terça-feira, 16 de junho de 2009

O samba virou música clássica


Galera, prometo que vou me esforçar pra que a próxima postagem seja de discos pra download. É que eu descobri que tem gente que lê mesmo os textos mais longos, e que gosta. Gente inclusive que eu desconheço e que elogia e coisa e tal. Daí eu me empolgo... mas em breve eu vou colocar discos, podem ficar tranquilos... mas enquanto isso...

Fuçando esses dias na internet encontrei esse blog do Luís Antonio Giron, editor da revista Época e autor da biografia sobre o Mário Reis, encontrei esse texto que estabelece um diálogo direto com um dos últimos textos postados aqui (“A mpbtização do samba”). Pois é, não sou só eu que não agüenta mais samba pau-mole, e que reconhece nesse processo de mumificação muitos aspectos negativos. É muito bem vindo e desejável o reencontro de Cartola e Nelson Cavaquinho, mas precisa mesmo tratá-los como peça de museu e reconhecer-lhes valor na exata medida em que os transforma em objetos culturais estéreis? Só falta acender uma vela e ficar cultuando o samba, sentadinho e bem comportado – ou será que não falta nem isso?

Agora, eu discordo de alguns prognósticos mais fatalistas do Giron, ou antes, eu escolho outra vítima para sacrificar- já que um juízo estético em que não role nem um pouco de sangue não tem a menor graça. Essa espécie de samba de câmara que hoje está na moda não indica a morte do gênero, mas a apropriação de determinado tipo de público que perdeu a representação do gênero que lhe era característico, a MPB, essa sim, com os dias contados. As variações de É o Tchan e similares continuam a causar frison no carnaval baiano, assim como a quantidade de comunidades de samba (com música própria), que só fazem aumentar pelo país. Tanto Tereza Cristina quanto Monica Salmazo são muito mais cantoras de MPB – seja na postura, no timbre, no estilo – do que sambistas, estão muito mais pra Marisa Monte do que pra Ivone Lara, diferente de uma sambista como Fabiana Cozza, essa sim, pagodeira das boas.

Aliás, a comparação que o autor faz com o jazz cabe muito mais à MPB – a Bossa não é um samba com cara de cool, ou vice versa? – que ao samba. O jazz sim, parece cada vez mais com os dias contados, e há muito deixou de ser um gênero popular. E numa cultura de massas, esse pode ser o primeiro passo na escala que vai da falta de interesse, para a falta de relevância (social) e subseqüente desaparecimento.

Também discordo do autor quando este assinala como possível causa mortis do samba a sua incapacidade de inovação. Ele chega a dizer em dado momento que é impossível ocorrer qualquer inovação no samba depois da Bossa Nova. Pois é, mas a Bossa não é samba, ao menos não com o mesmo teor que este adquire na Bossa, a chamada moderna música brasileira. O novo não é um valor no samba, que mesmo quando se atualiza o faz ancorado na tradição. Ele não quer ser moderno, ao contrário, procura sempre o respaldo da tradição, extraindo daí o seu valor e encanto. Não se pode cair no erro de julgar um a partir do paradigma do outro. A moçada do Fundo de Quintal faz um tipo de samba completamente diferente daquele da turma do Estácio nos anos 30, e no entanto não cansa de dizer que sua qualidade deriva diretamente de bambas do passado, como Paulo da Portela, Cartola, Manacéa... O samba se renova sim, continuamente, mesmo porque ele segue um padrão composto e heterogêneo (nesse sentido, o Raça Negra não deturpa o samba, mas ao desvincular ele de certa tradição, revela o quanto o gênero comporta de naturalmente inorgânico) mas a concepção de tempo com que trabalha e atualiza guarda ainda forte vínculo com a matriz de onde surgiram as rodas de samba e partido alto. A aparente não renovação do samba, ou seu desenvolvimento circular não é marca de esgotamento, mas sua própria razão de ser.

Não é que o samba morreu. É o seu Giron que esta procurando no lugar errado, num espaço que prima pelo bom gosto, refinamento e, consequentemente, por certo grau de assepsia como é o SESC e similares piores (porque o SESC é bom). Mas numa coisa a gente concorda integralmente: eu também prefiro É o Tchan ao samba de ex-cátedra uspiano. Ou será que temos que agüentar que todo samba fique com essa cara:

O samba virou música clássica
"É o Tchan" ministrou viagra ao samba e o bom velhinho sacudiu os ossos por algum tempo. Mas hoje o samba está morto. Maestro, chame "É o Tchan" para tocar no funeral, por favor!

