terça-feira, 25 de novembro de 2008

O mistério de Pantanal (homenagem a linda Bianca)


Para aqueles que de fato mudam de canal e assistem Pantanal, de Benedito Ruy Barbosa, uma boa notícia. Foi lançado o livro “Pantanal – a invenção da Telenovela”, de Arlindo Machado e Beatriz Becker, que procura esclarecer as razões de seu sucesso, a partir da análise das inovações que foram por ela introduzidas. Confesso que ainda não assisti a novela inteira, mas como sempre me interesso por análises de objetos de cultura de massa que procuram compreende-los de fato sem partir de conceitos negativos pré-estabelecidos, fiquei curioso para ler o livro. É possível sim fazer arte para as massas, com qualidade, senso crítico, inovação estética, sensibilidade e o que quer que seja. Algumas das principais características apontadas pelos críticos, responsáveis pelo sucesso da novela são:

A linguagem :
A meu ver a característica mais importante, e que é a primeira coisa que chama a atenção, pelo menos nos capítulos que assisti. Trazia influência do cinema, com planos mais abertos, cortes lentos, enquanto a maioria das novelas usavam closes e tinham cortes rápidos. As cenas de Pantanal eram longas e tinha tempo para o silêncio, deixando em evidência a paisagem, com seus sons e seus ruídos. O espaço se torna fundamental também uma personagem, o que é fundamental para se entrar no clima da história.

O tema:
Creio que esse ponto não apresenta grandes inovações. Desde o Romantismo já se explora o embate entre rural e urbano, questionando-se conceitos de progresso, riqueza, ascensão social e individualismo, e apresentando uma região idílica como ponto de fuga para o pesadelo da realidade. Ainda assim, na época, a maioria esmagadora das novelas eram ambientadas no centro urbano.

Sexo:
A novela se aproveitou da recente abertura política para explorar cenas ousadas de sexo e nudez, o que influenciou todas as redes posteriormente.
Personagens: Fugia do maniqueísmo e evitava os clichês de vilão e mocinho. Seus personagens eram mais complexos que a média das telenovelas.

Elenco:
Por ser de uma emissora jovem (a Rede Globo não acreditava no projeto), não podia contar com grandes estrelas, lançando assim uma série de atores ainda desconhecidos.
Não posso deixar de comentar sobre o oportunismo malandro dos autores do livro, aproveitando-se do novo sucesso da novela para também descolar algum dindin. Mas isso de fato não importa, e o único problema é que a idéia não foi minha, ou não foi encomendada para mim.

Além disso, tem uma notícia melhor ainda. Esse estudo faz parte de uma série sobre alguns marcos da televisão, e os próximos livros que irão sair vão ser sobre o Chacrinha, Betty, a feia e o magistral, fabuloso, extraordinário, sem precedentes Chaves!!! Esse eu não perco.

fonte: Folha de São Paulo, 23\11\2008

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Ainda o cowboy Jorge

Só para complementar os posts anteriores, seguem alguns vídeos interessantes do Jorge Ben. O primeiro é de 1970, bem da época em que ele estava criando sua nova sonoridade. Saca só a cara de espanto da galera, sem entender nada do que tava acontecendo ali. Nessa época Jorge estava voltando a receber a atenção da mídia por conta da tropicália. A performance tem um que de Blues man misturado com sambista e ainda algo de Bossa na postura, mas tudoaomesmotempoagora formando um todo absolutamente original, como comentamos:



O segundo vídeo é só pra mostrar o quanto a sonoridade do cara era uma pancadaria na época.... os caras estavam fascinados com as possibilidade abertas pelos Beatles, Led e afins... e a pegada do Jorge era monstra realmente, não à toa o Caetano ajoelha...rs. A gravação é um trecho de um festival de 73, e coloca os dois maiores monstros da época, Gil e Jorge, juntos.



