sábado, 11 de outubro de 2014

Os Novos Navios Negreiros

Por André Godinho
Como historiador e professor, sempre achei importante enfatizar a distinção entre trabalho assalariado e escravidão quando ouço ou leio pessoas tratando como a mesma coisa. Tipo “nada mudou com a Lei Áurea, a exploração continua a mesma!”. A isto, costumo responder: você faz ideia do que é a escravidão que existiu até 1888? Do que é uma pessoa ter seus filhos vendidos em leilões para quem pagar mais e você não poder sequer saber onde eles estão? Do que é uma pessoa viver trancada e acorrentada, do que é trabalhar sob a ameaça de armas, de troncos, chicotes e torturas como o pau-de-arara, usado na ditadura, mas cuja origem é escravista? Do que é seu patrão ter o direito legalmente garantido de fazer o que quiser com você (incluindo o estupro cotidiano, que era norma no Brasil), pois você não existe para o sistema jurídico a não ser como mercadoria?

Enfim, sempre achei muito perigoso o apagamento dessas distinções na crítica ao trabalho assalariado. Por que perigoso? Porque a escravidão, tal como existia em 1888 pode sim voltar. Isso parece absurdo pra quem acredita que a humanidade está “evoluindo” para formas mais “civilizadas” de exploração, mas essa crença é que é absurda.

Quer ver como este retorno de algo próximo do escravismo é possível? Assista um documentário chamado “Quanto mais presos, maior o lucro”. Tem só uns 15 minutos, é coisa rápida… É a distopia do retorno da escravidão, com elementos os mais perversos. Primeiro, sucateia-se o sistema penitenciário, que sempre foi desgraceira no Brasil e se estabelecem políticas deliberadas de aumento da violência e do pânico a respeito dela. Em seguida, se massifica as prisões, quase exclusivamente de cidadãos pretos, pobres e periféricos, se privatizam os presídios e se estabelece o trabalho neles, a princípio como forma de progressão de pena. Este trabalho consiste em produzir coturnos, uniformes, coletes a prova de balas, sirenes e outros artigos de uso militar, que servirão para a ampliação do sistema penitenciário semi-escravista. Quanto mais presos, maior o lucro.

O lucro está (como todo lucro) na exploração do trabalho, mas também no corte de gastos com os detentos e no mercado consumidor representado pela população carcerária e que é abastecida por monopolistas. São superlucros, tanto maiores quanto mais pessoas estiverem escravizadas, digo, detidas. Nos acordos efetuados entre Estado e empresas no Brasil, o Estado se compromete a manter pelo menos 90% das vagas ocupadas. Ou seja, se não há criminosos suficientes para encher as cadeias, é preciso “inventar” criminosos para cumprir os contratos. E isso, em parte, já acontece. Por exemplo, com a “guerra às drogas”, maior fábrica de escravos, digo, presidiários do Brasil.
O modelo tem avançado muito nos EUA, juntamente com a militarização da segurança, que faz com que, por exemplo, cidadezinhas pacatas tenham tanques blindados fazendo sua “segurança”. No Brasil ainda está em fase experimental, mas tende a se ampliar, principalmente agora que existe uma perspectiva real de um de seus defensores mais decididos chegar à presidência. Aqui não é preciso militarizar a política de segurança, dado que ela já é totalmente militarizada desde a ditadura.

Caso se massifique, este sistema pode se tornar uma forma de escravidão moderna que aprimora o que ocorreu no Brasil até 1888, bem como o que ocorreu nos campos de concentração nazistas (na entrada do principal desses campos, Aushwitz, estava o letreiro com seu lema “Arbeit Macht Frei”, ou seja, “O trabalho liberta”). A comparação vale inclusive quanto à relação de tudo isso com o racismo. Qualquer estudo sério sobre sistema prisional no Brasil chega à mesma conclusão e é preciso ser estúpido (ou, mais provavelmente, um privilegiado cínico) pra negar essa realidade: quem tá na cadeia no Brasil não é quem comete crimes graves, é quem é pobre, preto e periférico, independente da gravidade de seus crimes e em muitos casos independente até de terem ou não cometido crimes, dado que em grande parte eles não foram julgados.

