sexta-feira, 23 de julho de 2010

A Potencialização do Frágil: Bloco do eu Sozinho e Ventura, do Los Hermanos (2\2)


Depois do apanhado de canções francesas, faroeste, valsa e ska, que é o Bloco, Ventura pode ser visto a princípio como uma guinada do grupo para um indie mais tradicional. Pode, mas tal leitura seria, para dizer o mínimo, parcial. O Drummond de “Claro Enigma” trocou uma poesia de forma mais ostensiva, retornando ao soneto e à formas clássicas, e Pelé na copa de 70 já não era aquele furacão que por todos passava, mas o distribuidor tranqüilo e magistral. Pode-se dizer que esses gênios deram uma guinada mais conservadora, ou pode-se com mais propriedade, afirmar que eles passaram por um processo de maturidade. E é isso o que acontece com esse disco do Los Hermanos, seu álbum da maturidade, assim como o 4 será o da senilidade. Os elementos de ruptura do disco anterior estão ainda presentes, só que concentrados na forma mais elementar da canção, tencionando expectativas de uma forma mais contida, por vezes mais eficaz (processo semelhante ocorreu com outro monstro sagrado da nossa música, Itamar Assumpção, que sofreu um gradual processo de acomodamento das rupturas até atingir um maior grau de organicidade nos últimos álbuns, não se tratando aqui de juízo de valor estético, mas apenas descrição de um dado formal). A estética da ambigüidade, do rarefeito, do impreciso atinge aqui outro patamar, As letras revelam e ocultam, as melodias sugerem caminhos tortuosos, que poderão ser negados. Os metais voltam a ser ilustrativos, mais fortalecendo que dialogando com os sentidos da canção, mas ainda guardam o poder de ampliar sentidos e romper como em “Deixa o verão”. As músicas continuam dispensando o refrão, negando o jubilo conciliatório final. O louvor do perdedor implica na aceitação da fragilidade, tida agora como um modo de questionamento da força, da razão, daquilo que está estabelecido. Daí o aparecimento de certos personagens, como a mulher que não aceita mais o seu castelo-prisão em “Do lado de dentro”, ou que cansou de ser colocado em segundo plano pela “Outra”, e ainda o casal de velhos que aceitam a negatividade absoluta (morte) por amor. Todas figuras positivadas em relação ao lado vencedor, o já estabelecido, a norma. Mesmo o amor aparece fragilizado em vários momentos, com um misto de ironia e seriedade.

Impressiona a quantidade de excelentes composições do álbum, fazendo deste a meu ver um dos grandes discos da música brasileira. Peças delicadas que falam de dor e separação, mas também de se aprender a viver a dor, ao invés de exibi-la aos quatro cantos, que é outra forma de se esconder:
Não há ninguém capaz \ De ser isso que você quer \ Vencer a luta vã \ E ser o campeão \ Pois se é no "não" que se descobre de verdade
Logo de início, um samba auto referencial, diferente, que não aceita ser subjugado pela camisa de força do estilo, e depois “O Vencedor”, com sua letra manifesto pró-sujeito derrotado. Na sequência duas lindas baladas,o rockabillie suave “Ta bom”, com um excelente arranjo bastante dinâmico que ilustra, comenta e direciona o sentido das explicações de Camelo a seu amigo sobre as desvantagens de ser um macho vencedor com uma mulher, e a declaração de amor delicada de Amarantes em “Último Romance”, uma das poucas que não falam da separação, mas que também trata da fragilidade, pois pode ser interpretada como um caso de amor entre idosos, ou entre sujeitos em alguma situação extrema. Nesse disco Amarantes se revela como grande letrista, com suas canções de amor construídas a partir de eventos cotidianos, mas com certo grau de mistério que deve bem mais a Renato Russo do que a Chico Buarque, como se costuma dizer. Assim como na mais cifrada “Do Sétimo Andar”. Alias, essa é um bom exemplo de como as letras do grupo se constroem no limiar entre o que se revela e o que se oculta, pois nesse caso a descrição das cenas cotidianas carregam significados implícitos que não possibilitam constituir uma narrativa, mais um signo da fragilidade estrutural que diferencia o grupo.
E foi difícil ter que te levar \ àquele lugar \ Como é que hoje se diz? \ Você não quis ficar
Ao invés da especificação do lugar, uma pergunta que amplia a obscuridade, revelando entretanto certa incompatibilidade de interesses
E se eu numa esquina qualquer te vir \ será que você vai fugir? \ Se você for, eu vou correr
Correr dela ou correr para ela? Impossível dizer. Os encadeamentos narrativos são subjetivos e não se revelam. Podemos interpretar de inúmeras formas quais são os personagens envolvidos (mãe e filho drogado, Amarantes e seu cachorro, mãe e filho abandonado num abrigo...), nenhuma estará completamente certa ou completamente errada. O que importa captar é o próprio jogo de ocultamento\revelação que trava o que é narrado e se recusa a transformar a fragilidade em um discurso linear.