Luís Antônio Giron

Outra noite fui assistir no teatro do Sesc-Pinheiros em São Paulo ao show das cantoras Teresa Cristina, carioca, e Mônica Salmaso, paulistana. Ambas possuem voz e técnica excelentes, são acompanhadas por músicos melhores ainda – se isso é possível. Elas souberam mesmo entrelaçar seus respectivos repertórios, baseados nos clássicos do samba, de Donga a Paulinho da Viola. Mas confesso que, apesar do maravilhamento da platéia de mais de mil pessoas, comecei a ter uma sensação esquisita: um certo formigamento que só me ocorre em alguns concertos eruditos.

Em tais ocasiões, olho para os lados e observo que estou cercado por gente rica e importante, dona de uma expressão gelada para combinar talvez com as peles cheirando a naftalina. Ao lançar o olhar ao palco, vejo os músicos de alta reputação e competência escravizados aos espectros de Brahms, Schumann ou seja lá quem elaborou a partitura e não permite senão a submissão total do ser à clave. A essa altura, eu já havia voltado para o show de Teresa e Monica. O público é bacana, formado por gente de todas as idades. Não é isso que importa. É que o público parecia tão perplexo quanto distante. E pensei: é isso, é o caráter olímpico da música erudita, a corrida de obstáculos para soprar vida ao passado – isso que rola no palco das sambistas. Elas não pareciam meras cantoras populares, mas mezzo-sopranos de uma arte quem sabe extinta. Elas estavam ali como sacerdotisas de uma prática perdida. E me passou um calafrio pela espinha: o samba está morto. Maestro, chame É o Tchan para tocar no funeral, por favor! O samba acabou e o dia não clareou, como queriam os versos de Paulinho da Viola. Ao contrário do que preconizou Nelson Sargento, o samba agonizou e morreu.

Quando a música morre, ela se torna erudita – ela passa a ser praticada por alguns eleitos, que mantêm a chama acesa a duras penas, com performances virtuosísticas e insuperáveis. Teresa e Mônica, vestais e virtuoses do samba defunto. Elas desfiaram as tramas de letra e melodia como se fossem mantras ou cantochão. Mesmo as canções modernas, de compositores atuais, foram concebidas para vibrar no diapasão do passado, na vibe do irremediável.
O samba é uma dos gêneros da música popular brasileira que se converteu em clássico. Experimenta, nos centros urbanos do Brasil (desconheço os rurais, se é que existem) o mesmo processo vivido pelo jazz nos anos 90. De um momento para outro, todos os grandes músicos de jazz haviam morrido, as maiores descobertas já realizadas e só restava às novas gerações repetir o passado, talvez acrescentando um ou outro melhoramento, mas sempre no sentido de uma reforma respeitosa em relação aos originais. O jazz, que nasceu na dionisíaca New Orleans, hoje vive por aparelhos em festivais e casas noturnas de Nova York e na Europa – tudo a peso de ouro. Quem quiser sentir um pouco do gosto do velho jazz, precisa ir no Memorial Hall de New Orleans e se horrorizar com o rigor mortis a que o dixieland e mesmo o hard bop chegaram. O dixieland do século XXI é o hard bop, executado por anciãos. No samba, dá-se coisa parecida, mas por aqui não existem museus ou salas de lembranças. Não há inovação possível desde que a bossa nova arrancou a batucada do morro, nos anos 50. O samba-de-raiz não passa desamba-de-acervo.

Exemplos dessa prática estava diante de mim, Teresa e Mônica. Aquela
até compõe, mas repete os moldes velhos. Expõe um timbre tão perfeito que a gente desconfia. Canta Paulinho da Viola como se estivesse fazendo uma oração. Monica é acadêmica até debaixo d'água: sua expressão, apesar de esbanjar sinceridade, guarda qualquer coisa de estalactite. Nos últimos discos e espetáculos, ela se converteu em objeto de culto de um grupo de intelectuais paulistanos cuja ligação com a Tia Ciata – a baiana que ajudou a popularizar o samba na Praça Onze carioca há cem anos – é conhecê-la de um verbete qualquer de enciclopédia. Esses intelectuais nutrem o fascínio pelo folclore que jamais vivenciaram. Mônica é a voz do samba paulistano, desidratado e embalado a frio, mais artificial que um pacote genial de salgadinho. Teresa representa o conservadorismo que mumifica o samba e o enterra nos velhos Arcos da Lapa como atração para turista. As duas são piores que salgadinho porque enganam. Porque dão impressão de ser genuínas filhas de Ciata, e têm boa intenção. Elas conjuravam os mortos no túmulo do samba que sempre foi São Paulo (para roubar a observação feliz de Vinicius de Moraes).

