Guimarães sempre foi um problema pra certa parte da esquerda. Sem dúvida, ninguem tem coragem de afirmar seriamente que ele não é um dos maiores escritores em língua portuguesa de todos os tempos. Suas estórias conseguem o feito, extraordinário para literatura, de marcar o imaginário com imagens e causos que permanecem mesmo quando não lemos – a dualidade de Diadorim, o singelo Miguilin, a terceira margem do rio. São causos que conseguem recuperar, literariamente, o encanto das narrativas orais, fixando-se na memória através não só de seu conteúdo mas, especialmente, de sua forma. Elas se fixam porque não são construídas apenas imagéticamente, conceitualmente, mas fazendo apelo também à materialidade da palavra, ao sensorial. A palavra em Guimarães encanta, é-canto. Gera paixão, como certas canções que nos marcam. Esse efeito é fruto de uma conquista não ingênua, árdua, da palavra-encanto que se constrói na negação de si, no limite aonde se torna outra coisa. Uma crença que ao mesmo tempo desconfia profundamente da palavra, um culto que a dissolve. A canção combina melodia e fala para gerar esse híbrido que enfeitiça; a palavra rosiana forma o híbrido torcendo-se a si própria. O elogio ao limite é, em primeiro lugar, isso: a busca do lugar aonde a palavra não diz, o lugar de encontro com o outro, a irredutibilidade do sujeito na palavra, o que escapa a toda determinação. Metafísico, talvez. Misterioso, com certeza. Mas um mistério solar, musical, não um louvor ao obscurantismo. Esse é o hermético, o Hermógenes, o que tem de desaparecer.
O que incomoda a essa leitura de esquerda é principalmente a positividade do autor, que gozaria no "limite", naquilo que constitui nossa tragédia, sendo portanto motivo de crítica, e não de júbilo. O problema é que essa mesma esquerda - em que se encontram alguns dos melhores críticos do país - percebe que Guimarães não é reduzível a um mero movimento ideológico: colocá-lo à direita nesse caso é bem pouco esclarecedor e não resolve absolutamente nada. O autor fica assim, como que pairando num limbo, sem ser assumido nem rejeitado integralmente. É como se sua obra sempre apontasse para mais, para o além, como se todo diagnóstico fosse insuficiente, porque seu tema, no fundo, é a insuficiência, é o que falta, e o que está ali mesmo, no faltante. Uma teoria do signo, da sua musicalidade, da sua constituição a partir da falta.
Isso cria certa dificuldade para a boa crítica sociológica de esquerda que quer pensar na história como “causa ausente”, e ao mesmo tempo, conseguir em certo sentido mimetizar a forma artística. A história na forma. Schwarz faz isso com Machado, ele escreve em parceria com Machado, a ponto de conseguir se fundir ao autor - o Bentinho e a Capitu são do Machado tanto quanto do Roberto Schwarz. Como fazer isso com Guimarães sem girar em falso? Um dos problemas é que Rosa não tem a paixão do negativo, ou antes, existe um ponto em que sua negatividade cessa em nome de outra coisa, como nas “Margens da Alegria” e no “Espelho”. Mas a dificuldade também está em não ser possível tachar o que, afinal, é esse ponto, sem correr o risco de reducionismo. Pois esse ponto é justamente o que não se reduz, o encontro com o mistério, o ponto de fuga que permite considerar o lugar onde as coisas não se realizam, encontram-se enquanto projeto e potência. O que parece um argumento mitificador nesse caso tem uma funcionalidade analítica bastante prática.
Para certa crítica, essa indefinição é justamente o que definiria o Brasil, a incapacidade e irredutibilidade de ser um e ser outro. Essa conjunção híbrida é, de fato, terrível, e responsável pela nossa desgraça enquanto projeto de civilização, o reconhecimento prático da impossibilidade desse processo de modernização. Encarar essa "lógica dos limites" como elemento de positividade, tipo Gilberto Freire e, a princípio, Guimarães Rosa, seria uma forma de ocultamento, transformação da miséria em sucesso, da dominação em mistério. Pois bem. A dificuldade, no caso específico de Rosa, está em não ser possível afirmar, sem certa dose de má-vontade, que ele ignora esse aspecto da questão. Em Grande Sertão: veredas, por exemplo, temos inúmeras cifras de ambiguidade, assim como pólos de oposição. Zé Bebelo, o agente modernizador mais clássico, parente próximo do advogado do Homem que Matou o Fascínora (filme de John Ford). A imposição da modernidade na marra, o estado nação, ainda que populista. Uma ficção irrealizável fadada ao fracasso. Por outro lado, o O, o Canhoto, Aquele-que-não-se-ri, o Hermógenes, o hermético, a pura barbárie, que deve ser destruída. Nenhum desses dois pólos, no campo das certezas, são escolhidos por Rosa. Nenhum nos revela enquanto ser e nos cabe enquanto país. O que resta, pois, modernização conservadora?