“A outra” cede voz ao eu lírico feminino, um desdobramento lógico da crítica ao vencedor (o macho dominante) empreendida pelo grupo nesse disco, em um clima meio Havaí zen (“Como uma onda”, do Lulu Santos) latinizado, em outra canção circular onde o clímax constantemente se anuncia e se esvai. “Cara estranho” tem a forma de um rock mais tradicional, mais ainda aqui a relação forma conteúdo é bem realizada, porque a personagem principal é um vencedor típico, hardcore. Só que este é aqui visto a partir de um olhar crítico. “Além do que se vê” tem letra e melodia excepcionais, além de um arranjo bastante competente que cria o clima perfeito para tratar de uma história de separação e superação. Nesse disco o talento dos dois compositores está a toda força, as letras tem um desenvolvimento melódico e semântico bastante incomuns, sem perder a delicadeza e o poder de fixação.


Na sequência surgem três peças geniais que merecem um olhar mais detido. “Conversa de botas batidas” é uma canção brilhante, que confirma que o tema do grupo deixou de ser o amor imaturo de adolescente emo. Ser um derrotado não é se exibir por ai com cara de choro, mas aceitar com humildade e consciência o vazio primordial da existência. Diferente das outras composições, dessa vez a base do arranjo fica por conta do piano, o que a deixa soando como aquelas grandes canções do Elton John do Goodbye Yellow Brick Road, apesar de se tratar aqui de um samba enrustido. A música se constrói a partir do encaminhamento perfeito de partes com sentido melódico distintos, que fazem com que a exaltação final – com coral e tudo – não soe piegas. Uma análise semiótica dessa composição seria bem útil para revelar seu alto grau de complexidade e acabamento formal. Aliás, o clima final, exultante, é bem diferente do restante das composições do grupo, que no geral terminam sem ênfase, em pianíssimo. É que nesse caso a letra, baseada em história real segundo o próprio Camelo, trata de um casal de velhos amantes que decide caminhar juntos para a morte, em paz e sem mais esconder seu amor, em um hotel que sofre um incêndio. Estamos dessa vez diante de um caso extremo de aceitação da maior “derrota” de todas, a morte.
Deixa o moço bater \ Que eu cansei da nossa fuga \ Já não vejo motivos \ Pra um amor de tantas rugas \ Não ter o seu lugar
Na sequência, “Deixa o verão” e “Do lado de dentro”, duas canções que retomam a forma das peças mais “inusitadas” do disco anterior. A primeira é um ska alegre e divertido sobre um casal que prefere fazer sexo a ir pra balada. Toda a música é marcada por um arranjo descritivo que tece comentários sobre a narrativa, seja o som da mesa do bar, seja o tic tac do relógio a marcar a passagem do tempo. O encademento melódico também tem grandes momentos, como na passagem E ainda é cedo pra lá \ chegando às seis tá bom demais \ Deixa o verão pra mais tarde, que prepara para o refrão acelerando o encadeamento dos versos, sugerindo a urgência toda da coisa, que vai culminar no bocejo ao final da música. E ainda tem uns breques excelentes, como aquele em que o andamento da música é consideravelmente reduzido, antes de voltar para o fim, ou aquele imediatamente anterior que sugere um clima country. O Amarantes é de fato mais divertido que o Camelo. É a parte rock n’ roll do grupo, fundamental pra que eles não se tornassem mais um grupinho de MPBosta universitário. Alias, a primeira musica do último disco revela as razões do fim do grupo – Amarantes não conseguiu mais conter a chatice do Camelo.
“Do lado de dentro” é um exemplo magistral de trabalho com arranjo. Começa com uma introdução em que a guitarra vai gradualmente perdendo sua força, até que só sobra o silêncio a partir de onde o homem (vencedor) vai falar. De tal modo que quando sua fala se inicia, o silêncio da guitarra ecoa por todo o trecho (até sua volta na estrofe seguinte). O resultado é que a introdução retira a força daquele enunciador, o homem, o que no fim das contas vai ser o tema da canção, a negação do macho dominante (que, pra variar, é um diálogo – outro modo de se operar com o relativismo das posições). Quando a guitarra volta, o arranjo e a melodia vão caminhando para um crescendo, até a afirmação do sentido último “Que eu sou teu homem, viu”, razão pela qual a moça deveria aceitar o rapaz de volta. Quando entra a voz da mulher, ela também surge em silêncio, mas a situação criada pelo arranjo é completamente diferente. O corte é abrupto e serve para destacar sua fala, que está dando ordens, e não fazendo um pedido. A seguir, em um momento genial, suas palavras vão se destacar sobre uma base circense, revelador da tomada de consciência de que aquilo se tornou um circo, mostrando um distanciamento de alguem que já superou o trágico da situação. Ao final desse momento, os metais entram fazendo um alarde de grande intensidade, sobrepujando completamente o clamor masculino da primeira parte. E por fim, a parte final, a libertação e fuga daquela prisão. Uma canção genial.
O disco se encerra com “Um par”, em que a relação entre pai e filho é tratada como uma relação entre marido e mulher que só no fim revela-se outra coisa. A relação óbvia que se estabelece é entre o marido e a criança, mais uma crítica à supremacia do macho. E pra finalizar, como não poderia deixar de ser, uma canção mais down “De onde vem a calma”, em louvor aos perdedores, mas que não é tão boa, talvez anunciando o que seria o próximo disco, um álbum com canções bem realizadas, mas que se leva a sério demais, perdendo em ironia, o que lhe diminui consideravelmente a ambigüidade – ponto de força do grupo.

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