Só para contrariar, alguém pode brandir o último Zeca Pagodinho, o revival de Beth Carvaho no DVD ao vivo e a Velha Guarda da Portela. Eu lhes digo, porém, que todos esses talentos já cantam fora deste mundo: manipulam timbres do além. Os arranjos do Zeca, chamado de "Anjo da Velha Guarda”, parece que foram escritor pelo Padre José Maurício. E Beth escreveu o primeiro capítulo do adeus do samba nos anos 70. E hoje é o revival de si própria. A Velha Guarda da Portela anda tão mal que foi proibida de desfilar sem carro alegórico na Sapucaí no último carnaval. As madrinhas de bateria passaram como um rolo compressor sobre Zeca, Beth, Monarco e tantos outros vultos da pátria do tamborim. Não estou dizendo que não sejam todos lindos e maravilhosos. Em 1986, defini Zeca Pagodinho, então no olho do furacão do pagode acústico, de "o Noel Rosa do gênero". Acho que tive razão. Eu mesmo choro cada vez que ouço um samba-canção triste do passado entoado por Zeca.
Estou apenas pedindo um pouco de reflexão. Essa música reverencial e litúrgica que virou o samba não se parece em nada com o som festivo dos anos 1910 e 1920, conservado em gravaçõs históricas. Antigamente, nas festas das tias baianas, o samba era sensual, feliz e divertido. Acompanhava um banquete com dança no final. Era a divertida profanação do candomblé. Rerpesentava a antevisão de uma democracia racial que jamais chegou a existir... O samba pede passagem no além-túmulo. Apesar dos esforços dos médicos, ele agonizou num orgasmo, há uns cinco anos mais ou menos. Quem matou o velho mesmo foi É o Tchan, orquestra de pagode movida a bailarinas sensuais que está completando uma década com um CD duplo É o Tchan – 10 anos (EMI), gravado no berço do gênero, em Salvador, Bahia. Os garotos do Compadre Washington, um gênio da diversão de massa, revolucionaram o samba, trouxeram-lhe de volta à vida. Pelo menos por algum tempo. É o Tchan ministrou viagra ao samba e o bom velhinho sacudiu os ossos por algum tempo. Ao som de um acompanhamento tradicional de samba-de-roda digno de Donga e Sinhô, o rebolado frenético das Scheylas e da Carla Perez surtiram um efeito de encantamento, e o samba levantou as asas sobre nós, extasiado de prazer.É o Tchan pôs sustagem no samba e o fez voltar às paradas de sucesso em 1994 e 1995. As letras podem não ser tão boas quanto as de Cartola ou Noel. Mas preste atenção nisto, e cante comigo, pessoal: "Bota mão no joelho/ e dá uma baixadinha/ Vai mexendo gostoso, balançando a bundinha/ Agora mexe/ Mexe, mexe, mainha/ Agora mexe, mexe,/mexe, loirinha/ Agora mexe, mexe/mexe, neguinha/ Agora Mexe/Balançando a poupancinha". Isso é puro Duchamp, puro Dadá. É a falocracia racial sonhada por Gilberto Freyre. Compadre Washington desconsiderou a história do samba para alívio deste. E o samba voltou a sentir prazer e a ejacular. Era o que o velho queria, retornar à juventude e a encantar as menininhas numa micareta eterna. Não reconheço o samba de verdade no arquivo de cera de Teresa Cristina e Mônica Salmaso. Saí do espetáculo com um travo amargo de morte. No Largo da Batata, ali perto, só se ouvia forró e rap. Nada de samba. Vou ser sincero: eu preferia o Tchan ao samba-ex-cátedra uspiano. Pena que até o Tchan já não tem mais fôlego para fazer uma respiração artificial no velho festeiro. As Scheylas sapateiam no caixão e ninguém se mexe. Um pouco do Brasil teve um surto de euforia moribunda e se foi com o Tchan.

3 comentários:

  1. êita que o investimento nessa internet residencial merece um salve! Tô adorando minhas andanças pelos blogs do povo....todo mundo com coisas interessantes a dizer, mostrar....todo mundo se grudando, nus, estatelados nas telas...

    e o seu...sempre com essa inteligência delicada...

    Fui dar uma olhada no blog do Giron, aí, qdo. vi os elogios que ele faz ao novo cd do Caetano (seu "Cae"), entendi tudo.....heheheh!

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  2. Genial seu texto!!Tenho pensando muito nisso aqui no rio de janeiro.. Precisamos conversar... tenho uns rascunhos e queria que você colocasse os olhos neles...em suma: escrevi um texto mostrando como o que está acontecendo na USP [pelo menos o pretexto do ME pra entrar na briga - ser contra educação à distância é o maior absurdo do mundo!] e na UERJ [cancelamento das cotas] é a mesma coisa: a 'burguesia' inconscientemente lutando por seus "direitos históricos", porque hoje mais do que nunca está claro que conhecimento/informação é simplesmente 'poder'...E ninguém está afim de dividir privilégios com pretos da favela ou com índios no acre, ou com pobres do nordeste, ou caipiras do interior...!!!
    abs
    .t

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  3. Porra, adorei essa discussão toda sobre o samba.

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