Considerações finais: quem já foi rei nunca perde a majestade
O artigo acabou por se concentrar nos aspectos ideológicos envolvendo a recepção da obra de RC, procurando desmitificar alguns aspectos da recepção negativa de sua obra. Se assim procedemos foi por acreditar que nesse caso a análise dos princípios discursivos que sustentam algumas das críticas direcionadas a ela poderia revelar dados importantes não só do posicionamento do cantor, mas, principalmente, do próprio sujeito que realiza a crítica, no geral menos baseada em princípios estéticos que em posicionamentos ideológicos. Mas é certo que nossa posição a favor da produção carlista parte também de certa recepção estética de sua obra, que convém deixar pelo menos assinalada nessas palavras finais, uma vez que não caberia nos limites desse artigo um trabalho analítico mais exaustivo.
A importância histórica de Roberto Carlos é pouco assinalada pela crítica especializada – ainda que de uns anos para cá esse quadro venha se alterado, sobretudo em alguns meios jornalísticos. De fato, tal como os Beatles no Reino Unido, RC foi quem consolidou a música pop em território nacional, criando a versão brasileira do gênero. Foi ele o responsável por dar forma a um modo de dizer nacional que não passava pelo samba, nem pelos antigos boleros, nem pela dicção MPB, nem por algum modelo de regionalismo. É diretamente pop, desterritorializado e, ao mesmo tempo, profundamente local, como vimos em termos gerais. Só que no Brasil a classe média tem verdadeiro pavor de tudo relacionado com cultura pop de entretenimento – daí se explica inclusive muito da baixa qualidade média da produção nacional nessa área – sendo incapaz de estabelecer algum juízo crítico que escape de sua própria esfera de valores.
De fato, negar\minimizar a importância decisiva de RC é uma forma de negar a própria música pop nacional, o que leva a um curioso movimento. Alguns artistas claramente vinculados ao pop, só que dotados de algumas das qualidades apreciadas pelos defensores do bom gosto, são imediatamente re-alocados em outra posição, confortavelmente mais próxima da MPB. Nomes como Alceu Valença, Zé Ramalho, Lenine, Zeca Baleiro, Cazuza, Herbert Viana, Carlinhos Brown, Chico César, Djavan são apenas alguns exemplos dessa migração para pólo mais respeitável, afastados do pop e do rei. Inclusive o próprio RC tem experimentado uma migração nesse sentido, num curioso movimento de afastamento de si próprio. Edson\Pelé? Como se não pudesse existir música pop de qualidade.
Diretamente relacionado ao desenvolvimento do pop brasileiro, RC é também o responsável direto por desenvolver a moderna música romântica nacional. Ele é a própria personificação do modo de cantar o amor no país depois da transformação da indústria fonográfica nos anos 50-60, que alteraram radicalmente os padrões de audição do público. Ele é o responsável por trazer o corpo ao primeiro plano na canção romântica, a partir da pulsação rock, o que se mantém depois que ele muda para uma linguagem menos jovem, pela presença constante da figurativização, que assegura a credibilidade do lastro entoativo no conteúdo passional. Podemos dizer que boa parte da canção passional brasileira que não foi direcionada pelos conteúdos temáticos e enunciativos da Bossa Nova, tais como sertanejo, pagode, Brock, brega, pop, forró universitário, etc, teve que se haver com a proposta de dicção estabelecida pelo rei, e sua forma moderna de cantar o amor.
Além desse lugar de destaque em um momento decisivo de transformação do gosto musical brasileiro, a obra de RC possui passagens de grande força estética. Se em muitas fases de sua carreira o cantor aponta para uma estandardização de seus conteúdos, criando uma obra que se repõe a si própria como uma espécie de auto-caricatura (especialmente a partir dos anos 70, onde ainda assim é possível encontrar algumas gravações antológicas como Emoções em sua versão original. Mas nunca mais um álbum inteiro de qualidade), existem alguns discos e canções que se inscrevem tranquilamente entre as grandes composições nacionais. Pelo menos três de seus discos estão entre os melhores e mais importantes do país. Em ritmo de aventura (1967) é um dos discos seminais da história do rock nacional, um dos últimos rebentos da fase Jovem Guarda, que terminaria na sequência, definindo rumos e tendências posteriores, sendo um dos melhores álbuns do gênero no país. O Roberto Carlos de 1969 é um dos mais melancólicos, tristes e belos discos locais, com o rei já migrando para o estilo romântico que o caracterizaria, mas ainda sem definir-se por completo. O resultado é um disco que transita pelo soul, funk, R&B, música instrumental (raríssimas em seu repertório) e até uma canção de amor bem inusitada, das melhores do estilo. Sua estupidez, em versão mais bem acabada que a de Gal Costa. E o Roberto Carlos de 1971, um álbum síntese do passado e do futuro da canção, contendo também estilos diversos. O romantismo forçado que aponta para os excluídos em Amada, amante, R&B, funk, balada rock e paródia de gêneros que saíram de moda. Como dois e dois, Debaixo dos caracóis, Todos estão surdos, Você não sabe o que vai perder e Eu só tenho um caminho já bastariam para colocar o disco entre os melhores de nossa história. Mas além dessas, tem Detalhes, que vale um comentário a parte.