Da tragédia que foi a escravidão até o século XIX só estaríamos livres de seu caráter hereditário e da possibilidade de venda de seres humanos no mercado. Ainda assim, esses pontos são um pouco relativos. A redução da maioridade penal taí, como grande pauta eleitoral, e pode cair ainda mais no futuro. Ela não tornaria a exploração hereditária, mas normalizaria a exploração de trabalhadores cada vez mais jovens. Quanto ao mercado de escravos, a custódia sobre os presos mais próprios para o trabalho está sendo negociada. No presídio privado de Minas, que é uma experiência padrão no Brasil, são negados aqueles que não servem aos lucros. Fala-se abertamente que o objetivo é ter apenas escravos, digo, detentos, aptos e dispostos ao trabalho. O resto é jogado nas masmorras de sempre, para apodrecerem e morrerem. E em breve a pauta da pena de morte deve retornar para dar um destino a eles – como em Auschwitz, afinal…



Também se poderia objetar que o preso segue sendo um sujeito do direito, diferente do escravo. Porém, o trabalho de desumanização da população carcerária (e dos periféricos em geral) aos olhos do restante da população está a todo vapor e as empresas que administram essas novas senzalas, digo, cadeias, pretendem ser responsáveis também pela parte jurídica da coisa. Em outras palavras, eles serão responsáveis por defender nos julgamentos os presos que geram lucros pra eles. Eles vão querer que um inocente seja inocentado, quando este inocente trabalha para gerar lucro? Se um preso é torturado e decide contar isso ao advogado para que a tortura acabe e seu advogado trabalha pra quem o torturou, esse advogado vai de fato trabalhar para que a tortura acabe?

Veja bem, a população carcerária cresceu 380% desde os anos 90 e a insegurança só aumentou de lá pra cá. O objetivo dos encarceramentos massivos não é a diminuição da violência, até porque a maioria dos encarcerados não cometeu crimes violentos. Num sentido ainda mais forte e mais perverso do anterior, de quando as cadeias eram apenas masmorras, torna-se cada vez mais realidade a frase “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”. Antes as famílias, os povos, as culturas destroçadas na África para produzir lucros no Brasil a serem remetidos à Europa. Hoje as famílias, os povos, as culturas de origem africana destroçadas nas periferias brasileiras. A articulação entre racismo, violência estatal, militarização e neoliberalismo leva à criação de imensos campos de trabalhos forçados, como aquele para 10 mil pessoas que o Alckmin está fazendo em São Paulo para entregar à iniciativa privada.


Ocorre que são trabalhos forçados vigiados por câmeras, biometria e armamentos de alta tecnologia e não por feitores e capitães do mato, que só contavam com arcabuzes, chicotes, correntes… A tecnologia dificulta a resistência, e é de se perguntar: Palmares seria possível num sistema desses?

