sábado, 14 de abril de 2012

“Ai se eu te pego meu reitor”: Michel Teló, xerife Rodas e o recrudescimento do conservadorismo nacional (parte I)

“Só que tem muito intelectualzinho de esquerda que ganha a vida defendendo vagabundo. E o pior é que esses caras fazem a cabeça de muita gente”
(Capitão Nascimento)
ai-se-eu-te-pego

Em vista dos últimos acontecimentos, o paranaense Michel Teló deve estar vendo sua vida desdobrar-se diante de si como num sonho. Ou antes, como no estágio de vigília, em que ainda estamos completamente acordamos, e os eventos vivenciados durante os sonhos noturnos se misturam à realidade cotidiana. Entretanto, contrariando certa concepção do senso comum, são nesses momentos - em que a realidade ainda não foi completamente simbolizada pelos sentidos - que o Real de sua dimensão fantasmagórica se revela. São momentos de revelação, quando as estruturas desvelam toda sua fragilidade, correlata da fragilidade do próprio sujeito que as configurou.

Tudo começou quando Teló, cantor de relativo, porém, modesto sucesso nacional, teve sua gravação de “Aí se eu te pego” transformada no maior sucesso musical de 2012 no mundo todo, tornando-se uma das canções mais gravadas e executada de todos os tempos, igualando-se a outras mais canônicas, como “Garota de Ipanema” e “Aquarela do Brasil”. Uma matéria elogiosa da revista Forbes chegou a comparar Teló com Carmem Miranda (comparação mais pertinente do que pode parecer, de início) e a revista Época lançou uma matéria de capa – também elogiosa - em que dizia que o cantor conseguia transmitir os valores da cultura popular para todas as classes (particularmente, eu acho que a Gaby Amarantos faz isso melhor). O cantor também conseguiu emplacar seu hit no top 100 da Bilboard, feito antes conseguido apenas por nomes que projetaram sua carreira voltada para o exterior, como Sérgio Mendes, Bebel Gilberto, Céu e Sepultura.

Vertiginosamente o hit ganhou numerosas gravações nas mais diversas línguas, levando o rapaz ao estrelato mundial da noite para o dia. O mais curioso, interessante ou assustador, a depender da perspectiva, é que seu sucesso não foi fruto de uma estratégia de lançamento internacional minuciosamente planejada (creio que sua produtora ou gravadora sequer teriam forças para esse empreendimento). No que pude averiguar - e aqui posso estar enganado - o movimento foi mais ou menos aleatório (é claro que no interior de um sistema altamente gerenciado, ou administrado, para ressuscitar uma expressão algo “fora de moda” dos frankfurtianos) e se deu para além das determinações diretas da Indústria Fonográfica. Neymar, mais novo xodó arrepiado dos brasileiros, craque de bola e fã declarado do artista, comemorou alguns gols fazendo a coreografia da canção. “Delícia... Delícia... Assim você me mata”. Na sequência, alguns jogadores brasileiros também fizeram a dancinha na Europa e, sobretudo, ensinaram para alguns craques consagrados do futebol europeu, como Cristiano Ronaldo. Depois disso, a moda foi se espalhando e versões da canção com a dança começaram a circular na rede (algumas inclusive muito interessantes, como a que mostra soldados israelenses fazendo a coreografia, o que acaba conferindo uma dimensão inusitadamente sombria para os versos “Aí se eu te pego”), chegando a assombrosos números de acessos na rede. E o verão mundial nesse ano foi verde-amarelo.

