Chegamos assim ao momento seguinte de minha formação, em que sofri um processo de retorno ao ecletismo inicial, agora sob outras bases. A origem do processo está em meu desencantamento com a cultura acadêmica e com a vida universitária. Um bode intenso daquele povo todo achando que consegue falar de tudo e entender o mundo, sendo que a maioria é incapaz de trocar uma idéia mais reta com o porteiro do prédio. Linguisticamente incapaz, eu quero dizer. De repente caiu na minha cabeça todo o processo de exclusão necessário para que aquele conhecimento se construísse. Tudo o que eu ia apreendendo com Roberto Schwarz, Foucault e Machado de Assis num instante ficou muito claro. E acho que muito da minha postura de “militância brega” se deve a vontade de tornar isso claro pra todo mundo. A cultura erudita e cult no Brasil serve como instrumento de exclusão, e isso não é apenas uma conseqüência da sua forma, mas sua principal finalidade. Seu gume mais afiado. A arte “séria” existe no apagamento dos excluídos, o que implica em duas conseqüências principais. Primeiro, que essas formas artísticas trarão em si uma fratura formal que não pode ser superada e exige identificação. Segundo, que nosso olhar é incapaz de racionalizar o julgamento das manifestações estéticas que fogem do padrão erudito, e que são justamente as mais relevantes no nosso caso. Sabemos que Luiz Gonzaga é um gênio, mas não sabemos muito bem porque. Só conseguimos avaliar por adjetivos: é lindo, autêntico, do povo. Ou então por análises musicológicas que vão mostrar que Tom Jobim é muito mais complexo – daí o prestígio que a Bossa e seus derivados possuem entre os cults. A racionalidade ocidental não está preparada para julgar as manifestações populares, e lida com isso classificando essas manifestações como arte menor. Ou então passa a aceitá-las como relevantes apenas quando representantes da alta cultura (universitários geralmente) começam a participar dela.
O resultado dessa nova tomada de consciência foi que eu tornei a olhar para aquilo que havia rejeitado, procurando reconhecer a perspectiva a partir da qual poderia julgar o valor desses objetos. Ousando colocar questões naquilo que é tido como o óbvio ululante.Por exemplo, será Cartola de fato melhor que Zeca Pagodinho? A resposta pode até ser afirmativa, mas a partir de então eu teria por objetivo compreender como essa supremacia se realiza de fato, e não simplesmente achar que ela está dada porque estou mais acostumado com determinado paradigma.
A lição da vez foi transmitida simultaneamente por Adorno e Caetano, de que a escuta musical é o lugar em que os preconceitos sociais mais afloram, exatamente por ser o lugar em que menos se apresentam enquanto preconceito. O gosto se converte em dominação. Uma das minhas grandes descobertas se deu quando, ao ler uma reportagem na extinta revista Showbizz sobre os maiores álbuns de rock do Brasil, me deparei com não apenas um, mas dois discos do Roberto Carlos. Até então o rei era para mim sinônimo de tudo o que há de mais brega, kitch e de mau gosto na música brasileira. Fui então ouvir os ditos álbuns Em ritmo de aventura (1967), e Roberto Carlos (1969). Qual não foi minha surpresa ao descobrir dois álbuns incríveis, com um repertório irrepreensível, romântico sem ser brega, rock sem ser bobo como fora a jovem guarda e, sobretudo, black em alto nível. E com um intérprete absolutamente extarordinário. Esses discos me fizeram questionar conceitos que até então eu tinha como estabelecidos, como brega e mau gosto. E aceitar cada vez mais a idéia de que fazer uma música pop e acessível não diz nada sobre sua qualidade. Esses álbuns juntamente com o disco de 1971 (que traz uma das canções românticas mais lindas e bem realizadas do país, Detalhes), me fizeram perceber que o pop é muito mais um instrumento de medida com uma escala que vai do mais acessível para o mais experimental, ao invés daquela idéia do senso comum que equivale o pop a falta de criatividade. Pois se nosso Robertão é brega (e não digo que não o seja, só questiono a negatividade do conceito), não é menos certo que Frank Sinatra também o seja. E a questão é saber se isso faz do “the voice” uma bela duma porcaria, ou se é justamente aquilo que faz dele o cara? Não tenho dúvidas que se o Sinatra fosse brasileiro, ele seria considerado como apenas mais uma porcaria que vende. Todo compositor (e todo crítico) brasileiro é um complexado. Sofrem todos do complexo de Pestana, aquela personagem machadiana que queria compor grandes peças sinfônicas mas que só conseguia fazer polcas magistrais. Não adianta, e o mais próximo que iremos chegar de Beethoven é mesmo João Gilberto, para o bem e para o mal.