terça-feira, 7 de outubro de 2014

A HEGEMONIA DO PICOLÉ DE CHUCHU COM PIMENTA

Contrariando a sabedoria pragmática de José Dirceu “é hora de campanha, não de avaliação", decidi entrar na campanha ferrenha escrachada anti Aécio Never e, ao mesmo tempo, fazer uma avaliação pessoal do que aconteceu em Sampa. Por tópicos, porque assim é mais gostoso.
Não é preciso ficar de luto quando não existe um cadáver a ser velado
Alguns dias atrás, no maravilhoso reino azul facebookiano de discussão política, parecia um absurdo a vitória do Alckmin. Ninguém parecia acreditar que diante de problemas tão críticos como má administração, corrupção, falta crônica de água e uma polícia absolutamente incapaz, o picolé de chuchu fosse se reeleger. As pesquisas só podiam estar sendo manipuladas. Mas a vitória veio, e de forma contundente. Humilhante. E no meu facebook, que parece um velório com o direito a foto de luto e tudo o mais, o que mais se compartilha é certa sensação de absurdo, de incompreensão profunda. Afinal, é LOGICAMENTE impossível acontecer o que aconteceu. Contudo, creio que só poderia existir um velório se realmente houvesse um corpo a ser velado, ou seja, se tivesse alguma coisa viva antes e que morreu com a vitória do careca. Mas passado esse momento de apego imaginário ao fantasma, acho que é hora de assumir que, se o digníssimo senhor governador só perdeu em UMA única cidade do estado, é sinal de que a incompreensão e a falta de lógica estão muito mais do nosso lado do que nas obscuras intenções do eleitorado paulistano. Classificar como absurdo o que é de uma evidência esmagadora (novamente, apenas UMA cidade não optou por Alckmin) é um grande sinal de miopia e impotência. Portanto, não pode haver um velório, pois o que foi dado como morto desde há muito é algo imaterial e fantasmagórico.
(Eu imagino o picolé de chuchu dando uma sacada no facebook da oposição, só por diversão, antes das eleições e com a torneira totalmente aberta: “kkkkk... eles REALMENTE acreditam que não faz sentido a minha vitória. Vou mijar na Cantareira pra comemorar”. Se a oposição só consegue representar sua vitória esmagadora enquanto absurdo incompreensível, é evidente que ela será absolutamente incapaz de articular uma forma contundente de reação de modo a atender\subverter o desejo perverso do eleitorado. Pois é justamente do núcleo desse desejo do eleitor que ela se afasta – repetindo a incapacidade de “compreender” os sentidos das manifestações de Junho).
Em certo sentido, essa incompreensão é a marca maior da vitória do PSDB em São Paulo, que corre o risco de se transformar em vitória federal, se não agora, nos próximos quatro anos. A questão não é de VER, pois o que se disputa não é o Real, mas seus sentidos, que são simbólicos e estão sendo colonizados pela mídia vampiresca, que adora o sangue, pela gestão política do terror e pelo fundamentalismo legitimador do ódio. O que todas essas esferas conservadoras têm em comum é que nenhuma delas esconde a miséria em que vivemos. Ao contrário, se alimentam dela. É um erro achar que eles escondem essa realidade - e que, portanto, a solução é mostrar como as coisas estão, de fato, ruins. Pois as coisas estarem ruins é seu ponto de partida. Não se trata de uma disputa pela realidade, e sim pela gestão do imaginário - é nesse ponto que a esquerda (no campo da imaginação, cada vez mais burocrática – daí o clamor de Badiou por uma “hipótese” comunista) vem sendo sistematicamente deslegitimada. Esquematicamente, podemos dizer que o fato da aprovação refletida nas urnas do governo Alckmin retornar para a oposição enquanto enigma, sendo ela tão contundente, é sintomático da distância que separa a entidade “o povo” dessa mesma oposição que os diz representar.
O fetiche liquido