epoca1
Para além dos méritos da composição - que nesse caso creio que é um dos aspectos menos significativos e, por isso mesmo, dos mais explorados por aqueles que criticam o artista. Em todo caso, só pra não passar batido, é um caso absolutamente comum, presente em qualquer canção mais somática, de refrão temático para celebrar a conjunção entre sujeito e objeto - esse caso inédito em território nacional é preciosamente revelador dos mecanismos atuais de funcionamento da Indústria Cultural, sendo fundamental que se atente para as relações de parasitismo e complementariedade no interior das ramificações da Indústria do Entretenimento. Pensar, por exemplo, em como a Indústria Fonográfica, que passa por um processo profundo de crise, se retro-alimenta da ascensão vertiginosa da Indústria do Futebol, e como a partir disso pode elaborar novas estratégias para se manter no topo – pensando, por exemplo, em vínculos contratuais mais diretos de cantores e artistas em geral com o mundo da bola, promovendo espetáculos bizarros, divertidos e altamente lucrativos no futuro. O que de cara coloca uma série de questões para uma concepção muito rígida de planejamento da Indústria Cultural, ou certo mito de passividade da recepção, exigindo que se estabeleça uma série de mediações de ordem subjetiva para se pensar as relações no interior do sistema. O caso serve também para refletir sobre a condição híbrida de um objeto de cultura de massas, como é a canção desde seus primórdios (mas que após Michael Jackson chega a seu momento de maturidade). Tal objeto parece constituir-se a partir de um processo cada vez maior de fragmentação, cujo segredo consiste em inserir em cada uma das partes relativamente autônomas – arranjo, coreografia, apresentação, vídeo, marketing, etc – a relação com o todo, de modo que a genialidade está na possibilidade de sustentação infinita dessa tensão, sem deixar que se desfigure o sentido. A questão no caso, não é mais a construção de um objeto pleno autônomo, e com isso os critérios de avaliação que pensam a partir de uma concepção imanente de forma precisam ser re-avaliados. Não estou dizendo que Teló consegue fazer isso com sucesso (Billie Jean consegue, assim como Pink Floyd e os Tropicalistas), e sim buscando tirar conseqüências do fato de que o sucesso da composição se deve inicialmente mais à reprodução de sua coreografia – muito pobre, é bom que se diga, assim como é bom que se diga que as do É o Tchan eram muito melhores, e várias do Funk também – do que a relação da melodia com a letra. Nesse caso, qual será o “centro” da composição? Será possível ou desejável determiná-lo?
episc3b3dio-264-ai-se-eu-te-pego

Passado pouco tempo após toda essa euforia inicial da Teló-mania, e  invertendo a equação que geralmente se atribui aos mecanismos da cultura de massas - o excesso de exposição não fez o autor ser cada vez mais exaltado, contrariando a máxima adorniana de transformação do quantitativo no qualitativo. Ao contrário, nesse caso, as reações contrárias começaram a se tornar mais e mais freqüentes. Primeiro as já costumeiras críticas contra a baixa qualidade estética da composição foram ficando mais duras e desabusadas, incluindo um episódio constrangedor no Jornal Nacional, quando foi lançado um clipe com a versão em inglês da música, que foi seguida por risos dos apresentadores, atentando para o quanto a canção era “grudenta”. O interessante aqui é apontar a contradição: a canção foi lançada no horário mais nobre do “padrão globo de qualidade”, entretanto, o desconforto foi cinicamente marcado, e não pode ser tomado com irrelevante, marcando uma fissura nas relações entre simbólico e econômico. Depois as coisas foram saindo do campo da opinião e atingindo áreas mais sérias da vida do cantor, como a acusação de que a canção teria sido composta por um grupo de sete paraibanas em viagem à Disney.. Apesar da acusação tocar num ponto problemático do sistema de direitos autorais no Brasil, que sempre foi algo próximo do descaradamente criminoso, convém se perguntar sobre o grau efetivo de culpabilidade do rapaz - como se ele fosse uma espécie de ladrão de sambas pós-moderno - uma vez que a canção havia tido pelo menos duas outras versões antes da que se consagrou. O que levanta ainda outra questão ainda mais delicada sobre a própria noção de autoria nesse caso. Pois não foram os elementos estéticos introduzidos na versão de Teló os responsáveis pelo sucesso da canção, aonde as outras fracassaram? Não seria ele, no caso, tão autor quanto os demais? O que é, afinal, um autor, nesse caso?

Em todo caso, a coisa ficou tão feia para o cantor que teve até revista de fofoca que tinha como matéria de capa o “Inferno Astral de Michel Teló”. Mas o que essa rejeição em massa pode nos dizer sobre os padrões de legitimidade presentes em nossa sociedade, e sobre o momento político atual? Será que esse movimento tem relação exclusiva com a qualidade da composição? O brasileiro só produz e consome canções de qualidade e de bom gosto, de altíssimo padrão de qualidade? Enquanto o sucesso do rapaz era uma “aberração” nacional, dava pra esconder a sujeira debaixo do tapete. O sucesso no Brasil sempre pode ser explicado a partir da falta de cultura e senso crítico do povo brasileiro, que adora consumir porcarias. O povo associado com a carência, com a falta, numa espécie de olhar complacente de superioridade sobre a miséria. Mas a questão se complica quando nossos pecados íntimos são mostrados e aprovados pelos padrões internacionais de qualidade – aprovação que faz todo sentido, uma vez que a canção de Teló não fica nada a dever as de ícones pop globais como Shakira, Beyoncè, U2, Justin Bieber, e tantos outros. Nesse caso, fica difícil o reducionismo de sustentar que mesmo os europeus sofrem de defasagem cultural – afinal, como macular nosso modelo? No momento em que “Ai se eu te pego” cruza a porteira do curral para ganhar o mundo, é fundamental que seu valor seja imediatamente rejeitado e questionado, marcado como ilegítimo e visivelmente inferior. Aberrante. O movimento principal no caso consiste em desvincular essa canção de certa imagem de Brasil construída para nós mesmos, tipo exportação. Colocá-la para fora da boa tradição cancional brasileira, que é o verdadeiro modelo de representação da nossa identidade, aquele em que devemos nos reconhecer. 

