2.2- O mito da Origem
Mas existem outros lugares legitimados na música popular a partir de onde a produção de RC pode ser considerada inautêntica. O samba, por exemplo, não partilha do princípio de autoria – Sinhô, um dos responsáveis pela difusão em massa do gênero, lançava um politicamente incorreto “samba é que nem passarinho, de quem pegar primeiro” – tal como colocado pela MPB. Muito da força do samba está na criação daquela forma heterônoma que falamos acima, estabelecendo formas de fixação da fala que mantêm o esquema de improvisação da roda de samba, aberto a todos aqueles que tiverem capacidade de versar. Nesse esquema, mantido até hoje em alguns contextos, cria-se o refrão, cantado coletivamente, e depois é fixada uma grade melódica a partir da qual os participantes podem criar versos, relacionados com o tema proposto. Mesmo quando um samba desse é fixado em uma gravação, os elementos derivados da oralidade são mantidos, sendo no mínimo arbitrário considerar que está presente ali uma subjetividade racionalizadora em sentido forte, por melhor e mais bem estruturado que esteja o samba em questão. Aliás, boa parte dos esforços dessas gravações consiste em manter o clima de espontaneidade, improviso e criação coletiva. A autoria dissolve-se, assim como a idéia de obra. Claro que nem todo samba é assim – boa parte da obra de Paulinho da Viola, por exemplo, caída pro choro, não é.
Entretanto, outro mito sustenta o lugar de legitimidade do samba, que sobrevive a partir da definição de suas origens. O mito de Origem do samba está na base mesma de sua constituição enquanto gênero. Desde que o samba principiou a ser gravado, recebendo maior atenção, o debate sobre qual seria o mais verdadeiro, ou autêntico ou brasileiro, está colocado. Sinhô em disputa com Pixinguinha e os grupos dos baianos para defender que o samba era genuinamente carioca. Noel Rosa (depois defendido pelo jornalista e sambista Almirante) defendendo que o samba era fruto de um processo cultural de toda sociedade carioca, em oposição aqueles que afirmavam que o samba verdadeiro (como Vagalume e Wilson Batista) eram aqueles realizados em rodas de samba, nos morros. Mais contemporaneamente, o embate será entre aqueles sambistas ligados as escolas e blocos do Rio de Janeiro, que ganharam destaque mercadológico a partir dos anos 80 (Zeca Pagodinho, Fundo de Quintal) e aqueles grupos de São Paulo e outras regiões do Brasil, que a partir dos anos 90 adotaram um formato mais pop para misturar com a levada de samba, influenciados sobretudo pelo sucesso do grupo Raça Negra.
Ou seja, o samba, desde seu nascimento até os dias de hoje, coloca em questão e levanta polêmica em relação às suas origens, em busca por legitimidade: variação do maxixe, dos batuques de candomblé, da África, do Rio, da Bahia, do morro, da cidade, cozinha em destaque, harmonia em destaque? Podemos dizer que esse movimento é inerente aos gêneros heterônomos em geral, posto serem estes indefiníveis do ponto de vista meramente estrutural. Não é possível definir o gênero a partir de formas, estilos ou instrumentação, porque todos esses elementos são cambiáveis e definíveis a partir de um processo social em permanente disputa. Dessa perspectiva, o samba é muito mais um lugar, formado a partir de inúmeras variantes que envolvem status, performance, melodia, harmonia, instrumental, agentes, momento histórico, etc... em constante movimento de redefinição. O que é samba genuíno hoje pode não ter sido (Zeca Pagodinho) ou pode deixar de ser, ou pode ainda suscitar debates eternos sobre seu verdadeiro lugar. O que existe é um conjunto heterogêneo de estilos e formas que compartilham e trocam elementos de composição, buscando espaço de legitimação.
Toda busca de definição pelas origens do samba comporta um componente ideológico de afirmação no interior de um campo. Por exemplo, quando a partir dos anos 30, o paradigma do Estácio foi eleito como uma matriz rítmica mais legítima para representar o samba (afastando-se do maxixe para se aproximar da marcha) em escala nacional, uma série de outros formatos (samba-raiado, samba de lenço, samba-chula, samba de bumbo, samba-rural) foram expulsos do interior dessa configuração - a partir de então considerada mais legítima - e relegados ao plano do folclórico. Por outro lado, esse mecanismo de definição ideológica do que seja o samba autêntico, é absolutamente imprescindível para que o gênero possa existir enquanto tal. Por mais abertas que sejam tais negociações, e por mais que, no limite, uma definição restritiva definitiva seja contrária ao próprio formato de constituição do estilo, é inevitável que se realize esse movimento, definidor não do formato samba, mas do seu “lugar”. O que faz o disco de estréia de Chico Buarque, composto só de sambas, não ser obra de um sambista, e o que faz uma compositora que flerta todo o tempo com a MPB como Clara Nunes ser vista como tal depende dessas definições, que não são nem meramente mercadológicas e nem absolutamente definíveis.