A água se tornou o grande fetiche da frente opositora. Foco privilegiado dos ataques, na verdade revela-se mais enquanto um sintoma da incapacidade de se enfrentar o bicho de frente, qual seja, a identificação perversa de TODO eleitorado – pobres e ricos - com a política linha dura do governador. (Aqui cabe um parêntesis, porque afirmar que todo mundo optou pelo Alckmin é desconsiderar um aspecto importante, de que 40% do eleitorado paulista, entre brancos, nulos e indecisos, não votou. Talvez seja esse o ponto, inscrito no interior de uma política partidária que mostra sinais de esgotamento, que concentra o verdadeiro sentido político dessas eleições, para o qual ainda não se encontrou modelos alternativos efetivos). A mesma linha tênue e complexa que une mídia vampiresca viciada em sangue (Datena), fundamentalismo violento neopentecostal, para quem o ódio é uma virtude (Silas Malafaia) e a boa e velha política do medo. Ao invés de atacar o cerne dessa identificação, com medo de assustar o eleitor, a oposição tentou um desvio de foco para uma questão importante, porém periférica - (bem diferente da estratégia do PSDB em associar o PT à corrupção, pois ser o lugar da ética fazia parte da auto-representação do PT enquanto esquerda. Ou seja, era um ponto estruturante de sua imagem). Aí fica fácil, pois é só Alckimin dizer que o problema é de São Pedro, e não de administração, porque a administração dele funciona maravilhosamente bem no que ela se propõe: tratar pobreza como crime ou, em seus termos, ser duro com os vândalos e marginais. Não é outra coisa que se espera dele, e não é por outra razão que ele é eleito. Ora, matar pobre é especialidade do PSDB, e escolher competir com eles nessa área é burrice. Nem Skaf nem Padilha propunham nada de diferente nesse sentido, e se a direção buscada por todos, ricos, pobres, “esquerda” e direita é o de eliminar o marginal, melhor mesmo ficar com o PSDB, que faz direito e sem falso remorso de ex-militante. Focar na água não deixa de ser um fetiche líquido que permite escapar ao essencial, na linha, aliás, do Hadadd tranquilão, que anda de bike, mas não tem peito para enfrentar o PSDB em sua política de extermínio. Inclusive na época das manifestações, quando podia ter se afastado do governador para afirmar sua autonomia, preferiu manter-se ao lado deste. O PSDB não ganhou do PT, foi muito mais uma vitória por W.O.
A lição NÃO aprendida de Capitão Nascimento
Devemos voltar a 2007, o ano em que o cinema nos deu uma lição que a esquerda se recusa a compreender. Tropa de Elite I não é um pesadelo reacionário, ou um filme facista, mas uma expressão das mais bem acabadas do cenário brasileiro contemporâneo. É o que nos define, o que define o Brasil em plena euforia lulista, e cujo nó ainda não foi desvendado. Nem mesmo o próprio diretor teve coragem para enfrentar o bicho, recuando no segundo filme para sua zona de conforto (petista, como afirmou Reinaldo Azevedo, acertadamente) em defesa de pautas generalizantes como o “fim da corrupção”, ou o “fim da polícia”. Recusando-se, assim, a entender o fenômeno descoberto pelo primeiro filme (sem querer, é bom lembrar, pois o cap. Nascimento cresceu com o filme, que seria sobre Matias), cujo resultado prático -  aguardando interpretação - estamos acompanhando nas urnas agora. Eu e o César Takemoto chamamos esse movimento na época de “recuo conservador à esquerda”, e os efeitos desse movimento na atuação política no estado de São Paulo são evidentes.
Existe uma linha tortuosa que vai de Tropa de Elite I até as manifestações de Junho, assim como uma evolução da figura de Cap. Nascimento para a de Silas Malafaia. Cap. Nascimento “retira o lixo” de maneira absolutamente eficiente – leia-se toda sorte de marginais, professores, intelectuais esquerdopatas, maconheiros, dependentes químicos – mas os custos psicossomáticos da guerra são muitos. Silas Malafaia, por sua vez, é tão eficiente quanto, e os custos psicossomáticos são atenuados por conta do passaporte para o céu a benção direta do Pai maior. Há um avanço considerável em termos de barbárie quando você transforma “marginais” em “infiéis”. A glorificação neo-pentecostal do sucesso tem uma contraparte perversa cujos efeitos podem ser devastadores se a moda pega. Nesse caso, os fracassados não estão simplesmente condenados ao inferno, e sim são os próprios portadores do demônio e, como tal, tem todo direito de ser hostilizados, discriminados e até fisicamente agredidos – não é esse o tratamento que Malafaia sugere que seja dado aos homossexuais? Nesse sentido, o fundamentalismo evangélico corrige o recuo de “Tropa de Elite II”, fruto de fraqueza politicamente correta. Pois o fundamentalista não corre o risco de descobrir que seu empregador tem falhas, ou que é corrupto. Afinal, trata-se do próprio Deus em pessoa.