  charge2
Esse movimento não é, alias, exclusivo do caso Teló. Na história da canção brasileira, foram sendo desenvolvidos dois modelos de avaliação complementares. O paradigma da modernidade, que consiste em uma determinada maneira de se apropriar do material sonoro e que tem por modelos paradigmático a Bossa e a MPB, e que comporta alguns sistemas de valores próprios, como forma crítica e bom gosto. E o paradigma da tradição, que confere legitimidade a formas populares ancoradas em uma pretensa experiência comunitária mais orgânica, como o samba. Assim, toda uma longa tradição de canções que não guardam relação direta com algum lugar “tipicamente nacional” (sertão, morro, comunidade) ou com algum projeto de subjetividade nacional é colocada no segundo escalão da música nacional, como se essa obra, produzida aqui, em certo sentido não preenchesse os requisitos de brasilidade.

O movimento propriamente perverso e sagaz da ideologia nesse caso é apresentar esse juízo social e ideológico de estabelecimento de cânones como um caso de juízo estético. Teló e toda a música tida como brega ou romântica é atacada como sendo de mal gosto e mal feita, sem que se explicite ou mesmo se compreenda os mecanismos de feitura desse tipo de composição, adotando indistintamente valores de modelos tidos como paradigmáticos. Os argumentos estéticos, nesse caso servem para encobrir, em primeiro lugar, a evidência de que não é em nome da boa Arte que se está falando, mas em nome da preservação de certo lugar sócio-simbólico (que não se resolve facilmente com a distinção entre ricos e pobres, pois a rejeição do Teló, por exemplo, “transcende” as classes), e em segundo lugar, a própria análise estética, que nunca é feita de fato, sendo no máximo substituída por adjetivações que explicam pouco do objeto e muito mais do lugar de fala daqueles que os emite (mal feita, brega, pobre, pouco articulada, repetitiva, grudenta, e outras adjetivações que cobrem de pompa e sobriedade o vazio argumentativo). Não que se esteja aqui caindo na também equivocada postura do pseudo-especialista, que cobra do ouvinte um discurso especializado (sempre nos termos da música Ocidental), estabelecendo uma equivalência duvidosa entre domínio de jargão técnico e conhecimento de causa. No caso da canção, esse objeto híbrido localizado entre necessidades práticas e estéticas da linguagem (Luiz Tatit), nada mais equivocado que tal exigência pela exploração de apenas um dos pólos. O ouvinte médio não precisa do especialista para entender os mecanismos de funcionamento da canção – bem diferente do que se passa com o discurso literário, por exemplo. A crítica no presente caso não está reivindicando um maior rigor “científico” na análise do objeto. Ao contrário, o que se cobra é que se assuma claramente que questões formais, nesse caso, ficam em segundo plano, para evitar justamente que julgamentos morais e políticos assumam a máscara de considerações estéticas imparciais.

“Ai se eu te pego meu reitor”: Michel Teló, xerife Rodas e o recrudescimento do conservadorismo nacional (parte II)