Aprendi a mesma lição no meu encontro com os Beatles. Na verdade, o encontro com os álbuns maduros do grupo se deu no momento cult anterior. Até então os Beatles eram para mim os caras do ieieie e das baladinhas gostosas e mais que manjadas. Só depois é que tive contato com os álbuns mesmo, e com a obra revolucionária e altamente experimental pós Rubber Soul. A partir daí os caras viraram para mim sinônimo de psicodelia e piração. E de fato eles são os maiores revolucionários da cultura pop, mais isso porque (e essa descoberta se deu no momento seguinte) eles são simultaneamente os mais pop da cultura pop, e sua relevância está em mesclar os dois registros de forma extraordinária. Eles são o que são porque criaram algumas das melodias mais lindas da história música comercial, perfeitas para se tocar em um acampamento de adolescentes, praticamente definindo o que se entende por pop. Músicas simples, ligeiras, cujo conteúdo se constrói a partir da inter-relação entre letra e melodia. Os quatro rapazes ensinaram também que a criatividade é mais importante do que a técnica. Eles não são geniais apesar de serem pop, mas justamente porque são pop é que são geniais. Um pop diferenciado e de altíssima qualidade, mas ainda assim, pop. A música mais comercial (e nada é mais rentável do que os Beatles) pode ser uma forma artística da maior relevância – daí a necessidade de se olhar com cuidado para todos os lados.
Duas lições ainda foram muito importantes nesse período. A primeira, o encontro com James Brown, revelando para mim todo um novo universo musical. A música para dançar mais radical (construída a partir de um único acorde que assim transfere seu valor harmônico para o rítmico) exige um processo criativo tão complexo quanto às elaborações harmônicas mais complexas do jazz. Mister Sex Machine reduz a música a seu essencial, a seu caráter de rito pagão. E faz isso ao transformar todos os instrumentos – inclusive a voz e a língua – em tambores. Corpo e espírito se tornam um só, e a música ocidental dá uma guinada radical. Coltrane e James Brown estão em um mesmo patamar de genialidade, não sendo possível dizer que a música para dançar exige um grau de complexidade menor do que o da música para ouvir, e que se assim o julgamos é simplesmente porque o paradigma a partir do qual o mundo se organiza é branco e Ocidental, e este é absolutamente despreparado para entender as diversas outras manifestações mais coloridas da linguagem.
Ao mesmo tempo por aqui Jorge Ben me ensinava que o centro nervoso da canção não é a letra nem a harmonia, mas a melodia, o ponto de intersecção das várias culturas que nos constituíram, a partir da fala. Mas eu só entendi o que ele me dizia após receber lições de semiótica.
E por fim as lições de Caetano Veloso desde o início do tropicalismo, que fez sua profissão de fé exatamente mostrar essas coisas que aos poucos fui reconhecendo. Existe música boa (ou pode haver) em todos os lugares, e se não o reconhecemos não é por culpa das canções, mas porque nosso ouvido é a parte mais preconceituosa de nosso corpo. E como tal, uma das mais burras. Daí o processo de regressão da nossa audição, que precisa ser desconstruído se quisermos de fato nos reconhecer na mais rica manifestação artística que existe no país, sendo capaz finalmente de compreender tal riqueza. Precisamos sim compreender em que medida o créu é nacional, porque Claudinho e Buchecha são melhores compositores que a média dos artistas de funk melody, porque Leandro e Leonardo têm mais sucessos que as demais duplas sertanejas. A que tradições correspondem Waldick Soriano e Odair José, respectivamente, como eles a atualizam e qual dos dois é melhor. Ouvir de fato as músicas que gostamos e as que criticamos, em vez de ouvir somente o reflexo de nós mesmos e do capital social que investimos. Entender enfim, porque não gostamos de determinadas canções. Será que a música é de fato ruim, ou sou eu um cusão de classe média, ou um mané qualquer que só consegue encontrar valor naquilo que foi determinado para minha faixa de consumo?
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É claro que esse retorno ao ecletismo não se deu nos mesmos moldes de antigamente. Como dizem por aí, a vida é travessia e, o tempo, redemunho. A vida sempre cobra seu preço, que é não podermos se livrar dela, e minha escuta não passou impune pelo paradigma da música de ouvir. Para esse tipo de ouvinte, a questão não está em gostar ou não de determinado artista, mas em racionalizar esse gosto e justificá-lo em termos de valor estético. É absolutamente necessário que aquilo de que se gosta tenha qualidade em algum nível ou, pelo menos, é preciso se ter muito claro as razões do gosto. Ou seja, tem que se construir uma escuta crítica. O risco evidente e mais comum é se cair naquele normatismo burro que conduz a extremos (como não conseguir ouvir música ocidental). Mas é aí que entra outra lição muito importante, dessa vez da antropologia. Para se entender determinada cultura é necessário se partir em primeiro lugar de seus próprios critérios, com o risco de se cair em uma sobredeterminação reducionista. Em outras palavras, não se julga um show do João Gilberto com os mesmos parâmetros com que se julga um do Reginaldo Rossi. Um show do rei nunca terá a riqueza musical que o violão do mestre João proporciona, ao mesmo tempo que este jamais conseguirá ser tão cativante e divertido quanto o Reginaldo. Escolher um dos critérios (afinal, no show o que importa mais é a música ou a performance?) como o mais relevante e partir daí hierarquizar só irá levar a reducionismos empobrecedores, do tipo João Gilberto é muito chato, ou Reginaldo Rossi é muito brega. Mais interessante, e isso em termos de crítica, e não de gosto, é tentar compreender como ambos são mestres, cada um a seu modo e em seu devido lugar, independente de sua preferência pessoal.