Os dois grandes centros de ambiguidade do romance, Diadorim e o próprio narrador, Riobaldo. Pode-se dizer que Guimarães simpatiza com os dois (assim como Riobaldo), mas sem ignorar que um deles morre, e o outro se torna proprietário. Diadorim morre, enquanto Riobaldo, herdeiro do latifundiário Selorico Mendes, sobrevive pela força e pelo saber, um saber que se formaliza enquanto pacto. O amor, que dissolve oposições rígidas, que confunde o eu no outro, não muda esse dado. O projeto de racionalidade de Riobaldo é kardecista, a racionalização da macumba, que não serve para colocá-lo num patamar de igualdade com o doutor que escuta, mas é o suficiente para distingui-lo no interior do sertão. É o que tem pra hoje, e tá mais que bom. O caso é que Riobaldo não é simplesmente "exaltado" por Rosa, sua ambiguidade é de tipo e matiz diferente, e não serve para unir todos os homens num sertão universalista. O pacto com o negativo serve para ele como instrumento de dominação dos outros ambíguos do mundo. Aliás, os conflitos de classe serão tematizados todo o tempo por Guimarães, assim como os de gênero. Sua narrativa é um conjunto de conflitos, o reino da jagunçagem, com perdedores e vencedores bem localizados historicamente. É isso que nos diz, mas não é isso que nos salva.
Não se trata de um simples louvor da ambiguidade, mas talvez do mais profundo estudo sistemático das formas possíveis de ambiguidade em uma multiplicidade de contextos, com sua negatividade e, também, suas positividades, que existem, a depender do ponto de vista, e não necessariamente de direita. Existe de fato uma crença, traduzida em simpatia, mas também uma profunda lucidez. O leitmotiv “o sertão é o mundo”, não significa que o sertão é universal, que tem Hegel no sertão, que o caboclo é igual ao doutor, que o conflito une os dois ao invés de separar radicalmente. Algo do tipo, todo mundo é humano, como se este conceito não fosse uma construção bem localizada. Seu significado latente é mostrar justamente os limites dessa construção quando posta em contato com a alteridade irredutível. Como Maria Exita e o fazendeiro - uma história de amor entre patrão e empregada no conto “Substância”- o amor não rompe as amarras sociais, e a união se dá pelo negativo. O polvilho é a marca da separação, da diferença, que une sem apagar a separação, por meio desta – mesmo em momentos mais utópicos como neste conto, mais fraco que a média inclusive. "O sertão é o mundo" significa que o narrado não é o sertão, é outra coisa que não se narra a não ser negativamente, um espaço que não se diz literariamente, que não se representa. É ponto máximo e falência do projeto literário como um todo. O fracasso de virar outra coisa, e o sucesso relativo de ser só aquilo. O projeto de Guimarães revela que o que ele propõe (literatura?)não se realiza literariamente, não se realiza via cultura Ocidental. Nessa, os lugares já estão marcados.
Por outro lado, Guimarães não é negativo como Machado. A ambiguidade permite que ele narre, que ele construa histórias que adentram o imaginário quase materialmente, com o corpo. Por isso a força de encantamento quando se lê Guimarães em voz alta, ao mesmo tempo que é o mais distante que poderia haver de uma narrativa oral. No mais distante da espontaneidade ele alcança o encantamento do espontâneo. Encantamento soa para esquerda como mitificação. Nem sempre é assim. O encantamento não rompe a fratura social, ele pode se realizar em seu interior. Digamos, como um gol de Pelé que fica no nosso imaginário. Não é a esperança de que o Brasil pode dar certo, ou pior, de que já deu porque temos esse gol, que encanta. O momento se realiza nas fraturas do país, encanta por ele e apesar dele, é a revelação do mal no bem. É a potência de um país de merda que se esgota nesse Acontecimento porque o país é de merda. Não é um viva, é um protesto na forma de gol. É a presença e a negação dos pretos, ao mesmo tempo, sem inocência, mas também sem cegueira. É a lembrança de que o país não presta, porque não sabe como transformar o mistério (uma das formas do outro) em positividade. Não que a obra de Guimarães equivalha a um gol, mas é uma das mais profundas reflexões sobre o porque da literatura não conseguir ser um gol. E sim, é uma tentativa do autor de suplantar essa condição, mas sem considerar que esse seja um feito possível. A linguagem em Guimarães tem dono – um Famigerado dono. Mas uma posse também fadada ao fracasso, fraturada, marcada pela (porque não?) volubilidade.