Michel-TelóSou feio mas estou na moda, afirma cantor em entrevista para Folha

Entretanto, o caso de rejeição de Michel Teló permite traçar ainda outras considerações sobre o atual momento que vive a sociedade brasileira. Um momento em que certa ética de ressentimento generalizado é mobilizada em nome de uma guinada à direita que tem trazido conseqüências cada vez mais nefastas, como o aumento dos chamados grupos de ódio, o ataque direto a diversas minorias, com ênfase nos homossexuais, a repulsa imediata de movimentos de contestação social de qualquer ordem, seja uma greve de professores, uma passeata de estudantes ou um simples passeio noturno de bicicleta, a perda dos limites éticos entre piada e pura violação dos direitos em determinados programas de humor, etc. É claro que a sociedade brasileira sempre foi profundamente conservadora, não sendo possível afirmar que o momento atual o seja mais que os anteriores. Mas é possível observar um movimento mais ou menos conjunto de recrudescimento da direita em diversos níveis da opinião pública, e uma desfaçatez cada vez mais declarada de adotar a perspectiva conservadora como algo decididamente positivo, ou mais engraçado, jogando por terra todas as últimas conquistas em sentido contrário. Como se o sucesso estrondoso do capitão Nascimento (e não estou culpabilizando o filme por captar esse movimento da sociedade) houvesse exorcizado todos os fantasmas e a sociedade pudesse, sem culpa, vomitar todos os seus preconceitos e desejos obscenos para cima do Outro, afinal, vivemos numa democracia onde impera a liberdade de expressão. Esquece-se que a liberdade de tudo dizer desvinculada de conseqüências éticas para o que foi dito implica que, em algum lugar sob o nosso discurso, existe alguém amordaçado.

Pensando esse movimento em termos de separação de classes, é aparentemente mais fácil criar uma teoria explicativa redutora para dar conta do processo. Os ricos do país continuam sofrendo de horror aos pobres – patologia de matriz colonial com conseqüências nefastas – e rejeitando toda manifestação que não passe pela clivagem de uma lógica paternalista. O tom cada vez mais desabusado e, por vezes, criminoso, da revista Veja, é expressão perfeita desse movimento, que coincide com a guinada do neoliberalismo para uma política mais “social” nos anos do governo Lula. A classe média, por assim dizer, – acostumada com o apagamento do Outro - teve uma overdose de pobreza – considerando isso dentro de todos os limites, evidentemente - e se apavorou. Dessa perspectiva, a rejeição de Michel Teló é facilmente compreensível, e se enquadra no mesmo movimento de exclusão de artistas como Waldick Soriano, Nelson Ned, Fábio Júnior e gêneros como o bolero, o tecno brega e o funk carioca. Evidentemente que o movimento foi um tiro no pé em termos políticos, uma vez que os discursos sociais se fortaleciam a partir do contraponto com uma direita claramente assustada com a ameaça vermelha. Os índices de aprovação de Lula e a eleição de Dilma são apenas a ponta do iceberg.

jammal-eleitor

Eis o perfil de quem perigosamente, segundo a Veja, teria o poder de decidir a eleição a favor de Lula. Detalhe que a revista diz que a “Nordestina” tem 27 anos, quando o título de eleitor dela diz que tem 30. Para que essa distorção, descarada, na capa?


Entretanto, a questão se complica quanto começamos a perceber que os discursos de rejeição de Michel Teló - apesar dos índices de venda continuarem altos em ambas as esferas sociais - também tem sido elevados entre as camadas populares, aumentando proporcionalmente com seu sucesso no exterior. O esquema lógico armado no parágrafo anterior acaba desabando, ao menos que se elabore alguma teoria estapafúrdia de total coincidência de interesses entre as classes, em que todos adotam, em comunhão, a mesma escala de valores. No entanto, em certo sentido, é justamente esse o imbróglio a se resolver, pois a ação efetiva nos dois pólos é, de fato, coincidente. A solução do problema é aparentemente simples em sua enunciação: o que as classes desfavorecidas rejeitam em Teló não é a mesma coisa que as elites. O complicado no caso é compreender no que consiste, exatamente, essa coisa, e de que maneira desse antagonismo é possível surgir certa “conciliação” que está na base do recrudescimento direitista em todas as camadas sociais, que passam a considerar com simpatia movimentos profundamente conservadores – por exemplo, o massacre de um cantor que não se enquadra no cânone, sempre estabelecido de cima para baixo, mas que não deve ser contestado. Ou a ostentação de gestos e posturas homofóbicas, vistas com simpatia. Novamente, não é que a sociedade se tornou mais conservadora. Mas é como se o conservadorismo tivesse se tornado mais desabusado. Soltaram as bruxas.

