Nunca tinha lido direito o velho Bukowski, até que meu anfitrião Hermes num gesto de pura bondade me atirou um exemplar dele em mãos, na hora certa, ou melhor, na hora mais errada possível. Ou seja, na hora perfeita. Não sei bem porque - acho que é porque andei conversando sobre ele por aqui – eu comecei a pirar em possíveis conecções entre o velho tarado e o velho hipocondríaco Wood Allen. Mas desconfio que seja porque nesse livro que estou lendo – Mulheres – as críticas são direcionadas ao mesmo círculo social dos filmes do Wood Allen – a elite bem pensante americana, com suas manias, chiliques e vacuidade. Contudo, mesmo nos filmes em que Allen assume a persona de um escritor, como Bukowski, a distância entre as perspectivas é quilométrica. Wood Allen critica o tempo todo esse mundo, o rídiculo de seus gestos e rituais, ironizando-o com muito mais sutileza e minúcia do que o Bukowski. Mas o faz como quem ama: Allen é apaixonado por esse mundo, por isso, sua ironia como que deseja a aprovação de seus pares. É fácil encontrar esse tipo de personalidade em romances realistas, ou nos bares cults universitários – o cara que critica todos os hábitos, personagens e contradições do meio artísitco\universitário, sem abrir mão de citar uma bibliografia irrepreensível, com pronuncia impecável inclusive para os do leste europeu (aqueles que nem no próprio país existe consenso), fazendo uma pausa dramática para encontrar a citação exata. Tudo isso, evidentemente, em uma mesa de bar – o lugar mais adequado, diga-se de passagem. Em comum com o velho tarado, somente o fato de que também nesse caso os homens se utilizam disso só pra comer mulher (Allen deixa isso claro). Mas suas críticas sempre revelam uma dimensão última de encantamento, sublimação, que escapa completamente do velho autodestrutivo Buck.
Para dar conta da distância, basta dizer que esse universo intelectual\artístico\cult cumpre em Wood Allen a mesma função que para o protagonista de “Mulheres” é ocupado pela cerveja, que claramente prefere beber a foder, e sempre trepa como quem está bêbado pra cacete, mesmo nas raras vezes em que está sóbrio.
“Fiquei só de cueca e deitei na cama. Nada estava em sintonia, nunca. As pessoas vão se agarrando às cegas a tudo que existe: comunismo, comida natural, zen, surf, balé, hipnotismo, encontros grupais, orgias, ciclismo, ervas, catolicismo, halterofilismo, viagens, retiros, vegetarianismo, Índia, pintura, literatura, escultura, música, carros, mochila, ioga, cópula, jogo, bebida, andar por aí, iogurte congelado, Beethoven, Bach, Buda, Cristo, heroina, suco de cenoura, suicídio, roupas feito a mão, voos a jato. Nova York, e aí tudo se evapora, se rompe em pedações. As pessoas têm que achar o que fazer enquanto esperam a morte. Acho legal ter uma escolha.
Eu tinha feito minha escolha. Ergui a garrafa de vodka e dei um vasto gole. Alguma coisa aqueles russos sabiam”.
Daí inclusive a riqueza e a minúcia do olhar de Allen para as sutilezas, as pequenas paixões, que não poucas vezes nos encantam. A sua ironia capta detalhes como só um amante apaixonado é capaz, e quanto mais ele ironiza mais complexo e encantador aquele mundo se revela. É preciso reconhecer que ele explora muitíssimo bem as limitações de seu olhar – reconhecendo até onde é capaz de ir (afinal, cada filme seu é uma longa sessão de análise) para a partir daí captar beleza e fragilidade. Quando acerta a mão, a fórmula tem grande rendimento estético: em uma cena magistral de Annie Hall, um professor arrogante está na mesma fila do cinema que Allen, “explicando” a obra de Marshall Mcluhan para impressionar uma garota. A personagem de Allen então se irrita e, como vingança, convoca o próprio Mcluhan – e o personagem é vivido pelo próprio intelectual, que faz uma ponta no filme – para desqualificar os argumentos do professor pedante. Qual frequentador de círculos cults nunca sonhou em fazer isso? É uma cena genial que, contudo, não deixa de revelar algo sobre esse “desencantamento apaixonado”. Caso fosse, digamos, o Machado de Assis a compor a mesma cena, é bem provável que aparecesse o intelectual errado para deslegitimar o professor. O Bukowski então nem estaria naquela fila, mas se por um improvável acaso ele estivesse, o máximo que poderíamos esperar é que ele tentasse trepar com a mulher do professor. Não ouviríamos o argumento do cara, e muito menos qualquer intelectual apareceia enquanto figura de autoridade (mesmo que ironica). Para seus personagens, aquele universo só vale alguma coisa porque as mulheres são mais gostosas, e porque daquele jeito ele não precisa pegar no pesado pra viver. É claro que há algo de encenação, e ele também está representando para se dar bem naquele meio, como o Allen. Mas aqui não há nenhuma admiração. As mulheres são gostosas, o trampo é sussa, e ponto. Ele está naquele mundo como alguém que trabalhou no matadouro, nos correios, e ainda pira em lutas e apostas. A admiração – masculina - que ele procura é a dos caras que tramparam com ele. E não porque ele é um escritor de sucesso, mas porque com esse trampo ele consegue comer várias menininhas.
Em outra cena do mesmo filme, a personagem de Allen acaba trepando com uma poser ultra afetada, que no fim da foda termina dizendo que a transa tinha sido kafkiana – no que ele responde na lata, impecável: isso é bom ou ruim? É óbvio que nesse caso a sacada importa mais do que a trepada, e é óbvio que esse comentário desvela o quão poser é aquela mulher, e o quanto que nós (Allen e nós espectadores) sacamos do universo kafkiano. Já com o Bukowski, cada uma das suas centenas de trepadas – eis o grande mistério: como ele consegue fazer com que tanta mulher queira trepar com ele, não a primeira vez, que é compreensível, mas as outras vezes.. porque, afinal, elas voltam, como quem volta para a morte – é um universo feminino insano e maravilhoso que se abre. A impressão e o desejo é que cada uma delas teria um livro maravilhoso para ser escrito a partir de sua perspectiva. Mas como ele mesmo faz questão de afirmar enquanto trepa, ele é a morte. Nada pode brotar dali: essa escrita feminina, naquele contexto, não é possível.
Ao final dos filmes de Allen – creio que não todos – aquele universo termina, de alguma forma, redimido. Não é o melhor dos mundos – afinal, é frequentado por quase as mesmas personagens dos livros de Bukowiski – mas.. puta, que delícia. Já para o velho tarado, toda aquela porra não vale uma cerveja quente.
“Quando acordei, ouvi-a no banheiro. Será que eu deveria ter forçado a barra? Como saber o que fazer? Em geral, pensava eu, é melhor esperar, se você tem algum sentimento pela pessoa. Se você a detesta logo de cara, o melhor é já ir trepando; senão, era melhor esperar, depois trepar e deixar para detestá-la mais tarde”.
Esse é o universo do velho pervertido.
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