Essa canção é um marco, dessas que definem os rumos que as coisas irão tomar a partir dali. Gostando-se ou não, é impossível ficar indiferente. Não trataremos aqui do acerto da interpretação original, altamente precisa no trabalho de transmissão das nuances interpretativas, e nem sobre o refinamento do arranjo, que sublinha e acompanha o sujeito enunciativo sem sobrepor-se ou sobrecarregá-lo com informações excessivas. Sem poder realizar uma análise minuciosa com diagramas, detendo-se sobre cada uma das partes[1], trataremos de alguns mecanismos mobilizados pela canção para criar uma relação de compatibilidade entre melodia e letra.
Rapidamente, podemos dizer que o sentido geral da letra está inscrito nos versos “Detalhes tão pequenos de nós dois \ são coisas muito grandes pra esquecer”. Todas as experiências vivenciadas pelo objeto desejado (a mulher não nomeada) irão remeter aos detalhes de sua experiência amorosa anterior, ao momento de conjunção com o sujeito enunciador. Cada momento vivido comporta uma carga de negatividade provinda da disjunção atual de sujeito e objeto. Em cada detalhe inscreve-se a negatividade da disjunção passional, estabelecendo um jogo entre a concentração espacial desses momentos cotidianos (detalhes pequenos) e o prolongamento temporal da ausência do sujeito (coisas inesquecíveis). Um embate entre concentração e distensão, portanto, que será reiterado ao longo de toda a letra, com os mais variados exemplos.
No plano melódico, a questão será, portanto, trabalhar com essa relação entre concentração e distensão (lembrando que, para o método semiótico aqui considerado, o principio que permite o estabelecimento da relação entre melodia e letra é que ambas são formas de dar sentido ao tempo, a partir de relações de ordem tensiva). Tentemos investigar o processo sem soar demasiadamente técnicos. O mecanismo melódico de concentração é o mais facilmente verificável: a canção opera com uma grade melódica invariável, ao longo de suas seis estrofes, sem distensão no refrão, num esquema que se divide em dois momentos, os primeiros concentrados no plano inferior da tessitura (Não adianta nem tentar \ Durante muito tempo), e os seguintes iniciados no plano superior, realizando uma curva descendente (Detalhes tão pequenos \ São coisas muito grandes \ E a toda hora vão estar). É essa reiteração a principal responsável pela sensação de invariabilidade que a canção consegue transmitir, a inevitabilidade da lembrança expressa em todos os detalhes que, independente de quais sejam, remetem à mesma falta original.
E como se resolve melodicamente o sentimento de falta, de disjunção, que se repõe em cada um dos detalhes? Com uma série de procedimentos propriamente passionais, como a distensão final dos tonemas, que sustentam as vogais, dando uma noção de continuidade (nem tentaaaar\me esssqueceer), nos saltos melódicos, que remetem a uma fratura disjuntiva (de ↑talhes tão pequenos) e na gradativa sequência descendente final, que segue até atingir o mesmo campo melódico do início (você vai ver↓), para recomeçar a narrativa. O resultado é uma canção em que seus elementos constitutivos estabelecem uma estreita relação de compatibilidade a partir de elementos até certo ponto simples, e que atinge resultados tão ou mais primorosos que modelos mais complexos que se perdem na relação com o todo. Detalhes é uma pequena pérola do cancioneiro nacional, e Roberto Carlos, um de seus ourives.
[1] Uma análise minuciosa pode ser encontrada em TATIT, L. Dicção de Roberto Carlos. In: TATIT, Luis. O cancionista: composição de canções no Brasil. São Paulo, Edusp, 1996. Porém com sentidos um pouco diferentes aos estabelecidos neste ensaio.
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