Acredito que o fundamental aqui é que, independente do ângulo de observação, o autor de “Fugidinha” continua sendo o Outro. Não há uma identificação em nenhuma das esferas sociais – sempre pensando da perspectiva daqueles que criticam o cantor. E aqui acho que cabe uma comparação algo abrupta - mas que tenta tirar vantagem desse salto - com os acontecimentos recentes na universidade de São Paulo. A USP é, sob muitos aspectos, uma instituição conservadora, mantendo-se muito aquém de transformações importantes no cenário universitário atual, como a discussão sobre cotas, a reformulação profunda do sistema de ingresso, entre outras coisas. Ainda assim, tem uma forte tradição de debates e de força política estudantil de esquerda – a coincidência entre uma postura excludente e a produção intelectual à esquerda é, por sua vez, um dos principais nós não só da universidade, mas da própria intelligentia crítica nacional, razão maior de sua eterna crise, e responsável direta pelo fenômeno Rodas. O reitor atual dessa universidade é o senhor João Grandino Rodas, que foi louvado pela revista Veja como o xerife que a universidade precisava, aquele que apareceu para colocar ordem no circo, fazendo parte da mesma estirpe de figuras como Jair Bolsonaro, Diogo Mainardi e Reinaldo Azevedo. A imagem de xerife é bem escolhida, pois aponta a truculência e o despreparo dessa figura para lidar com quaisquer tipos de problemas da universidade, consistindo sua principal função a de ser pau mandado direto do governo do estado (sua nomeação foi totalmente arbitrária), impedindo qualquer manifestação contrária aos rumos desse modelo político falido. Criminalização de movimentos sociais de estudantes e funcionários, abolição de todo debate, fechamento cada vez maior dos espaços públicos, gastos indevidos e suspeitos, punição para os que tentam contestar quaisquer das arbitrariedades, relações direta com uma policia com suspeitas de ligação com o PCC. Enfim, tudo o que de melhor há na história cheia de máculas da universidade é enfim jogada no lixo pelo grande xerife que não tem o menor peso na consciência. Entre outras coisas, por uma razão bem óbvia, que foi a grande sacada da direita paulistana nos últimos tempos: a opinião pública está ao seu favor.

Que a elite mais estúpida apóie nosso Clint Eastwood tabajara não causa389_rodas nenhum espanto. Afinal, o xerifão está defendendo diretamente os seus interesses, tornando a universidade um lugar mais “digno de respeito”. Agora, como acontece com Teló, o xerife Rodas tem apoio não só das elites, mas do grosso da população, inclusive dos principais prejudicados por sua política. O episódio chave desse processo, até onde consigo perceber, foi o violento ato de desocupação da reitoria em 2007, quando a tropa de choque entrou na Universidade para retirar os estudantes que tentavam negociar, sem sucesso, com seus representantes (ainda na gestão anterior). O ponto central nesse processo foi o apoio absoluto da opinião pública, todos aparentemente afinados com a lógica Datena de tratar questões sociais como caso de polícia. Creio que foi a primeira vez que todos os envolvidos se deram conta de que os interesses da sociedade eram opostos aos interesses da universidade, principalmente daqueles que lutavam em nome do “povo” marginalizado. Logo depois veio o Tropa de Elite I, que é a mais brilhante formalização sobre essa mudança de ânimos – e por isso, a meu ver, é a obra cinematográfica brasileira mais significativa dos anos 00, por captar todo um espírito de época. Quer dizer, a percepção de que há um abismo entre as reivindicações dos estudantes e os interesses da sociedade existe desde o surgimento do movimento estudantil. Mas essa foi talvez a primeira vez que a população tinha satisfeita a sua necessidade sádica de desforra, de revanche, expressando claramente o desejo de não querer ser representada, com a consciência profunda da impossibilidade dessa representação, que nunca se deu, a não ser como promessa.

Acredito que esse episódio é paradigmático na compreensão daquilo que a direita enfim aprendeu nos últimos tempos. O modo como o ressentimento de classe pode ser mobilizado não para um desejo de transformação social, uma mudança profunda no modo de relação entre as classes, mas em sentido contrário, na defesa feroz da manutenção atual dos papéis. A percepção, profunda e correta, é a de que os estudantes que ocuparam o prédio da reitoria em nome de uma causa a princípio justa só podem fazer isso por conta de seu privilégio de estar na USP. A ética do ressentimento apaga então as razões do movimento (uma efetiva necessidade de transformação) para se concentrar nas condições presentes de produção do gesto (o privilégio de classe). Pois se a gigantesca multidão de desprivilegiados do país não pode sequer pensar em fazer algo parecido (na melhor das hipóteses, só apanham e vão presos) – não podem mas fazem, haja vistas os inúmeros e crescentes movimentos de ocupação rural e urbana - e haja vista que aquele movimento dos estudantes, no limite, não se reflete nos interesses dessa população (independente das intenções dos agentes), tudo o que resta é a exposição desse privilégios, no momento mesmo em que se luta para eliminá-los. Nesse momento, basta a direita inverter o foco do discurso: não é mais o pavor dos pobres que os move, o desejo de fechar cada vez mais aquele espaço público, mas um desejo de democratização da violência, onde todos, ricos e pobres, devem se submeter ao estado de coisas atual, sob pena de ser punido violentamente da mesma maneira. I have a dream.