E de brinde, o melhor solo de cuíca de todos os tempos, do maluco do trio Mocotó.. uma coisa extraordinária realmente. Saca só:

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Os fantasmas de Jorge Ben (I)



LEIA TAMBÉM (PARTE II) e (PARTE III)

Jorge Ben – Primeira Fase (1963-64) – O Fantasma de João Gilberto

Jorge Duílio Lima Meneses desponta no cenário musical brasileiro como um cometa. Ou uma bomba. É dessas figuras que não tem sentido e sob a qual nenhuma explicação racionalista consegue lançar luz. Seu aparecimento é ao mesmo tempo uma ruptura com tudo o que havia sido feito até então, e uma fusão de todas as coisas, até certo ponto mais radical do que o projeto Tropicalista, porque mais orgânico e espontâneo, menos programático.
Ninguem entendeu aquele som novo que surgiu em 1963, feito por um garoto carioca que havia começado tocando pandeiro em um grupo de samba, depois passado para guitarra em um conjunto de rock, e finalmente, cansado de reproduzir os estilos dos outros, criando o seu próprio. Ou melhor, todo mundo entendeu – o disco de estréia de Jorge foi um dos maiores sucessos dos anos 60 – mas no nível do conhecimento profundo. O difícil era classificar, enquadrar em alguma categoria racional. Provavelmente nem mesmo o próprio autor entendia bem o que estava criando, e como o fez. Não era um projeto estético, como a batida de João Gilberto. Era mais uma coisa que nasceu assim, que era dele.
A capa do primeiro disco (Samba Esquema Novo – 1963) lembrava a atitude despojada da Bossa Nova, assim como os arranjos samba jazz das canções, criados por J.T Meirelles (do copa 5). O próprio Jorge reconhecia sua filiação com a Bossa – nessa fase chegou mesmo a gravar uma composição do João Gilberto. Aliás, não é exagero dizer que a Bossa é em grande medida responsável pelo surgimento de Jorge Ben (assim como de toda MPB), que representa no entanto um passo além em relação a esta. A principal contribuição da Bossa para a música popular foi ter liberado a canção das delimitações fixas de gênero, forçando cada uma das composições a encontrarem modos de representação próprias, possibilitando assim a mistura criativa de diversos elementos heterogêneos, sempre a partir de um olhar racionalizante. Mas como a Bossa estava presa ainda a um projeto nacionalista – que depois se tornaria nitidamente ideológico com a canção de protesto – de definição do caráter nacional brasileiro, acabou se tornando ela mesma um gênero, ainda que feito para acabar com todos os demais. O passo além de Jorge foi desestabilizar o último alicerce que faltava, transformando a base do samba em alguma outra coisa, somente definível em relação a cada composição.
De qualquer forma, o Jorge se identificava como herdeiro da Bossa, seja pela predominância do violão, por alguns temas, pelo estilo do canto - uma espécie de João Gilberto cantarolando Beatles num terreiro - apesar da consciência de ser também outra coisa. Ouça o final da gravação original de “Mais que nada”, em que ele faz primeiro vocalizações típicas da Bossa, e depois muda para um falsete que conduz para outro lugar, provavelmente uma gira de umbanda. O público também sentia a mesma coisa. Ele foi o único cantor a se apresentar tanto no Fino da Bossa quanto no programa Jovem Guarda.
Nessa primeira fase de Jorge Ben, a definição samba-rock não ainda muito sentido, tendo surgido posteriormente, embora sirva para marcar bem o lugar excêntrico que ocupava o compositor no cenário da música brasileira. O som de Jorge contém é verdade desde o início ambos os elementos, mas ainda não é disso que se trata, e o mais característico de sua música é precisamente sua indefinição. Como vimos sua música tem Bossa, mas as melodias lembram por vezes o samba, e mesmo esse aparece ora como samba canção, ora como gafieira, ora como o canto mais fundamental dos terreiros de umbanda. Mas em Jorge aparece também o canto negro americano, o Blues, o Jazz (via Bossa “Vem morena, vem”) e o pop. Além é claro, da África, mas aqui não a África de Caymmi, mais fundamental e entranhada, mas a África carioca, explicitando o canto dos escravos que se entranhava no samba. Tinha também rock, mas que rock estranho (“Rosa, menina Rosa”, com arranjos de metais geniais), falando de samba o tempo todo, com arranjo de samba e metal latino.