Sendo assim, a afirmação de que o samba é um gênero mais legítimo que a importação de RC se torna dificilmente sustentável. Afinal, não existe um único samba, mas diversos sambas em disputa por legitimação e espaço. O samba não possui uma origem única, o Brasil, porque este é um espaço também híbrido de constituição, renegociado a cada momento, apesar de não existir para além desse movimento de negociação que é ideologicamente concreto. E se a idéia de origem é fruto dessas negociações, como dizer que o autor mais difundido do país, maior nome do estilo musical que mais vende discos no Brasil (Amado Batista, claramente carlista, também ocupa o topo da lista de vendas), é menos popular, ou legítimo, que o samba? Como afirmar que o samba é mais propriamente nosso se ele cria a noção de um “nós” na exata medida em que se constitui, assim como RC? O quadro se complica.
3 - Nobreza indigesta: Roberto Carlos e o Brasil
O que procuramos realizar até agora foi uma espécie de mapeamento dos lugares a partir de onde são construídos dois dos principais discursos de desqualificação do rei - que não são os únicos, digamos desde já - operação que acaba por relativizar a própria noção de importação, matriz principal dessas críticas. Notamos como a noção de autoria se complica na forma canção brasileira. E vimos como a ideia de uma marca de origem a conferir legitimidade às obras é complicada, ainda mais em países de matriz colonial, como no contexto brasileiro, posto que, nesses casos, o próprio conceito de nação é já uma adaptação importada. Entretanto, afirmar que o estilo de RC é tão adequado ou “próprio” quanto outros não significa eliminar a questão da adequação à matéria local. Existem sim, inúmeros exemplos de formas mal estruturadas por não atentaram para as contradições locais, resultando numa espécie de pastiche mal elaborado. E não só no plano da canção, evidentemente. Todas as deficiências técnicas do Romantismo literário, por exemplo, podem ser compreendidos a partir dessa chave.
A questão não é, pois, a inexistência do problema, e sim o modo como ele é re-articulada no mecanismo de desqualificação de RC, ou seja, a partir de onde se inscreve essas críticas e em nome do que elas são feitas. Nesse caso, a leitura é fruto de uma tomada de posição e de uma construção ideológica que definem quais são os elementos que devem ou não participar do conceito de nação, e quais devem ser excluídos ou dissimulados, ocultando aspectos por assim dizer menos “interessantes” de nossa constituição. O movimento é perverso, pois além de excluir elementos importantes do conceito de nação, tal exclusão é feita a partir de uma transferência de culpa para os produtores: a obra de RC é ruim porque não consegue formalizar certos aspectos locais. Na verdade, o movimento é o oposto, primeiro definindo-se o que é o local, para em seguida classificar como ruins não aqueles que de fato não dão conta da matéria histórica, mas os que não cabem naquele conceito prévio. Um jogo de cartas marcadas.
No caso da crítica que acompanhamos, os únicos elementos admitidos no padrão de qualidade são ou o sujeito moderno crítico e reflexivo, de classe média, representada pela MPB, ou o sujeito tradicional, preservado intacto a despeito dos avanços perversos da civilização ocidental massificadora, representado pelo samba autêntico. Princípio que não à toa mantém uma forte relação com o paradigma do nacional desenvolvimentismo, a ideologia por excelência do Brasil enquanto nação moderna. Toda a cultura produzida pela maioria absoluta da massa urbana nacional é descartada como produto alienado e sem valor, mero consumo a-crítico de lixo importado. Ou ainda, como uma recepção passiva dos ditames do Capital. Ocorre uma inversão perversa, muito comum em um país de maioria iletrada, em que a cobrança por consciência crítica se transforma em mecanismo de dominação e de negação da... crítica – a partir do momento que as regras de tal consciência são definidas e impostas de cima para baixo. É possível existir arte de qualidade sem crítica e sem raízes profundas? Arte sem qualidade é arte? É possível entretenimento genial? Todo compositor brasileiro tem de ser, necessariamente, um complexado, como afirma Tom Zé, para ter algo a dizer sobre nós, enquanto sujeitos e enquanto país?
