domingo, 3 de agosto de 2008

Da série Diretores cults que odiamos, diretores comerciais que amamos




I – Wood Allen e Steven Spielberg
Tenho dito: não gosto daquela coisinha neurótica irritante que nos obriga a assistirmos a um filme como se acompanhássemos a uma sessão de psicanálise. Pois é, não gosto de Woody Allen.
A bem da verdade, e pelo fato mesmo de não gostar, eu assisti a pouquíssimos filmes do cara, acho que uns quatro, daí que o juízo acima possa ser radical demais e mudado a qualquer momento. Mas o fato é que eu tenho a sensação (chame de intuição feminina) de que não vou gostar de nenhum filme do cidadão. Isso porque eu reconheço nele o talento de bom diretor, e de roteirista bem acima da média geral. Minha birra é com ele enquanto sujeito mesmo. Eu não gosto do Woody Allen, e ele nos obriga a engolir sua figurinha em todos os seus filmes de forma muito próxima, por conta de um caso patológico de narcisismo - o mais radical da história do cinema. Aproveito pra adiantar que o exame minucioso de suas neuroses, assim como o reconhecimento cínico da inutilidade dessa consciência, leitmotiv de muitas piadas, é uma de suas qualidades. Pois é, meu problema com o cara está exatamente em suas qualidades.
Decidi escrever esse texto após assistir o clássico Noivo neurótico e Noiva nervosa. Desde já digo que achei um ótimo filme. A estrutura não-linear realmente se aproxima muito do que o cinema de vanguarda europeu andava fazendo, e as soluções narrativas encontrados são primorosas, merecendo todo o destaque e premiações que recebeu. Méritos também por ter conseguido fazer dessa obra, bastante livre e avançada, um sucesso comercial. Eu sempre admiro os artistas que conseguem inserir algo de inovador no circuito fechado da cultura pop - por isso considero os Beatles a grande banda do século XX. Aqui uma primeira discordância com a crítica, se bem que leve: mesmo nesse filme, tido como um dos mais engraçados do diretor, as piadas não são de morrer de rir, e muito por conta de certo direcionamento a que já irei comentar. Mas em todo caso, elas são muito inteligentes e realmente afiadas, funcionando a seu modo. Não acho ruim o fato de ser uma comédia engraçada, mas que faça mais pensar do que rir. Comento isso por ser um argumento comum entre os que detestam o cara. Que comédia é essa que não faz rir? Mas nesse caso eu acho que é meio injusto, porque Allen é antes de qualquer coisa – como todo bom egocêntrico - fiel a si mesmo, e o fato de seus filmes tenderem a comédia se deve a uma fidelidade a sua visão de mundo particular, cínica e amarga, que tende ao cômico. Suas histórias contêm também toques de trágicos, melancólicos, de romance, mas tudo isso é filtrado por seu olhar e sua perspectiva ácida. É como se o fato de serem engraçados fosse uma conseqüência a contrapelo de sua perspectiva, e não a razão de ser do filme. O título de comédia nesse caso, é meramente um rótulo.
Sendo um grande cineasta, ótimo roteirista, inovador e corajoso, qual é afinal o meu problema com o cara? Pois é justamente esse narcisismo, a exposição de um tipo de homem que eu não gosto. Allen mistura em um só tipo muitas coisas que eu detesto. A arrogância nada dissimulada de um americano, ou melhor dizendo, de um Nova Yorquino que se acha o centro do universo. Mesmo no interior de um arsenal de críticas, e que mostra muito bem as fraquezas daquele universo – o neurótico não é apenas Allen, mas toda a sociedade que ele está descrevendo – o clima geral (e que não se nega) é o daquela patética camiseta Eu (coração) NY. E ele sabe disso melhor que ninguém, e o quanto isso é patético. O machismo que faz com que considere as mulheres seres inferiores destinadas a satisfação sexual, mas com inteligência suficiente para considerar que elas vieram com defeito de fabricação, advindo daí grande parte de seus problemas – eu realmente torci muito pra que a Annie Hall se livrasse da influência perversa daquele cara. Um egocentrismo absolutamente irritante, que torna o mundo um universo povoado de idiotas (ele mesmo um deles) desinteressantes - mas que ao mesmo tempo pode ser fascinante – a girar em torno de seu umbigo. Em suma, a arrogância nada dissimulada de um pseudo-intelectual no reino podre do show bussines. Mesmo quando o diretor faz uma crítica mordaz (e isso o tempo todo) daquela postura arrogante e superficial dos membros de uma elite que adora Bergman e Antonioni, se reúnem em saraus para ler poesia e ouvir jazz (no Brasil, para ler poesia e ouvir Chico Buarque), como na cena excelente em que chama o próprio Marshal Macluhan para contestar um desses malas de fila de cinema cult que citou o próprio em um chaveco de embrulhar o estômago. Mas o fato de colocar um filósofo no meio de uma comédia para fazer uma piada indica o quanto o diretor (e novamente, ele sabe disso melhor que ninguém) compartilha desse universo pseudo intelectual e reproduz seus valores. Porque afinal de contas, todo intelectual que se preze tem que ironizar o seu próprio meio.