Apertem os cintos, o PT sumiu
Na colocação excelente de Douglas Anfra, a reeleição do picolé de chuchu tem dois pontos de força distintos a ser considerados. No interior, reduto histórico do PSDB, é “fácil” entender o que aconteceu, pois a imagem do eleitor coxinha e elitista cai como uma luva. O PSDB manda e desmanda por ali, inaugura obras o tempo todo, enquanto o PT só aparece elogiando o governo federal e pouco faz de imediatamente visível. O PSDB é a imagem na qual o eleitorado paulistano gosta de se reconhecer – e democracia representativa se trata exatamente disso, de escolha da auto-imagem, que as vezes coincide com a realidade, mas cujo foco é o imaginário –inclusive em suas dimensões negativas. A velha história de comer mortadela e arrotar caviar, o que se “justifica” ainda mais se a mortadela efetivamente for mais bem temperada que no resto do país. A narrativa ali está bem consolidada e cai como uma luva, assim como a associação das elites paulistanas torcedoras do São Paulo com o PSDB. O recorte de classe ajusta-se perfeitamente nos dois casos, e a imagem da oposição popular é rapidamente acionada. Entretanto, a vitória foi esmagadora, e não é possível esconder que quem elegeu o Alckmin foi a massa corintiana, moradora dos bairros populares, zona Sul de mano Brown e zona Leste inclusos. E mais, a massa corintiana, fundamentalista, morta de sede – ou seja, uma imagem do “povo” bem pouco domesticada e muito mais ameaçadora para esquerda. Sem dúvida não era essa “massa corinthiana” que o PT tinha em mente ao buscar uma associação simbólica: Corinthians time do povo, PT partido do povo, com um presidente boa praça e corinthiano roxo (Aliança, aliás, que extrapola o campo simbólico, pois o partido apostou (mal) suas fichas na candidatura do Andrés Sanches). A primeira saída para o paradoxo “conceitual” – pobres que votam, em massa, no partido “dos ricos” – é a boa velha teoria da alienação das massas, os pobres cooptados pelos discursos da elite paulista, a mais antipopular do Brasil (Veja e Folha de São Paulo). Ou a teoria dos pobres que querem pagar de elite, na mesma lógica do funk ostentação. Não cabe aqui analisar os fundamentos das duas hipóteses, mas haja vista o caráter imediato das duas como resposta para derrota esmagadora do PT, salta a vista que seu principal objetivo é a manutenção de seu conceito – primeiro passo para continuar na derrota - sustentando a imagem tanto do povo quanto do partido que o representa: um pobre que vota no PSDB só pode estar “traindo” a sua classe, assim como um pobre torcedor do São Paulo, ou do Fluminense. Com isso, a questão decisiva fica colocada em segundo plano. Afinal, de que maneira o PT cumpriu essa função de partido popular no estado de São Paulo, a ponto de vencer apenas em uma única cidade?
(Aliás, a linearidade da narrativa que pinta São Paulo como essencialmente conservadora desde os bandeirantes tem lá seu fundamento, mas não dá conta de explicar a vitória do Hadadd – ou da Marta e da Erundina. Nem explica como os movimentos de resistência periférica têm em São Paulo uma grande representatividade. E o que é mais importante, “esquece” que o PT surge em São Paulo, em sua faceta mais progressista e radical de esquerda. Se não é necessariamente “falsa” a tese do conservadorismo congênito de Sampa, ela precisa ser muito melhor compreendida e, sobretudo, não serve como explicação última e suficiente para explicar a derrota esmagadora do PT. Inclusive poderíamos sustentar uma outra interpretação, tão frágil quanto a primeira: se o PT surge em São Paulo vinculado a lutas históricas dos trabalhadores, não seria esse o lugar ideal para se perceber que aquele projeto radical de base foi traído?)