A imagem de país que surge não apenas das canções, mas do conjunto completo da figura de RC, não passa pelo samba, pelo batuque, ou por uma base percussiva qualquer – dado estético praticamente eleito como símbolo de nossa singularidade. RC se constrói na antinomia do samba – seu oposto. No rio do samba e carnaval, ele é o cristo de braços abertos, impotente e resignado, ameaçadoramente presente mas sem conseguir impor-se de fato. No sertão do baião, cultura popular e jagunçagem, ele é o catolicismo fervoroso, Padre Cícero. Nas minas dos causos populares e mistérios pagãos, ele é a religiosidade cristã sufocante de “Crônica da casa assassinada”.
Roberto vai ser o porta-voz da família brasileira, o cantor de suas desilusões, seus amores, e suas fraturas. E isso nem o samba (pela associação com a marginalidade) nem a MPB (por seu status bem pensante de tendências progressivas, crítico) podem ser. A família brasileira é conservadora, zelosa protetora da moral e dos bons costumes. RC é expressão de sua educação sentimental: jovens casadoiros, mocinhas recatadas, a TFP e seus conflitos, que não são poucos, a despeito da esquerda. Para entendê-la, é preciso entender RC. Nelson Rodrigues constrói um painel brilhante da sociedade brasileira – ainda que fora de moda tanto entre progressistas quanto entre reacionários - e das suas mesquinharias cotidianas a partir de um olhar lançado, não necessariamente à esquerda, sobre a família brasileira.
A família brasileira é o mais aceito e o mais marginalizado, o mais difundido e o mais recalcado, é o que não se confessa por ser o mais característico. Até a família brasileira se envergonha da família brasileira. Deve-se excluir da reflexão sobre o nacional aquilo que lhe é mais característico, só porque desagradável? Ou ainda, aquilo que nos desagrada não é capaz de propor questões relevantes, ou produzir uma obra consistente? Ocultar essa faceta no mínimo leva a uma miopia crítica, e no limite perpetua mecanismos de exclusão baseados não em reflexão, mas em um sistema de manutenção de status quo. Entender não é sinônimo de justificar, mas não se muda a estrutura mais sólida da sociedade sem a observar de perto, sem ouvir sua voz, sem observar, de dentro, suas fissuras. Qual a imagem da família brasileira na obra de RC? Não muito alegre, pra dizer o mínimo.
RC fez a opção por ser rei. O rei não é aquele que se destaca, mas o que se confunde com a própria norma social. Sua declaração de princípios é “só vou gostar de quem gosta de mim”. Bom católico, bom moço, sem defeitos. Sempre igual, sujeito tornado estátua, a figuração encarnada da própria norma. Não à toa desenvolveu Transtorno Obsessivo Compulsivo, não à toa repete figurinos, repertórios e especiais de fim de ano, roubando a cena do Papai Noel. Também seu som foi tornando-se mais massificado ao longo do tempo. Repetição. Estilo de interpretação, de acompanhamento, sempre o mesmo. Repetição. Um rei brasileiro só pode ser a encarnação do conservadorismo tipicamente nacional. Basta pensar em nossa outra figura real, o maior jogador do mundo, que cinde a própria personalidade por não conseguir condensar em uma só imagem o conservadorismo tacanho do Edison com brilhantismo malandro de Pelé, faces da mesma moeda.
Para merecer a coroa real e se tornar o cantor de maior sucesso do país, RC teve de confundir sua figura com a do brasileiro médio, apegando-se a imagem do cidadão comum. E este não é o malandro, aquele que se dá bem subvertendo a ordem em favor de si próprio. Malandragem fica bem em novela, mas todo mundo sabe que na vida real vira caso de polícia. Não é também o cidadão esclarecido bem pensante, afinal, pra ser isso é preciso, pelo menos, saber ler. O Brasil é um país de pobres diabos com complexo de vira-latas, homens-livres em situação de precariedade absoluta. Em suma, RC é rei porque é a figuração máxima do agregado, aquela figura brilhantemente retratada por Machado de Assis na personagem de José Dias, e conceituada no trabalho de Roberto Schwarz. Figura própria em um contexto onde imperam as relações de favor – mecanismo de regulação social que se coloca no lugar do sistema simbólico que instituiria a lei que garante cidadania para todos, fazendo com que esta lei permaneça como que a disposição da subjetividade dos mais poderosos – basicamente é um modo de ser social em que a pessoa anula a própria subjetividade (que já não tem mesmo valor em um sistema cujo acesso à categoria Sujeito é negado) para poder brilhar a partir da luz do outro - sujeito satélite, vazio e brilhante. Vir-a-ser eu a partir da auto-anulação. Não se trata aqui do confronto oblíquo com a norma, como no caso da malandragem. Dado um contexto em que reivindicação social é sinônimo de caso de polícia, uma das formas de existência é submeter-se de bom grado aos caprichos dos poderosos, como faz José Dias e Roberto Carlos. Afinal, quem é mais poderoso do que a imensa massa de consumidores de canção popular?
