segunda-feira, 5 de novembro de 2007

O Cavaleiro das Trevas (Frank Miller) e A Piada Mortal


Com o Cavaleiro das Trevas, Frank Miller conseguiu ressuscitar a personagem do Morcegão ao expor seu caráter problemático em meio a muita violência – algo parecido com o que faz Tarantino em seus bons momentos. Ele não age por amor à humanidade (na verdade, a pátria, o capital, etc...) mas sim levado por motivações egoístas cujas origens estão em um trauma de infância e em uma crise de meia idade. Como se a mulher maravilha decidisse destruir uma cidade inteira por causa da TPM. NA história, o morcego é um cinqüentão que lança para o mundo um olhar de superioridade e desprezo considerando a todos (veja bem, culpados ou inocentes) como vermes. O que ele defende não são os homens, mas sua visão psicótica de justiça. Por isso todo mundo tem de ter medo do cara, tendo feito alguma coisa de errado ou não.
A história se concentra no lado mais sádico da questão, enfatizando o prazer que a personagem sente ao detonar seus inimigos com requintes de crueldade (em uma passagem, Batman dentro de um tanque de guerra aponta para um membro de uma gangue e pergunta ‘porque eu não devo matar esse verme’). Ele se sente superior ao mundo e com isso se outorga o direito de satisfazer seus instintos básicos, passando por cima de qualquer um, inclusive da pátria e da humanidade (simbolizados pelo super homem, que leva um pau – o que é muuuuito bom!) Apesar do tom reacionário de ‘mal necessário’ – algo do tipo, ‘já que as coisas estão caóticas, grupos de extermínio que nos digam o que é bom e o que é mal são bem vindos’ – a história abre a possibilidade de crítica ao relativizar o ponto de vista do morcegão, e mostrar que seus exageros tem motivações narcísicas. E tudo construído em cima de um roteiro excelente e desenhos bem crus, perfeitos para a situação.
A base da concepção de justiça da personagem é uma noção dualista onde bandido é ruim e a paz e a ordem são valores abstratos bons em si mesmos. Mas no contexto pós moderno nem mesmo Hollywood engole essa visão sem complicações. Daí a pergunta: e se a visão do morcego fosse tão míope e insana quanto à de seus inimigos? (assunto tratado com maestria em Watchmem, de Alan Moore, uma metanarrativa sobre a impossibilidade dos heróis). Allan Moore em ‘a piada mortal’ trata da questão a partir de um prisma mais psicológico. A grande piada da história – e a mais mortal de todas – é essa: no fim das contas, bem e mal se equivalem. Batman literalmente criou o coringa, que é uma extensão ‘real’ da psicose obsessiva de Bruce. Uma fantasia obscura criada para satisfazer desejos sádicos e narcisistas – novamente, surgidas de um trauma de infância – e com tendência a durar para sempre, pois os conflitos que Wayne adentra só poderiam ser resolvidos com seu desaparecimento, ou melhor, com o desaparecimento de homens como ele, pois a justiça, que em última instância define o que é bom ou mal, estabelece seus critérios visando a proteção e perpetuação da desigualdade gerada por ricos e poderosos. Ou seja, o objetivo último de Batman só poderia ser concretizado com o desaparecimento do Batman, que em nome da justiça perpetua a injustiça primordial.
Para não chegar às vias de fato, o morcego se apega à sua noção de justiça abstrata de modo tão ferrenho que esta acaba por se voltar contra a idéia mesma de humanidade – em nome da qual supostamente ela foi criada. (Isso na versão mais moderna do herói.) Caso nosso herói houvesse nascido na Alemanha nazista e por qualquer razão acreditasse que fossem os judeus a raiz do mal que assola o planeta, (se um judeu tivesse matado seus pais, por exemplo), ele não hesitaria em criar um sistema de campos de extermínio altamente eficiente – e lucraria com eles em nome das corporações Wayne. Pois outra das características do herói é essa racionalidade instrumental – o cálculo lógico e desumanizado aplicado a qualquer situação. Com o abalo contemporâneo na crença nos benefício do progresso, essa racionalidade se desvincula da ética e o morcego a pode usar para manipular amigos, eliminar inimigos com requintes de crueldade, etc... tudo sem que nos seja dada a certeza de que ele está certo ou age em nosso benefício. Porque o nós não existe.
Continuando a comparação anterior... Diante de uma mesma situação, digamos, um camelô vendendo doces no metrô ilegalmente, o homem de aço iria chegar no sujeito e muito educadamente pediria para ele não fazer mais aquilo, pois tinha bom coração. Tomaria então os seus objetos de trabalho e sairia voando para entregar à polícia. Já Batman pegaria o cara e o seguraria de ponta cabeça pra fora do trem em movimento, enquanto comeria rindo todos os doces. Por isso a maior riqueza da personagem, pois o sadismo das suas ações deixa ver a violência do dado inicial e que nenhum dos heróis pode questionar (justamente o que faz Watchmen) com o risco de deixarem de existir enquanto heróis: será que o problema não está em considerar o ambulante como uma ameaça a ordem? Não estaria a ordem equivocada?
Segue o link para essas duas histórias excelentes (numa o morcegão da um pau no super homem, na outra, após uma das ações mais sádicas e cruéis do coringa, ele e o Batman gargalham de uma piada ruim, como dois meninos) que ajudaram a mostrar pro mundo que quadrinho não é coisa de criança. Aliás, pelo preço que custam, é uma coisa muito séria. O negócio é pegar de graça aqui mesmo, sem esquentar, porque a pirataria só é crime se você acredita que o capitalismo é justo, ou que o mundo é de fato, um lugar para todos.

O CAVALEIRO DAS TREVAS

EDIÇÃO 01 DE 04

EDIÇÃO 02 DE 04

EDIÇÃO 03 DE 04

EDIÇÃO 04 DE 04


A PIADA MORTAL
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2 comentários:

  1. Bela análise de Batman... A análise sócio-psicológica é das mais bem arquitetadas já por mim lidas. Batman é pior que o capitão Nascimento de "Tropa de Elite", pois este, embora justifique sua violência, tenta não mais fazer parte deste universo, visto que se sensibiliza com uma certa situação.

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  2. discordo um pouco dessa analise do batman. nos quadrinhos, o morcego realmente é um sujeito frio, calculista, e essa "casca" sombria realmente elimina um pouco da sua humanidade, revelando um sujeito meio sádico com uma noção muito estreita de justiça. mas é interessante perceber que ele nao se excede ao cruzar a linha da crueldade. com certeza ele maltrata inimigos, mas até um limite, e sempre por motivos aparentemente "justificaveis". batman nunca seria sarcastico, como voce tentou relativizar no exemplo do vendedor de balas, ele ia por fim a atividade do homem e entrega-lo a policia, fria e objetivamente.

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