Não quero dizer com isso que meu gosto caiu num relativismo absoluto. Pelo contrário, talvez a lição mais profundamente introjetada por mim nesses anos de formação seja a do marxismo, que é normativo e rígido quase por natureza. Mas um marxismo dialético e, sobretudo, brasileiro, onde a vida social não encontra espaços de mediação para se realizar. No caso de nosso país, mais do que em outros lugares, reconhecer valor só em Miles Davis, Shoemberg, Chico Buarque, Tom Jobim e Frank Zappa não é só um problema estético mas, sobretudo, de classe. Dessa vez, a lição é da sociolingüística: tudo bem em se apreciar um português gramaticalmente correto, desde que reconheçamos o quanto há de elitista e preconceituoso nessa preferência. Para isso, é preciso historicizar a própria língua. O primeiro passo para a crítica é reconhecer o quanto de filha da puta há em seus próprios critérios, construindo assim um tipo de pensamento cuja base de fundamentação é criada pelo objeto. Dialética é o pensamento que comete violência contra si próprio. Adorno. É melhor cair em contradição do que do oitavo andar. Falcão.
De novo, não quero dizer com isso que não entre em questão o julgamento estético. No limite, é sempre o valor que está em questão, mas tendo agora a consciência de que o próprio valor é uma construção que precisa ser revista a cada nova avaliação. Só dessa forma eu posso afirmar que Roberto Carlos é muito mais interessante do que Amado Batista, que o brega romântico de Fabio Junior e Roupa Nova derivam de outra matriz, mais pop romântico internacional, que nada tem a ver com a matriz de onde parte Frank Aguiar,que nesse sentido faz musica de raiz. Longe de ser um pensamento passivo e conciliatório, permite inclusive caminhar mais livremente por tabus e polêmicas, como perceber que Maria Bethania é tão brega quanto Roberto Carlos, e que o lugar simbólico ocupado por ambos se deve a outros critérios que não estéticos. Afirmar que a Banda do Chico Buarque é bem fraca, que Sabiá mereceu as vaias apesar de toda sua pompa, que a Bossa Nova é de fato elitista, e que essa dimensão é essencial para sua força estética. Que o pagode do Art Popular é mais interessante do que a maioria do samba universitário que os artistas da nova velha MPB fazem hoje, assim como Ivete Sangalo é muito mais artista que Maria Rita. Que o Pink Floyd é o melhor grupo de progressivo não por ser o mais experimental mas, ao contrário, por fazer o melhor pop. Que Luis Gonzaga é tão importante para o surgimento da MPB quanto João Gilberto e Tom Jobim. Em outro campo, reconhecer que Godard é um gênio, mas que Spilberg também é. Cada um na sua. E por ai vai. O mais interessante dessa forma de pensar é não tentar encontrar valor apenas no já consolidado, transformando o mundo num reflexo da própria subjetividade. Encontrar, de fato, o outro. Levar a sério a premissa básica (e que no meio acadêmico, por exemplo é muito rara) de que o pobre também pensa, e que portanto estabelece critérios lógicos de avaliação que trazem contribuições relevantes, não sendo pura massa de manobra. Isso não significa ignorar o peso das determinações da Indústria Cultural, mas reconhecer que ela não é a mão invisível do Adam Smith, mas a totalidade particular do capitalismo. A contradição tornado forma, tal como descrita por Marx, uma estrutura rígida absolutamente maleável.
Caralho! Você fala pra eu escrever no blog, mas você já formaliza de maneira tão clara e pungente tudo aquilo que penso de modo desordenado. O texto é lindo, estou chorando.
ResponderExcluirVivi
Disse tudo. Perfeito!!!
ResponderExcluirAh!
ResponderExcluirNão tinha lido a parte II.
Marx, o retorno(!).
Continuo assinando embaixo do argumento principal. E sei que vc sabe que Adorno deve tá se revirando no inferno.
Não estou chorando como o Vivi. Mas confesso que estou surpresa por encontrar a formalização de algo que aponta justamente para o caminho que estou tentando construir.
é nói na fita!
F.
Adorno deve estar se revirando no inferno. rs
ResponderExcluirMUITO BEM! Deveríamos ter essa matéria na faculdade. Aliás a sócio linguística é contraditória ao que aprendemos no resto do curso. uma pena.
Pois é... Adorno vai se revir no túmulo, principalmente se ele souber que o conceito de regressão da audição tá sendo usado pra mostrar que ele não sabe ouvir... Wando. Mas o cara não conhecia o Wando né... pior é nossa patrulha do bom gosto e da tradição, que estão se revirando em algum samba raiz de 20 conto ou na frente de um dvd (original) do João Gilberto ao vivo no japão.
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