O que se exige de RC é, pois, a exigência inconfessável feita aos agregados: anule-se em troca de reconhecimento. Exigência que não é só dos poderosos, mas de todos os que têm a possibilidade de decidir sobre o destino do outro – o público é a mais cruel e exigente alteridade. RC acata as regras do jogo, e isso faz dele o rei, mas ao mesmo tempo impede que ele seja reconhecido enquanto sujeito, enquanto Autor e enquanto símbolo do país. Logo ele, que o simboliza tão bem em sua impossibilidade de reconhecimento dessa representação. E não queremos com isso reforçar o argumento de que a obra de RC é fraca por não ter “identidade”. Ao contrário, essa posição de auto-anulação do agregado vai ser dramatizada em todas as suas fraturas como em nenhuma outra produção estética nacional. Só que talento de agregado não pode ser reconhecido, tem que confundir-se com a voz do povo, tomar forma como coisa natural, despojada e sem grandes pretensões. A construção da voz do pobre coitado, cujo valor consiste na aparente ausência de qualquer valor que não o da sinceridade e despojamento.
Eis o dilema de RC, a matriz da tensão que sustenta sua obra e sua figura. Ao aderir ao lado conservador da sociedade brasileira, sendo seu porta-voz, ele vai alcançar ampla aceitação (realeza) popular. No entanto, a condição dessa aceitação vai ser sempre ocupar a posição de “coitado”, jamais tendo reconhecida sua importância estética ou histórica no interior do cancioneiro nacional. Será sempre o “melhor compositor de música ruim”. Ele é aclamado não porque se destaca, mas por ser mais um qualquer, um Zé-ninguém, o rei dos Zé-ninguém. A desqualificação inerente à figura do agregado impede que RC seja reconhecido por aquilo que representa: o criador da linguagem romântica moderna brasileira, e o pai da música pop nacional. Um agregado não se destaca. Não pode exibir marcas de sofrimento pessoal, tem de concordar com tudo e sorrir sempre. Não pode perder uma perna e nem usar roupa escura, negativa. Um agregado é uma coisa triste de se ver. E pode menos ainda ser tornado símbolo nacional, ou modelo de boa arte, por seu forte conteúdo derrotista, de auto-negação. E é isso o que se exige do pobre no Brasil, a negação de sua identidade. Excluir RC do panteão dos grandes artistas nacionais (na acepção mais ampla) é pretensamente um gesto de recusa ao conservadorismo. Mas o que existe de conservador nesse gesto de dizer o que é e o que não é o Brasil? O que cabe e o que não cabe em seu conceito? Não falar de RC é negar a reflexão sobre essa exigência que aqueles que estão no topo da pirâmide – inclusive os que fazem crítica musical – fazem aos pobres, a sua parcela de responsabilidade. RC é espelho invertido e incômodo. Um pobre ousado que supera as dificuldades colocadas por sua situação a partir de sua revolta é algo que faz bem para o ego dos culpados. Um pobre destruído pelas atitudes e compromissos das elites é sempre uma coisa triste, e por isso, veementemente recusado pelo narrador. O destino Macabéa.
Mas é fundamental ouvir o que os agregados têm a dizer. Enxergar o país a partir de sua ótica vai colocar novas questões, apresentar um país diferente, novos personagens. Essa posição vai culminar em toda uma linhagem que irá cantar aqueles que não têm voz no campo da canção – as mulheres e os deficientes, por exemplo, esses últimos no geral encarados como tema ou delicado demais, ou de mau gosto. RC também tem relação íntima com os primórdios do movimento da black brasileiro, sendo um dos primeiros (depois do Erasmo) a apostar no gênero. Sendo sua obra a atualização da música brasileira para a linguagem pop internacional, catalisando todo o processo, nada mais natural que apresentar vertentes dos dois gêneros pop de maior sucesso no planeta na época: o rock n’ roll e o R&B americano. Além disso, RC vai ser o cantor brasileiro mais escutado na América latina, outro espaço que normalmente não se integra à idéia padrão de nacionalidade. Percebe-se que é outro o país que se insinua caso passemos a vê-lo a partir da ótica carlista.