A linguagem toda própria por ele desenvolvida consistiu na mais radical fusão entre ritmo e melodia já feita, antecipando o que James Brown elevaria a sua potência mais radical, sendo este aliás um dos pontos de contato entre ambos, porque na revolução seguinte operada por Jorge Ben (sim, ele é desses casos raríssimos de personalidades que operam transformações radicais na música mais de uma vez, como Miles Davis, com a diferença que Jorge faz isso no campo do pop, naturalmente mais avesso à mudanças) seu projeto consistirá em encontrar a linguagem funk tupiniquim, um trabalho de transposição que é a operação mais complexa em música popular. E aliado a tudo isso, muito influenciado pelo canto de terreiro (que contem algumas das mais lindas melodias), algumas das melodias mais lindas da MPB estão nesse primeiro disco de Jorge Ben (“A Tamba”, “Uala uala”, “Por causa de voce menina”, “Vem morena”).
Essa indefinição estilística, a razão de ser de sua genialidade criativa, acarretou problemas nos momentos seguintes de sua carreira. Em que categoria enquadrar aquele som para a comercialização. Se no primeiro disco funcionou apresentar ele como vindo de uma linhagem Bossa, nos discos seguintes, participantes daquele acirramento de ânimos que nós conhecemos da época dos festivais, a estratégia não funcionou. Jorge não participava nem do nacionalismo tacanho da música de protesto, e nem da alienação da Jovem Guarda. Portanto, não servia para o consumo, e foi deixado de lado. Contribuiu pra isso, ou acarretou isso – nunca é possível precisar - também a vacilação nos discos seguintes. O disco posterior (Sacudin Ben Samba – 1964) era menos inspirado, os arranjos tentando seguir a mesma linha do anterior já não funcionaram, apesar de serem mais cuidadosos e continuarem a cargo de J.T Meirelles. As melodias, apesar dos bons momentos, não estavam tão inspiradas, parecendo às vezes tentativas de repetição de uma mesma fórmula que ainda não havia sido criada. E por vezes, tentando se enquadrar em um estilo que não era o dele. Em suma, Jorge Ben quis ser tratado como samba jazz, mas seu som não era isso, afinal, ele não era o Simonal, e ficou deslocado.
O terceiro disco (Ben é Samba Bom – 1964) melhorou, e Jorge voltou a criar composições com estilo próprio, indefiníveis, e os arranjos procuraram dessa vez frisar essa indefinição, cada música procurando se filiar a alguma escola diferente, sendo mais ousado. Ele está cantando como nunca, mais impostado e com maior variação, sem tentar soar Bossa (veja a leitura da música de João Gilberto “Oba la la”, que ficou muito passional, semi bolero, muito distante do original) e a base deixa de ser o samba jazz, deixando o compositor livre novamente. Tem rock, Bossa, samba de morro, jazz, umbanda, tudo com arranjos jazzísticos brilhantes que vão atrás do compositor, e não à frente como no trabalho anterior, do mesmo ano, aliás. Possivelmente obra do maestro Gaya, que não ficava tão preso aos esquematismos do samba-jazz tanto quanto Meirelles. Além, é claro, do retorno de melodias inspiradíssimas – a música “Samba Menina” a meu ver é uma obra prima de composição, na insistência da palavra chave samba repetida em contornos melódicos que se alteram a cada estrofe, num perfeccionismo digno da Bossa, só que com muito swing. O resultado é outra obra prima, o disco que melhor capta o espírito criativo do compositor nesse primeiro momento de sua carreira, e que só não obteve reconhecimento por não se enquadrar no cabo de guerra da época.