Não que eu ache que o artista tenha que buscar transcender seu próprio meio. Ao contrário, eu acho que isso é impossível de ser feito, e caso Allen decidisse fazer dramas proletários (para ser bem clichê) aí não teria a menor relevância. Ele é excelente em mostrar os dilemas de seu meio. Mas também não é pelo simples fato de eu detestar o universo em que ele se concentra que eu não gosto de seus filmes. Eu adoro de paixão o Machado de Assis, que foi absolutamente fiel ao meio aristocrático brasileiro do Segundo Império, em minha opinião uma das classes mais nojentas que já apareceram na história. E tanto foi fiel a seu ponto de vista que os escravos – tidos como algo menos interessantes que baratas – quase sequer aparecem. Entretanto (e essa comparação apesar de injusta com o Allen e algo forçada, serve bem para mostrar meu desacordo) um abismo se coloca entre os dois quando comparamos o olhar que conta a história. O narrador machadiano é o principal a ser denunciado em seus romances maduros, de modo que a validade de seu ponto de vista cai por terra. Ao passo de que Allen reconstrói suas histórias a partir de sua perspectiva... honestamente apresentada para ser criticada e julgada realmente, é verdade, mas ainda assim integralmente sustentada. Allen diz, essa merda toda fede, mas é isso aí que é, aceite ou vá caçar outra coisa e para de me encher. Machado diz, isso ta fedendo demais e não tem mais jeito, por favor Prudêncio, dê a descarga.
Em suma, o diretor mostra uma imensa coragem em se expor (coragem proveniente de uma imensa satisfação narcísica) transformando cinema em consultório, mas no fundo apenas para afirmar que está certo, que os outros são inferiores mesmo, que as mulheres existem para ser subordinadas, que ser intelectual é estar um passo além. Eu não gosto de gente assim, e portanto, não gosto de Woody Allen. Outro mérito seu, evidentemente, é conseguir passar essa impressão – fruto da ilusão cinematográfica, por mais fiel que seja – de que é ele por inteiro que está ali. Nem Fellini, nem Truffaut conseguiram ir tão longe nesse propósito. Vem daí a relação de amor e ódio que se tem com o cara. Não da pra ficar indiferente diante de uma personalidade que se afirma com tanta ênfase. Ou se ama ou se odeia.
A impressão final que me fica é que Allen cria obras para serem exibidas entre seus amigos de universidade, agora senhores distintos. Uma espécie de auto ironia cínica e ao mesmo tempo complacente. Somos mal caráter, usamos Bergman para comer as calouras, e amamos isso. Acho que ele é o diretor que faz o retrato mais honesto dos membros da intelectualidade norte americana, sob a ótica dos seus atores, com seus dilemas e contradições. E por conta desta que talvez seja sua maior qualidade, o que se apresenta me incomoda e desagrada. Afinal, não é comigo que ele está falando. Daí deriva aquele humor sem risos a que aludimos no início. As piadas têm graça, porém para um grupo determinado a quem elas se destinam. Pode-se argumentar que todo filme que foge do esquema de Hollywood sofre do mesmo problema, só sendo compreendidos ou apreciados por alguns iniciados. Mas o problema é diferente justamente porque Allen faz filmes comerciais, só que direcionados para uma determinada classe mais ‘refinada’ (leia-se, aqueles que sabem que Foucault era gay, ou que conhecem a circunstância da morte de Walter Benjami). Uma coisa é você colocar o Marshal Macluhan pra fazer uma crítica direta a um pseudo intelectual. Outra é você fazer o mesmo Macluhan dançar Tha tha tha só de sunga – Groucho Marx com certeza deve ter pensado nisso. Só mais uma comparação também injusta, observe que Fellini (o do Oito e Meio e A Doce Vida) também aborda o meio intelectual em que vive, suas angustias e seu vazio, mas para transformar aquele universo reduzido em uma dor que se torna a tragédia do mundo contemporâneo. Salto não realizado por Allen, que não escapa a seu gigantesco ego.

