segunda-feira, 26 de agosto de 2013

A insustentável leveza dos pequenos gestos

TEXTO PUBLICADO ORIGINALMENTE NA PÁGINA DA TORCIDA BAMBI TRICOLOR, SOBRE A FOTO PUBLICADO NO INSTAGRAM PELO JOGADOR EMERSON SHEIK, DO CORINTHIANS, EM QUE ELE APARECE DANDO UM SELINHO EM UM AMIGO.

Quando a sueca Emma Green Tregaro mostrou suas unhas pintadas com as cores do arco-íris, recebeu da supercampeã russa Isinbayeva uma reprovação forte: "É desrespeitoso com o nosso país. É desrespeitoso com nossos cidadãos porque somos russos". Isinbayeva se referia, então, à legislação que cerceia direitos dos homossexuais na Rússia, como adotar crianças ou "fazer propaganda homossexual". A imprecisão desse conceito serve bem à homofobia, como ficou claro na tentativa de explicação que Isinbayeva deu, após a repercussão de suas palavras: "Quero expressar de maneira firme que me oponho a qualquer discriminação contra a comunidade gay a respeito de sua sexualidade (...). Se nos permitirmos promover e fazer esse tipo de coisas, tememos muito por nossa nação porque nos consideramos normais, com um padrão. Nós apenas vivemos com homens ao lado de mulheres, e mulheres ao lado de homens. Tudo deve estar bem. Isso vem da história. Nós nunca tivemos problemas assim na Rússia. E não queremos ter problemas assim no futuro."

A homossexualidade seria, portanto, um desvio de conduta, um problema, uma anormalidade que ameaça o futuro e o estilo de vida russo que, segundo Isinbayeva, se calca na existência de casais heterossexuais exclusivamente. Numa lógica de tal forma opressora e contrária à diversidade, não admira que um gesto tão simpático à causa LGBT quanto simples - unhas pintadas com as cores do arco-íris - adquira esse superpoder de contrariar e desrespeitar uma nação, suas leis, seus cidadãos, seu projeto de sociedade, seu futuro. Esse temor pelo diferente, essa necessidade de que ele permaneça escondido, inaudito, invisível, isolado é, ora pois, a raiz primeira da homofobia. E a homofobia, como projeto político, depende de amarras tão apertadas, de um discurso tão restrito que basta um gesto positivo em relação aos LGBT, por menor que ele seja, para que se exponha seus limites e fissuras, sua artificialidade (a despeito de toda pretensão "naturalista" que o homofóbico evoca). Esses gestos apontam, quando não criam, os espaços de resistência que não permitem, afinal, que o discurso homofóbico seja o único possível, ainda que muitas vezes ele seja proferido pela maioria.

Não é muito diferente do beijo do Sheik no amigo. Há quem relativize o gesto sob o argumento de que Sheik não é gay, não saiu do armário, chamou os são-paulinos de "bambis" há pouco tempo, etc. Que seja. Vamos primeiro estabelecer uma coisa: o Brasil não possui leis que proibem "propaganda homossexual" mas sustenta discursos muito alinhados com esta lógica. Basta lembrarmos da presidente Dilma no episódio da cartilha anti-homofobia retirada do programa escolar, da nossa atual Comissão de Direitos Humanos da Câmara, dos casos de agressões e assassinatos provocados por homofobia. Num país em que pai e filho são interpretados como casal gay por demonstrarem afeto publicamente e, por isso, são espancados, um selinho entre dois homens ganha dimensões de resistência. Não importa se Sheik é hetero, gay ou bi pois a ordem primeira é dissolver a ideia de que há eles, os gays, e nós, os normais, o padrão (essa é a conversa da Isinbayeva, aquela que não discrimina gays, lembram?). Dissolver a ideia que essas demonstrações de afeto entre homens é da alçada deles, os gays. Que beijar um homem implica em declarar-se gay, sair do armário, assumir uma opção. Pode ser isso, mas não precisa ser só isso. A possibilidade de que homens, independente de sua orientação sexual, executem gestos de afeto publicamente é algo que nós devemos celebrar e cultivar. Especialmente se esse gesto vem de um atleta, imerso num dos meios mais homofóbicos da atualidade (como temos discutido), consciente da repercussão que causará (como a legenda da foto demonstra). A definição da orientação sexual do jogador não importa em absoluto, importa o beijo.