Transição (1965-67) - Os fantasma de Roberto Carlos e Simonal

O quarto disco (Big Ben – 1965) é simultaneamente o que mais tenta delimitar o som do compositor no gênero samba-jazz, forçando seu estilo a se definir em um rumo que não era o seu (ele era isso também, mas não só), e ao mesmo tempo onde já se reconhece algo de sua mudança para o estilo que finalmente o iria consagrar. Percebe-se uma tentativa de enquadramento seja no swing à moda Simonal, ou o samba jazz, ou mesmo a canção de protesto (“Larai-olalá”). É um dos discos menos Jorge Ben da sua carreira, o que não quer dizer que seja ruim. Mas mesmo essa pressão por definição não impede que Jorge experimente e encontre rumos que desenvolverá mais a frente. Os casos mais significativos são o flerte com a Jovem Guarda em “O homem que matou o homem que matou o homem mau” que ajudará a definir muito de sua estética. A temática livre e lúdica, o violão tocado quase como guitarra, o canto dissolvendo a estrutura da métrica, quase que improvisado, por vezes mais recitação do que canção. E também “Agora ninguém chora mais”, que marca uma aproximação com a Black music, que será central para a sua concepção estética amadurecer, pois é a partir dela que Jorge irá criar conexões inusitadas entre melodia e acompanhamento. Mas é um disco assombrado pelo espectro do sucesso de Simonal e do samba-jazz.
No disco seguinte (O Bidu – Silêncio no Broklin - 1967) finalmente Jorge assume sua figura inorgânica (tem até um manifesto na música “Jovem Samba”, que une a Jovem guarda ao samba), abandonando a sonoridade samba jazz dos arranjos e se aparentando mais como conjunto de samba-rock, aparecendo pela primeira vez a guitarra elétrica e o órgão em algumas música. A banda de apoio que o acompanha é o The Fevers, o que explica a mudança de sonoridade, além é claro do tom das próprias composições. Nesse período ele havia mudado para São Paulo, entrando em contato com os artistas da jovem guarda – chegou a dividir um apartamento com o Erasmo Carlos no Brooklin. E mesmo o título do disco é referência a Jovem Guarda - Bidu é o apelido que ele havia ganhado no programa dos nossos roqueiros. A tentativa visível agora é conquistar o público jovem guarda, uma vez que ele havia sido rejeitado pela turma nacionalista. O resultado novamente é destoante, apesar de algumas ótimas composições. As dificuldades de definição permanecem, porque Jorge Ben não é tampouco um roqueiro. Por isso continuará sem um público até o advento da Tropicália, que privilegiava justamente as sonoridades que não se enquadravam em delimitações rígidas. Mas essa experiência é importante por fazer uma aproximação ainda mais consistente com o ieieie, que será fundamental para o amadurecimento do seu estilo, formado a partir da incompatibilidade estrutural entre o rock e o samba, que o forçará a criar relações melódicas absolutamente originais. Na sequência, quando ele afastar de vez o fantasma do Roberto Carlos (João Gilberto já havia sido expurgado no disco anterior) vai criar uma sequência de pequenas obras primas.
O importante é que aqui Jorge Ben já não é mais um herdeiro da Bossa, ou um sambista diferente, e nem um típico representante da Jovem Guarda, mas uma coisa outra, só possível de ser classificado com um substantivo composto, lembrando que na época a divergência entre samba (engajado e nacionalista) e o rock (alienado e imperialista) era radical.

Os fantasmas de Jorge Ben (II)



LEIA TAMBÉM (PARTE I) e (PARTE III)

