terça-feira, 14 de outubro de 2008

Tecedeira de Anjos


(dedicado a Voraz e Artista, este primeiro dejeto dramatúrgico)


Ninguém poderia explicar como tudo aconteceu. Só eu mesma acho que assim, consigo. A vida impõe certas necessidades, as gentes até avariam: de fome, de sede, de dor na alma – mas a alma passa e fica só a carne, pra depois apodrecer também junto com tudo. Eu era a irmã mais velha, sobrou-me a mim, e sozinha, a tarefa de fazer o serviço. Antes com os bichinhos era muito comum, sempre se fazia essas coisas, acho que pra não dar em desequilíbrio. Não sei. Minha família mesmo é que era grande e só crescia. Até hoje ouço o barulho de crianças dentro da minha cabeça. Constrangimento? Não, não tenho. Nem remorso tenho mais – de um jeito ou de outro é preciso sobreviver. A gente acaba se acostumando. A fome desgranhenta só aumentava junto com as famílias, nossa e dos visinhos, que também só cresciam. Sim... foram eles que ficaram, de primeiro, sabendo que a gente também acabara fazendo com os pequenos lá de casa como com os bichinhos. Mas tudo ficava meio velado na vizinhança. As coisas só mudaram mesmo quando eles, os do ao redor, vinham com um pouco de comida ou objetos de algum valor, pra trocar de igual com o crime íntimo e deles próprios, mas que nós nos submetíamos a executar. Ficou comum, virou rotina a contagem de nove meses de cada um. Teve época que sempre tinha alguém atravessando a cerca, chegando perto com os embrulhos no braço, deixando no chão o que era destinado ao pagamento e gritando no ouvido: “Quié que eu faço demônio?” eu esperava, olhava pros lado, agarrava o pacote de carne viva contra o peito, e disparava até a margem: “Ói, quando é assim eu não sei. Quando é cum gente eu não sei não, mas quando e gatinho nóis custuma afogá lá no riacho.” Alcunharam-me naqueles tempos Tecedeira de Anjos. Não cobrem ânimo dos serviços que tenho prestado, nem os julguem por dar adeus àqueles que não tiveram o privilégio de serem bem vindos.

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