade. Entretanto, e aí fica marcada a diferença mais profunda com esses dois outros momentos, podemos dizer que o samba realiza um movimento de abstração concreta, no sentido de que ele procurou se desvincular de um lugar concreto de marginalidade, mas incorporando em sua forma todo um imaginário formado por temas, modos de dizer, performances, etc, que vai se constituindo em uma tradição, evidentemente que fluída como todas. Noel, por exemplo, vai falar que o samba nasce do coração, mas nunca vai deixar de fazer crônica do cotidiano do pobre, com sua linguagem sem rebuscamentos e sua temática pé no chão:

“Um Zé Pau d'Água
Tem um amigo parasita
Não trabalha e sempre grita:
Viva Deus e chova arroz!
Gritando assim
Do seu povo ele se vinga:
Viva Deus e chova pinga
Que o arroz nasce depois”.
(Noel Rosa - Chuva de Vento)

Noel não quer que o samba deixe de ser malandro, mas que o malandro deixe de ser encarado como marginal. É a malandragem como espírito, o que é muito diferente de ser o espírito em si, ou o malandro de fato. E se em dado momento ele consegue tornar-se símbolo da nacionalidade é porque seus símbolos foram se universalizando, e não porque foram substituídos por outros mais universais. Caso contrário uma letra dessa, absolutamente dirigida para um público bem específico, não existiria nos dias atuais:

Chico não vai na curimba
Chico não quer curimbar
Bebeu água de muringa
Dormiu no pé do gongá
Hoje não faz mais mandinga
Não que saracutear
Chico não acende vela
Nem manda flores pro seu Orixá

Ele é de banda cheirô
Ele é de banda cheirá

(Zeca Pagodinho - Chico não vai na curimba)
[OUVIR]

A novidade tanto da Bossa quanto do esquema novo do Raça Negra é a opção feita pela inovação em detrimento da tradição, um em nome do esteticismo e outro do mercado pop, respectivamente. E ao resolver a equação acabam por criar algo novo, ao mesmo tempo em que questionam o lugar já estabelecido do samba.

A Bossa Nova [OUVIR] se afasta da parte mais por assim dizer mais "concreta" do samba, seus topoi, temas, convenções, para trabalhar com o gênero de uma perspectiva essencialmente estética. Ao fazer isso, deixa de fazer samba. Quer dizer, até fazem samba, mas musicalmente, e retrabalhando da forma que melhor lhe convier, uma concepção que escapa à noção de tradição que define estruturalmente o gênero. Ninguém diz que o lp Chega de Saudade seja um álbum de samba, embora o samba esteja presente em TODAS as canções. Mas o samba não é apenas uma categoria estética, e sim uma conjunção de fatores e elementos heterogêneos. Mesmo quando João Gilberto grava um samba, o faz deixando claro que se trata de algo novo, uma releitura. O samba colocado em outro lugar para ser artesanalmente resignificado. A ênfase se desloca assim do gênero para o artista, criando-se uma concepção distinta de fazer artístico. João Gilberto faz do samba prioritariamente uma questão de estética, o que ele, de fato, não é. A revelação coloca a questão: quais são, pois, os critérios de definição do samba? Nem a Bossa nem sua derivada direta, a MPB, irão se posicionar perante esse questionamento que sua simples existência coloca inequivocamente. João Gilberto irá resolver a questão simplesmente regravando os sambistas que mais lhe agradam. Mas o precedente está aberto, e até um grupo de roqueiros entre emos e Chico Buarque pode mais tarde questionar um cara como Bezerra da Silva (que evidentemente daria risada na cara dos dois):

"Quem se atreve a me dizer
do que é feito o samba"
(Los Hermanos - Samba a dois)

[OUVIR]