Segunda fase (1969-75) – O acerto de contas consigo próprio
O disco de 1969 (Jorge Ben – 1969) aparece como obra de um autor completamente amadurecido e que domina com absoluta maestria uma linguagem que é só dele. Muito dessa maturidade com certeza se deve ao espírito tropicalista de exaltação da heterogeneidade. Jorge Ben não precisa mais se enquadrar, a partir de agora basta ser, e ao assumir a indefinição, se define. O flerte com o movimento vem desde a capa, bem ao espírito da época,e as referências nas letras são inúmeras, tanto em alguns temas quanto nas citações diretas (o samba rock psicodélico “Barbarela”). Os arranjos também seguem o espírito da tropicália, tecendo comentários à canção ao invés de encobrir, e as melodias estão mais soltas do que em todos os outros momentos anteriores, permitindo combinações harmônicas e rítmicas de uma originalidade historicamente sem precedentes e sem pontos de comparação. Para completar, o próprio Duprat assina o arranjo em duas das composições, “Barbarella” e “Descobri que sou um anjo”. As demais composições são arranjadas de forma extraordinária por José Briamonte. As letras por vezes mal cabem no interior das músicas, levando ao limite a desconexão da MPB. Com isso, ele pode unir as dicções que bem entender, miturando, samba, rock, gafieira, macumba, etc... O acerto de tonalidade e matiz que havia sido conquistado no terceiro disco, com os arranjos procurando acompanhar as sugestões do ritmo, ao invés de enquadrá-lo, retorna nesse com espírito diferente. De novo, Jorge Ben está mais Jorge Ben do que nunca. Aparecem as cordas, que irão acompanhar toda essa fase, a batida de violão tocado como guitarra se consolida, o samba cantado num andamento que o coloca entre a gafieira e o rock, e que ele descobriu a partir da aproximação com a Jovem Guarda. Além disso, é nesse disco que se dá o encontro com o Trio Mocotó, a banda que ajudou a consolidar o que se chamaria de samba rock, e com os Originais do Samba (aquele, do Mussum). Em suma, o resultado é de novo um dos maiores momentos da música brasileira, agora não mais como uma bomba de um artista absolutamente diferente de tudo que surgiu, mas como um mestre com total domínio de sua arte.
As obras seguintes mantêm o mesmo nível desta, sendo todos grandes discos. Jorge finalmente encontrou a forma de estruturar suas canções, muito porque a Tropicália forçou que os arranjadores encontrassem formas originais de estruturar canções originais, além de ter encontrado o grupo certo para o acompanhar. Mesmo que este tenha saído de cena logo, ajudou a definir o tipo de som que deveria seguir, ao menos até a fase mais pop da Banda do Zé Pretinho. Todos os discos desse período (Força Bruta, Negro é Lindo, Ben, A tábua de esmeralda, Solta o Pavão) encabeçam nem que seja um grande sucesso e podem ser classificados como geniais, sem dúvida um dos momentos mais fascinantes da música brasileira.
Força Bruta” (1970) segue na linha do anterior, com acompanhamento do Trio Mocotó. No geral é mais suavizado, afinal o anterior é o primeiro dessa estética nova. Os arranjos em minha opinião aparecem menos inspirados, ainda que excelentes, o que não se estranha pois a Tropicália de fato tem nos arranjadores um dos seus pontos principais. Mas as composições de Jorge se sustentam tranquilamente por si, e o disco comporta algumas obras primas, como “Charles Jr” e “O telefone tocou novamente”.
Negro é lindo” (1971) é um disco pesado (“Cassius Clay” é uma porrada violenta no queixo) e maravilhoso que traz algumas mudanças bastante significativas. O Trio Mocotó deixa de acompanhar o cantor para ganhar vida própria. Os arranjos ficam por conta de Arthur Verocai, que adiciona novos elementos aos já então tradicionais, mudando um pouco a tonalidade com relação aos anteriores. E talvez o que seja a mudança mais importante: surge uma nova batida de violão, sem que as outras fossem abandonadas. Percebam a diferença de canções como “Rita Jeep” e “Comanche”, mais duras e próximas do chamado samba rock, para “Maria Domingas” e “Palomaris”, visivelmente mais próximas de um samba funk. A proximidade com a Black music, já expressa no título do disco e presente desde o início de sua carreira se estreita ainda mais. É o início da jornada que irá culminar com África Brasil. Muitas vezes o que vemos é uma alternância dos registros em uma mesma música a partir da batida do violão, que garante sua homogeneidade. O compositor está aqui absolutamente livre e no melhor momento de sua carreira. É nessa fase que Jorge arrisca mais, atingindo em muitos momentos um domínio estilístico extraordinário. Esbanjando inclusive lirismo, como em “Que Maravilha”, talvez seu momento lírico mais bem sucedido, desde “Chove Chuva”.