charge
Essa foi a verdadeira carta branca para o xerifão, que tem, entre outros privilégios, o apoio total do governo do Estado e uma polícia toda para si. Quem quiser reivindicar algum direito pode ser preso ou ser mandado embora por justa causa. Enfim, todas as arbitrariedades do setor privado e que já é realidade para a ampla maioria da população há muito tempo. A questão é assim invertida: ao invés de se lutar para que os privilégios da USP se estendam a todos, de modo a deixarem de ser privilégios e passarem a condição de direito, a cobrança é para que aquele espaço se subordine totalmente a lógica de precariedade que reina absoluta. O que se exige é uma espécie de nivelamento por baixo, muito por conta da consciência de que as coisas têm sido assim há muito, muito tempo.

Dessa maneira, exige-se que os manifestantes sejam punidos porque, ao invés de aproveitar a oportunidade de ficar estudando 12 horas por dia como nos mitos correntes sobre estudantes exemplares, ficam fumando maconha, fazendo baderna e impedindo as aulas. Ignora-se a legitimidade do que é reivindicado para comprar totalmente um discurso que, no limite, tende a acabar com a possibilidade de sequer se pensar em um modelo efetivamente democrático de universidade pública. Da mesma maneira, acredito que Michel Teló (opa, voltamos) representa também esse mesmo esquema do elemento que escapa ao controle e é rejeitado como ilegítimo. Afinal - para colocarmos as coisas de maneira bem direta - porque ele, tão simpático e tão clarinho, vai fazer essa porcaria de música de empregada? Ao invés de se colocar no seu lugar junto com a MPB ou a música alternativa, vai fazer música ruim? E ainda mostrar pra todo mundo? Levar essa imagem para fora do país consiste em crime da maior gravidade. De um lado, rejeita-se todo o estilo musical, e junto com ele, a ralé que lhe deu forma. De outro, rejeita-se mais a figura do bom moço que parece ocupar um lugar ao qual não deveria pertencer, fugindo do papel que lhe seria reservado. Ao fundo, a sensação incômoda de que Teló deve seu sucesso ao adjetivo universitário (artista\maconheiro\desviantes) que qualifica o seu sertanejo. Assim sendo, ele não deveria fazer o sucesso que fez, da mesma maneira que todo mundo, em seu estilo, não faz, a não ser como o lixo que é. Destacar-se sem o apadrinhamento dos poderosos é um grande risco – curiosamente, inclusive nessa rejeição posterior ao sucesso mundial segue valendo a comparação de Teló com Carmem Miranda: em ambos os casos não é a qualidade estética que está em jogo, mas a adequação aos padrões do que deve e do que não deve ser valorizado - e a vingança dos outros desapadrinhados é cruel. A narrativa é breve: o cantor não recebe as bênçãos da Comissão Defensora da Moral e Bom Gosto Estético, condenado por partilhar uma linguagem rebaixada que revela uma parcela ignorante, vergonhosa e desdentada da sociedade. Na sequência, essa parcela social que não rejeita o estilo e poderia ver no sucesso do cantor (ou na luta dos estudantes) a confirmação de seus padrões realiza o movimento oposto, e passa a considerar o sucesso do rapaz (da ocupação) como privilégio ilegítimo, por não se filiar diretamente aos interesses de certa camada do poder. Assim como os “maconheiros” da USP, que muito provavelmente também não irão gostar muito de serem comparados com o Michel Teló.

O ressentimento acaba unindo os pólos opostos bem demarcados da sociedade brasileira, ainda em detrimento do lado mais fragilizado - embora, sob muitos aspectos, mais forte. Existe outro famoso momento da história em que os impulsos conservadores da elite e do povo foram catalisados em torno da eleição de um bode espiatório. Judeu, no caso. Por enquanto, parece que essa simpatia conservadora se concentra, sobretudo, no sudeste, em especial na política paulistana. Ainda assim, é motivo para preocupação, uma vez que nenhuma conseqüência positiva pode sair desse estado de coisas que vem se sustentando.

04 \ 2012