A reação (de boa parte) da torcida corinthiana lembra um pouco a Rússia de Isinbayeva. "Aqui é Corinthians" é o grito de ordem, a necessidade de delimitar o espaço da interdição e lembrar que, ali, naquela torcida, "não há esse tipo de problema". Que isso é "coisa de bambi". E não nos enganemos, se fosse um jogador de qualquer outro clube, receberia as mesmas chacotas de rivais e a mesma rejeição dos seus. Uma comunidade homofóbica, seja uma nação ou uma torcida de futebol, depende dessa "defesa" de sua honra, dessa manutenção de sua "pureza", uma vez que homossexualidade é defeito de caráter, vergonha, nojeira. Defender-se da acusão de ser gay e, ao mesmo tempo, lançá-la sobre o outro e torná-lo fraco, ridículo, humilhado é a lógica dos discursos dos rivais, e talvez isso explique porque "o bambi" é sempre o outro.

Na nossa cultura, é difícil provar o teor nocivo de uma piada preconceitosa. Nossa maneira de lidar com o riso, com o esculacho, nossa postura acrítica aos discursos "politicamente incorretos" tornam complicada a tarefa. Não raro as mesmas pessoas que reproduzem piadas homofóbicas são aquelas que, diante de agressões físicas contra LGBTs, percebem ali o limite: bater não, tirar sarro sim. Então é preciso entender que, diante de racionalidades e falas em disputa por legitimidade política, é esperado que algumas contradições se apresentem - dentro de certos grupos, de sociedades, de pessoas. Talvez seja o caso de Emerson sheik, que usa a expressão "bambi" pra provocar os são-paulinos e depois posta uma foto dando selinho num amigo e dizendo não se importar com as piadas preconceituosas (que ele sabia que viriam). Isso não diminui seu gesto, apenas torna mais tortuoso o quadro geral dos acontecimentos. Não nos deixa esquecer que assim como "o gay" é sempre o outro, "o homofóbico" também o é; que ninguém está livre de expressar esse tipo de raciocínio negativo quanto à sexualidade, por melhores que sejam minhas intenções.

Reconhecer em si o preconceito, admitir e trazê-lo à tona, tentar desmontar seus mecanismos... nada disso é fácil. É preciso, no mínimo, um ambiente que apresente argumentos, interpretações, possibilidades diferentes das tradicionais, das "normais". E, nesse sentido, o beijo do Sheik, sendo tão único no contexto do nosso futebol, vale muito mais do que suas provocações homofóbicas, que se juntam aos milhões de piadas homofóbicas repetidas e cristalizadas por aí. Todo gesto positivo é bem-vindo.

Domingo na Marcha – uma reflexão do coletivo passa palavra sobre o Fora do Eixo ou, de boas intenções o inferno está cheio…

Para quem está a fim de ficar por dentro do debate sobre o Fora do Eixo, e tiver tempo e paciência para ler cinco artigos densos, vale a pena acompanhar essa série em cinco partes (parte 1, parte 2, parte 3, parte 4 e parte 5) do coletivo passa palavra, de 2011. Os textos são uma resposta bastante séria, com um nível intelectual altíssimo e radicalidade de pensamento de esquerda muito bem vindos, a um ARTIGO bastante fraco da Ivana Bentes em defesa do Fora do Eixo. Um artigo que pode-se dizer que representa o pior daquele pós estruturalismo que, revestido de defesa do novo, na verdade é uma roupagem descolada e cool para a boa e velha manutenção de privilégios.

De quebra, o texto tem uma análise curta do Tropicalismo que é a melhor que eu já vi sendo feita pela esquerda, rompendo com os esquematismos fáceis. Algo assim: o projeto liberal ou libertário do Tropicalismo na época era uma verdadeira alternativa a esquerda, considerando que direita e esquerda coincidiam em diversos aspectos, com seu teor nacionalista, autoritário e ideólogo da modernização. Como tal, foi rejeitado por ambos e não se realizou politicamente, embora fraturasse irremediavelmente a cultura nacional. Passado quarenta anos, a esquerda não mudou (ou pior, aquela esquerda de lá é o Estado de hoje), e o capitalismo passa a se realizar a partir do gerenciamento de agendas libertárias - o imperativo do gozo. Ou seja, o grande nó ideológico do nosso tempo: que o capitalismo realiza-se ali mesmo onde seria o espaço de sua contestação, sendo que a esquerda se converteu em espaço de cooptação e a crítica progressista é o modo mesmo como o capital se realiza. Ou seja, é por ser um novo modelo libertário contestador que põe em cheque práticas regressivas que o Tropicalismo se realiza a direita (posto que a esquerda entra em cena como organismo de cooptação burocrática). É por ser crítico e avançado, e não por ser alienado ou conservador, que realiza mas perfeitamente o desenvolvimento do capitalismo, que adora uma boa inovação crítica. Um belo exemplo de como a verdade é o lugar próprio da ideologia. [As consequências dessa visão são perturbadoras, pois se é a radicalidade que realiza o capitalismo, como fica a questão do valor, uma vez que o mais crítico pode ser o mais reacionário e vice versa?]