“Ben” (1972) é um desdobramento do disco anterior. Jorge Ben de Black Power cai com tudo no movimento black is beautiful da época. A base harmônica grooveada do disco anterior dá o tom das composições, e Jorge se movimenta com tranqüilidade pela Black music mix de samba com maracatu, segundo suas próprias palavras. Sem abandonar ainda seu lado mais rock, ou a pegada mais blues. Muitas vezes tem-se a impressão de que a base, no geral com duas notas tocadas insistentemente no mesmo groove, serve como ponto de apoio para Jorge desfiar seus discursos, por momentos parecendo quase com falas, radicalizando o processo que tomou forma no disco de 69 (“Bebete vambora”) e que seria explorado genialmente do outro lado do hemisfério por James Brown. É outra forma de aproximação com a ritualística negra presente nos rituais afro-brasileiros. Jorge se torna quase experimental em alguns momentos, levando a canção ao limite do discursivo, sem refrão e parecendo um longo improviso (processo que culminaria no extraordinário “Gil e Jorge”). Em outros, ele funda sua própria psicodelia, como em as “Rosas eram todas amarelas”.
Finalmente, o disco que quase não sai (ninguém acreditava em um disco que versasse todo sobre o tema da alquimia), e que é tido por muitos como a obra-prima de Jorge Ben. Eu particularmente os outros tão bons quanto esse, o que não é pouco. Mas dá pra entender as razões da escolha: o disco não tem momentos ruins e traz mais de um hit. A tábua das esmeraldas” (1974) tem um tema absurdo, mas a música de Jorge também é, apesar de ser um absurdo que todos reconhecemos facilmente. As letras são colagens quase surrealistas, envolvendo latim, alquimistas herméticos e a causa negra, mas ao mesmo tempo absurdamente próximas – falam de futebol e mulher. Traduz o espírito brasileiro com perfeição, materialista e profético, simples e sofisticado, espiritual e canalha. A sonoridade do disco tem uma cara mais leve, com clima de banda, já presente no disco anterior. Ficou mais fácil tocar Jorge Ben. Também tem algo de síntese, estão lá bem mesclados o lado mais doidão do cara, com suas melodias inusitadas e inimitáveis, como em “Hermes Trismegistlos”, em que a letra é um texto do século XIX (tente acompanhar a melodia, é pior que tentar acompanhar João Gilberto). A temática negra, feminina, a aproximação mais direta com o Black (“Brother”, musica gospel em inglês, que mostra o quanto o cara é um melodista extraordinário, capaz de fazer qualquer coisa), o samba rock e o samba funk e até o sambão mais tradicional. Tudo na dose certa, parecendo a coisa mais simples do mundo. Muito do que existe atualmente se explica por esse disco. De fato, assombroso.
“Solta o Pavão” (1975)É definido por Jorge como uma continuação da Tábua. De fato segue a mesma linha e tem o mesmo arranjador Osmar Milito, assim como as referências históricas, as melodias invocadas. Continua o clima de espiritualismo hippie pagodeiro. Ou seja, a fórmula do disco anterior se repete. A banda Admiral Jorge V (cujos integrantes formariam a base de A Cor do Som) aqui ganha um destaque ainda maior, no que seria a gênese do estilo Zé Pretinho, embora aqui feito com criatividade. Algumas melodias soam mais pobres que as do momento anterior, outras no mesmo nível de seus momentos mais geniais. Mas ele continua caminhando livremente pelas mais diversas esferas com competência, e nem de perto se aproxima da pobreza dos discos dos anos 80. Tem a antecipação do África Brasil e o encontro definitivo com James Brown anunciado na magistral oração a Ogun “Jorge de Capadócia”. O espiritualismo fez bem a Jorge Ben, como fez a Tim Maia, por coincidência na mesma época. E tem canções deliciosas, como “Jesualda” e outras mais complexas, como a que fala de “Tomás de Aquino”.
Depois, um disco que não é de inéditas, mas que entra aqui por ser um experimento radical e muito ousado. “Gil e Jorge – Ogum e Xango” (1975) Dois violões, baixo e percussão, em improvisos de até 15 minutos, gravados de uma só vez em uma madrugada. Como dar certo? Simples, junte os dois dos violonistas mais criativos da história da MPB, no melhor momento de suas carreiras. O Gil era aquele que iria gravar o fenomenal “Refavela”, e que tinha acabado de gravar um dos maiores registros ao vivo da MPB, no Tuca. O Jorge Ben era esse que estamos vendo. Ambos tiveram de criar um estilo próprio de tocar para dar conta de seu talento, ambos são inimitáveis e possuem a habilidade raríssima de unir linguagens heterogêneas em uma forma nova e orgânica. Ambos têm uma confessada admiração mútua. Em suma, um encontro de gigantes, uma viagem a qual se embarca com muito prazer. Mas esse é um registro de livre improvisação que não foi feito com intuito comercial, diferente da obra de estúdio desses dois gênios, feita para ser vendida. Portanto, é o disco mais explicitamente “experimental” de suas discografias, sendo por isso mais difícil. E que vale muito a pena. E com esse experimento encerramos a fase áurea de Jorge Ben e da MPB.