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O diretor blockbuster, maintrean, e outros termos gringos que indicam supremacia em vendas que eu adoro é... Steven Spielberg. Amo! E não o Spielberg careta, choroso, candidato a cult, e clichê que resolveu se levar a sério com filmes bonitinhos e dispensáveis (pela repetição) como A lista de Schindler, aliás, um bom filme. Nada disso. Eu amo o Spielberg das crianças e dos jovens (de todas as idades, como diz a propaganda), aquele que renovou totalmente a forma do cinema dito comercial (e qual não é? Não é somente porque um produto não vende que ele não é comercial) de narrar uma fábula. O cara é um dos maiores contadores de história do cinema. Ele fez aquele bicho horripilante que é o E.T ficar mais famoso que o Mickey - que por sinal, não é menos horripilante - e nos fez tremer de medo com tubarões e dinossauros. Ah... e ele tem o trenó do Cidadão Kane. Aliás, coerentemente, pois em certa medida ele é o próprio Charles Foster. Ele e o Michael Jackson (quando será que um grande diretor vai descobrir que pode reler toda a história do mundo contemporâneo a partir da figura do Michael? O cara é um símbolo pronto, é só pegar, agitar e usar). Mas de qualquer forma, o que o Spielberg quis mostrar com a Lista de Schindler já havia sido dito (e muito bem) em E.T e Contatos Imediatos, de forma muito mais divertida.
Engraçado né... acabei de meter o pau no Wood Allen por questões ideológicas, e exaltei agora o símbolo maior da industria cinematográfica norte americana. Pois é.. mas um é cult e o outro não, grande diferença, como preferir Roberto a Chico; tem coisas que icomodam mais que outras. Como sempre afirma nosso querido Falcão a seu guru Galvão Bueno, é preciso cobrar de um time que tem qualidade, e é inútil exigir muito quando o time é fraco. Não sou nenhum purista ou reacionário de esquerda pra achar que os preconceitos em geral não podem ser divertidos. O machismo é desejável em um filme – excelente - como Duro de Matar: imagine se o Maclaine fosse um homem sensível a questão das mulheres e coisa e tal. Mereceria tomar um tiro. Mesma coisa com o preconceito em Rambo ou o conservadorismo em filmes de terror: são muito bem vindos. Mas esses caras não querem debater nada, só querem atirar e explodir e estripar. Agora quando esses mesmo valores estão presentes em filmes mais complexos, em um cinema que se pretende contrario ao mainstream, esses direcionamentos ideológicos se tornam problema estético.

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E não percam no próximo capítulo: porque odeio o chatíssimo Tarkóvski e adoro José Mojica Marins. Nacionalismo indulgente ou fetiche por unhas?

2 comentários:

  1. Eu estava aqui, passeando pela net, com a singela intenção de catar umas musiquinhas que são inacessíveis à compra (sim, eu ainda compro cds)quando me deparo com esse blog, que dentre pérolas musicais, encontro textos magníficos, inteligentíssimos e, o que é mais importante, críticos. Porra, alguém concorda comigo sobre Wood Allen. E eu nem tinha pensado na metade desse argumentos usados aí. E ainda tem por cima, Falcão como guru. Salveeee!!! Há vida na internet, que alívio.

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  2. Valeu Dandara.. mas lembra que o texto diz que eu poderia mudar de opinião.. pois é, assisti A rosa Púrpura do Cairo, e o filme é absurdamente lindo... mas não parece Wood Allen...rs. Digo, não tem ninguem fazendo o papel dele, e o público para quem ele se dirige é bem mais amplo. MAs, gostei de um filme, fazer o que... Valeu pelo comentário... e salve Falcão!

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