O pagode romântico [OUVIR] também trabalha com elementos a princípio alheios ao samba, excluindo vários daqueles que comumente são associados ao gênero. Fazem música romântica no paradigma Roberto Carlos, seguindo o padrão rítmico definido por Jorge Ben (samba rock desacelerado, do Ive Brussel). Nada de crônica cotidiana, apego a tradição e aos bambas do passado - como a turma do cacique ainda mantém. Sequer o paradigma rítmico do Estácio será seguido, e a sonoridade muitas vezes não irá se distinguir das canções românticas do Wando - que começou tocando samba, a propósito. Todavia, esses grupos mantêm firme alguns poucos elementos típicos do samba – por exemplo, a formação base do fundo de quintal, especialmente tantan, cavaco e pandeiro, que já é uma invenção recente - e, principalmente, não deixarão de se afirmar enquanto sambistas (na sua vertente pagode). Fazendo isso, também revelam - como a Bossa - o quanto o samba tem de inorgânico, e o quanto de sua definição enquanto gênero depende de um complexo estrutural que não é apenas estético, suscitando uma avalanche de questionamentos sobre o que é samba de raiz, samba genuíno, que ao mesmo tempo é e não é um falso debate.

O pagode veio daqui ó:


O debate é falso porque a rigor não existe um gênero mais genuíno que o outro - mesmo o paradigma rítmico do Estácio foi uma conquista posterior ao início do samba, já bem afastado dos batuques de candomblé o dos sambas amaxixados de Sinhô. Samba é muito mais um lugar, formado a partir de inúmeras variantes que envolvem status, performance, melodia, harmonia, instrumental, agentes, momento histórico, etc... que estão em constante movimento. O que é samba genuíno hoje pode não ter sido (Zeca Pagodinho) ou pode deixar de ser, ou pode ainda suscitar debates eternos sobre seu lugar. Não existe, portanto, um samba que seja genuíno, pois como afirma Carlos Sandroni (no livro Feitiço Decente) seu padrão de constituição é naturalmente políritimico e heterogêneo.

Ao mesmo tempo não é um falso debate porque o samba só é samba na medida em que se afirma enquanto genuíno, e pertencente a uma tradição (isso, aliás, lembra um samba do Nelson Sargento, "o nosso falso amor é tão sincero"). Desse modo, afirmar que o Só pra Contrariar não faz samba de raiz é acusação grave, o mesmo que dizer que não faz samba. Todo samba é de raiz, mesmo quando inova. Almir Guineto surge fazendo um tipo de som bastante diferente daquele que fazia Ismael Silva, mas nunca deixou de se afirmar como pertencente à tradição de bambas do passado. Clara Nunes tinha um repertório muito similar ao de várias artistas da MPB e, no entanto, sempre afirmou sua ligação com o samba e com a cultura negra. É, portanto, encarada como sambista, a despeito de gravar Caetano Veloso e Luis Gonzaga. Mais do que fazer um determinado som, o sambista está em certo lugar, regido por leis próprias.

A existência do grupo Raça Negra e seus variantes coloca portanto um problema estético bem espinhoso - principalmente porque os pagodeiros não estão nem aí para a conceituação teórica da coisa, transitando entre Legião Urbana, Roberto Carlos e Arlindo Cruz com a mesma facilidade, e deixando o cenário ainda mais confuso. Ao romper com aspectos tidos como essenciais ao samba - o pertencimento à tradição, o apego às raízes, certa instrumentação, temas, postura malandra - ao mesmo tempo em que não deixam de se afirmar enquanto sambistas (basta ver o que estão fazendo hoje todos esses caras) o pagode romântico revela o quanto dessa essencialidade é de fato exterior e fluída, sem com isso fazer com que ela deixe de ser essencial. É de fato impossível responder se o Raça Negra e outros grupos são samba ou música pop, porque eles são e não são, porque o samba é e não é. Dependendo do ângulo que se observe, eles podem ser. Ou não. Nesse sentido eles fazem com o samba aquilo que a Tropicália havia feito antes com a MPB - e um grupo como o Art Popular tem de fato algo de muito tropicalista, inclusive no sentido positivo de criatividade estética. Tudo pode ser samba, desde que direcionado em certo sentido. Porque o samba é estruturalmente inorgânico desde que se conhece por gente. Afinal, Caetano cantando Peninha é música brega ou MPB? E - questão mais interessante - será que isso, de fato, importa? Se sim, para quem?

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