Os fantasmas de Jorge Ben (III)



LEIA TAMBÉM (PARTE I) e (PARTE II)

Transição (1976-77) - O fantasma de George Clinton
Finalmente deu-se o famigerado encontro, um dos mais lamentados até hoje na história da musica brasileira pela crítica e pelos fãs do Jorge original. O casamento de Jorge Ben com a guitarra elétrica. O fim de uma época e o começo do declínio, quando Jorge opta por uma linguagem mais pop e aposta em formas de dizer já consagradas, ao invés de estabelecer relações originais entre canto e acompanhamento, seu talento mais extraordinário. O preço pago por ele é ter de repetir indefinidamente as maravilhosas pérolas criadas nessa época, enquanto que as músicas novas caem no esquecimento tão logo são lançadas, com algumas exceções.
Mas o momento exato do encontro ainda guardava algumas surpresas, e África Brasil é a meu ver um dos discos mais importantes da história da nossa música. Isso porque nela simplesmente Jorge realiza a operação mais complexa de se efetuar em termos de musica popular, que seja, traduzir um gênero de seu país de origem para outro. Na verdade, essa tarefa é impossível, e os obstáculos são similares ao que acontecem ao se tentar traduzir poesia. É claro, em música sempre se podem criar gêneros intermediários que podem ser transpostos, como a Bossa Nova que um gringo consegue transpor no lugar do samba, que é impossível. Mas a tradução completa e fiel de um gênero para outro país não é possível. Não vai pegar. James Brown, Marvin Gaye, são intraduzíveis. Por isso, só um cara com o talento, o ouvido absurdo e a genialidade de Jorge Ben para criar a versão brasileira definitiva do que seria o nosso funk. E não a toa ele tem samba no meio, assim como o funk, o rock, a psicodelia.
África Brasil(1976) é um disco completamente diferente de todos os anteriores de sua discografia. Um disco irrepreensível. Começa porrada rock n’roll, vai entrando no terreno conhecido do samba-funk, ainda mais explícito e violento por conta da guitarra e fecha com duas funkeiras violentas. Talvez o único porém do álbum é ter dado o passo inicial para que Jorge se desvirtuasse. Mas o cara precisava ganhar dinheiro, e já havia dado uma contribuição maior do que grande parte do que existe por aí. Deixa ele fazer o que quiser em paz. As músicas inéditas são excelentes, as regravações são matadoras. Os arranjos são assinados por José Roberto Bertrami, do grupo Azymuth, e a banda de apoio conta com Bateria e Timbales: Pedrinho, Joãozinho e Wilson Das Neves, Baixo: Dadi, Piano: João "Bum", Teclados: J.R. Bertrami, Surdo: Luna, Cuíca: Neném, Percussões: Gustavo, Joãozinho, Djalma Corrêa, Hermes e Ariovaldo. Nos metais: Oberdan e Marcio Montarroios. Chega? Nessa fase nova a banda já assume uma importância central e as apresentações de Jorge na verdade são bailes. O disco é o apogeu, depois disso, declínio. Cessa a produção que vínhamos descrevendo até aqui, e começa outra, mais pobre, preso a convenções de gêneros vendáveis já existentes, ao invés de reinventar seus próprios padrões de venda.
O disco seguinte, “Tropical” (1977) ainda possui interesse por tentar enquadrar as excelentes composições anteriores no novo estilo, já aqui sem o experimentalismo do disco anterior. Mas traz músicas muito boas das antigas, e uma banda em ótima forma (ainda não é a famigerada Zé Pretinho, mas um groove pesado, sem aquela pegada quase axé) e a versão meio funkadelic de “Chove Chuva” é de fato excelente. É um disco gravado e lançado na Inglaterra, tentando aproveitar a ótima cotação do artista em terras estrangeiras. Deu certo, pois o cara nunca mais deixou o certo para o duvidoso, e virou o que se chama cover de si próprio.