Ao aceitarmos a análise lúcida de Laura Capriglione em “A necessária renovação do PT e o vexame no Estado de São Paulo” [http://bit.ly/1t0yxzx], podemos concluir que não foi lá muita coisa o que o PT fez no estado nesses últimos tempos, pra dizer o mínimo. O PT não fez uma oposição rigorosa ao PSDB, quase não denunciou, desvinculou-se de suas bases populares. Fez uma campanha “coxinha” em Sampa, com medo de afastar eventuais eleitores tucanos. Em linhas gerais,  optou pela governabilidade em detrimento de apoiar suas bases sociais históricas. Nesse cenário, a opção colocada ao eleitor paulistano não era entre a continuidade e a renovação (PT como renovação?), e sim escolher entre aquele que vem sistematicamente se omitindo e o outro que aparece fazendo alguma coisa, independente do que seja. Pois em termos de consolidação da barbárie é inegável que o tucanato trabalha muitíssimo bem, da forma mais clean possível: Alckmin venceu não porque tem condições (ou vontade) de impedir outro massacre do Carandiru, mas para poder repeti-lo de forma mais eficiente, ou seja, sem fazer da morte de marginais pretos um escândalo, e gastando o mínimo possível. Capitão Nascimento foi saldado como um verdadeiro herói pelo grosso da população brasileira. Ora, se o projeto defendido é esse, e o PT não apresenta uma alternativa real, para que mudar? O PT perdeu sim, mas não porque o eleitor escolheu o conservadorismo de direita em oposição a uma opção de esquerda. Novamente, o PT perdeu de W.O. ao aceitar que a direita sequestrasse sua pauta. E se o governo federal seguir nessa aproximação com a direita vai perder as eleições, se não esta, a próxima, cujo resultado não vai ser uma direita mais social, como adverte o professor Boaventura dos Santos, e sim uma direita mais miséra do que nunca.
Do pastor-marginal ao pastor-policial
Em 1998, os Racionais lançavam o clássico disco Sobrevivendo no Inferno. A estrutura do álbum lembrava uma espécie de culto profano (pra quem não lembra, começa com uma oração de fechamento do corpo do guerreiro, depois a passagem do Gênesis e o discurso do pastor – cap. IV, v. III – seguido de testemunhos de irmãos) em que o pastor era um ladrão que não abaixa a cabeça diante da injustiça social, protegido por Deus e pelos Orixás. Muitos acusaram o disco de fazer apologia ao Crime, ainda que em todas as músicas o caminho do crime fosse recusado, não por ser eticamente condenável (a fome que é), mas porque seu resultado inevitável, sem a organização política da periferia, é a morte do preto pobre. O resultado, esteticamente extraordinário, era de uma arte comprometida com a sobrevivência de todos os seus irmãos da periferia, inclusive os criminosos, que não compactuava com o crime em nenhuma instância, pois era óbvio que o principal criminoso era o Estado carniceiro. Uma ética implacável e radical, explosiva em termos sociais, em que os marginais são vistos como os únicos capazes de civilizar o país.
Como toda obra de relevância estética profunda (obra de arte), o disco antevia que a disputa política essencial de nossa época se daria em termo de luta pela salvação da alma. Entretanto, a esquerda no poder, preocupada com a governabilidade, não engrossou a disputa, e o poder político do movimento cultural de periferia não conseguiu a emancipação plena de seus trutas de batalha. Como resultado, a consciência periférica do rap deu com os burros n’agua (ou na mediania de mercado), transmutando-se em funk ostentação (que ao invés de procurar formas de criar um poder real contenta-se com a espetacularização soberba de sua própria impotência), enquanto o pastor-marginal “evoluiu” para o pastor-policial, defensor da ordem pela força. O pastor-marginal do rap tentava forjar a centelha divina em seus irmãos de modo a evitar um novo massacre do Carandiru. O pastor-policial fundamentalista justifica o massacre ao considerar os presos como infiéis portadores do demônio. Na disputa pela alma da periferia, que se faz com verdadeira política, a direita saiu na frente e dominou a cena. O barato é loko.