Terceira fase (78-1986) – O fantasma de Jorge Ben
E assim chegamos no Jorge Ben de hoje com melodias mais simplórias e de relações fáceis com o todo da música, pegada mais quadrada. A mistura, quando existe, já não é tão rica, é mais preguiçosa, pobre, por vezes parece um sambinha convencional só que com guitarra, as vezes um Roberto Carlos mau feito. Nada daquele puta rock swingado misturado com cantos africanos geniais. É a fase da banda do Zé pretinho, em que a obra de Jorge caí em uma preguiça criativa que parece ser definitiva. Na verdade, acredito que a mudança pode ser definida estilicamente para um axé-rock, que é o que caracteriza o som atual de Jorge. Mas que não se iludam os mais afoitos: ainda assim sua obra é melhor que muita coisa da chamada MPB. Veja o disco de 1978, A banda do Zé Pretinho. Mas de fato já soam meio pagode, que já despontava e nos anos 80 iria surgir com força. É convencional, mas tem clássicos como Berenice e a homônima. Particularmente, pra mim que gosto de samba em suas várias vertentes e também de Black music, essa fase de Ben não representa o fim do mundo, uma tragédia. O disco de 1979 – Salve Simpatia, também é bom, entre o swing e o brega, que mercaria a partir de então o autor. E o Dadiva (1984) tem a primeira música, com o Tim Maia, que é uma pedrada, e outros momentos de muito swing.
Mas é que o próprio Jorge nos deixou muito mal acostumados, produzindo um conjunto enorme de obras primas. Mas mesmo nessa época ele continua experimentando em alguns momentos, como quando grava uma música com letra em Latim “Cantilenas de São Vitor”, bizarro. Porém nada daquela inovação orgânica genial. Basicamente seu sucesso sobrevive da apresentação das antigas composições, já na nova roupagem massificadora, que torna as musicas todas parecidas (Dizem as más línguas que por culpa do arranjador Lincoln Olivetti, que tornava tudo o que ele tocava idêntico, mas não há duvidas que tal aconteceu por desejo também de Jorge e de sua época). O som todo fica carregado, defeito dos anos 80, e a guitarra de Jorge é bem mais preguiçosa que seu violão.
Algumas musicas pós zé pretinho são boas, mas visivelmente se padronizaram. Jorge que lutou tanto para conquistar sua própria linguagem e ter espaço privilegiado na MPB, padronizou seu próprio estilo (que é ainda das coisas mais interessantes da MPB, portanto, ele pode) para uma forma mais descartável. Nada daquela relação mais racionalizada com a canção, derivada de João Gilberto(por mais que protestem), em que cada verso tem de ser pensado em relação à totalidade harmônica, melódica, etc... O Jorge atual preguiçosamente faz letras e insere em esquemas prontos, com o mérito desse esquema ser invenção sua, mas de onde dificilmente sairão novamente obras revolucionarias como “Take ease my brother” ou “Mas que nada”, “Hermes Trimegistlos”, “O homem da gravata florida”, etc...

Quarta fase (1989 - ?) - o fantasma de James Brown
Nos anos 90 vemos o retorno de Jorge Ben ao foco da mídia. É o momento em que ele muda o nome para Benjor, e que muitos lamentam como sendo a fase em que ele se descaracterizou. Na verdade, os discos desse período melhoraram muito em relação aos anteriores. A partir do Benjor (1989), ele volta a se encontrar com a inspiração, e isso se deve basicamente a um movimento: o reencontro com a Black music, aproveitando a volta do funk à moda, muito graças ao movimento Hip Hop. Marca também o encontro do artista com o produtor Liminha, um dos grandes nomes da época. Se por um lado ele não irá voltar a produzir obras-primas únicas como nos anos 60 e 70, ao menos ele irá reencontrar a força dos primeiros discos pós África Brasil, com ótimas pérolas feitas para dançar. Entre parênteses, é fato que a Black music salvou não só ao Jorge Ben, mas muitos outros artistas, novos ou mais antigos, como Djavan. Atualmente é a vez do samba bancar o salvador da MPB. O grande momento é obviamente o campeão de vendas Jorge 23 (1993), um disco cheio de groove e swing. Os arranjos mudaram, a banda mudou, Jorge voltou a liberar a melodia da base harmônica, de uma só nota. Em vários momentos desse disco Jorge não é samba rock nem samba funk, mas simplesmente Funk. Jorge se encontra com James Brown. Os disco seguintes continuam na mesma pegada (especialmente o último Reactivus amor est - 2004), mas sem a mesma criatividade, novamente pasteurizado. Aliás, acho que se não fosse a pressão das gravadoras Jorge só viveria de fazer shows, basta ver os intervalos cada vez mais longos no lançamento de discos. Mas acho que todo mundo concorda que está mais do que bom, não?