Depois desse começo fantástico, os artigos são uma verdadeira aula de como se fazer crítica radical contundente, sem apelar para esquematismos ligeiros e sem fugir das contradições. A questão vai ser como o capitalismo passa a funcionar na pós-modernidade a partir de um modelo de cooptação de suas críticas, que se transformam em novos modelos de comportamento e padrões culturais. Como a contracultura se converte em seu contrário, na medida mesma em que traz avanços para a luta em relação a métodos engessados e aparelhamentos da esquerda. É nessa chave que é lido o FdE, a partir de uma análise cuidadosa da transformação do modo de articulação da indústria cultural (entra aqui até uma análise do mercado do tecnobrega), que funciona a partir do princípio de flexibilização e gerencialmente de mercados descentralizados, modelos agora menos lucrativos. Uma forma de concentrar saber e poder e, sob a desculpa de produzir novos modos de “viver” e “fazer”, criar nichos de mercado, dominar técnicas de acesso a recursos públicos que pretende se legitimar socialmente usando as Marchas da Liberdade como meio. Além disso, o artigo mostra como essa novidade do FdE se articula com o projeto de precarização da cultura no governo Lula, sob o ministério de Gilberto Gil.

Essa série de artigos é fantástica porque oferecem uma resposta consistente para aqueles que acusam a esquerda de preservar velhos dogmas. Aqui fica mais do que claro e evidente que não se trata de negar a radicalidade do novo, e sim reconhecer o problema fundamental da sociedade pós fordismo, pois que é nessa radicalidade que o capitalismo melhor se realiza. Hoje, mais do que nunca, é como se o inferno fosse povoado apenas de boas intenções, a tal ponto que, desprovido de função, o paraíso deixasse de existir. Ou seja, não se trata de negar que esses novos modelos não operam transformações importantes que podem ser lugares desicivos de contestação. Mas compreender que o capitalismo atual não funciona a partir da negação do princípio do prazer, mas antes ressignificando o gozo a partir de seus parâmetros, transformando os 0,30 centavos em espasmos de gigante adormecido.
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Algumas notas sobre a canção (Tropicália, MPB, Roberto Carlos, Funk)

Para marcar na agenda: é preciso deslocar a leitura hegemônica da história da canção brasileira, que busca qualificar seu momento "heroico" a partir da oposição entre MPB e Tropicália, cabendo ao público qualificado escolher com qual dos dois lados se identifica, o da “crítica reformista” tropicalista ou o do “engajamento elitista” da mpb. A história é entendida a partir de pares de oposição: a Bossa Nova cria a forma que é ampliada em todos os níveis pela MPB e, na sequência, rompida pela crítica tropicalista, que desvela seus limites. Pode-se compreender a ruptura tropicalista como avanço ou retrocesso. Em todo caso, nesse momento houve uma fissura, e o festival da canção aparece como polo de interesses políticos irreconciliáveis.

Contudo devemos instaurar um terceiro elemento nesse par de oposição, aquele elemento ausente da narrativa hegemônica, cuja presença invisível (sua rasura) determina o sentido desta, estruturando-a. Trata-se, evidentemente, do fator Roberto Carlos. Esse é o "verdadeiro" elemento de oposição da polêmica, em torno do qual os outros dois fatores entram em disputa por hegemonia (de uma perspectiva mais macro, o grande elemento ausente não é a disputa política - alto modernismo MPB ou pós modernidade tropicalista - mas a disputa pelo mercado, que não era apenas uma reivindicação Tropicalista). A história, contada a partir dessa irrupção carlista, apresenta outro esquema. A ampliação do fator Bossa Nova promovida pela MPB - que a coloca como o gênero mais vendável da época - é interrompida pelo surgimento de Roberto Carlos como elemento alienígena (produzido pelo mercado), abrindo o campo para uma disputa por hegemonia. A Tropicália, assim, não é oposta ao padrão MPB, mas é a forma mesma que a MPB precisou necessariamente assumir para continuar sendo o gênero hegemônico no sistema, expulsando o paradigma proposto por Roberto Carlos do campo. Dois pólos de um mesmo modelo que se transformam para permanecer no topo.

A relação entre MPB e Tropicália é, sobretudo, de continuidade. Uma disputa entre pares, por assim dizer. Tanto que, após esse momento heroico de confronto (que evidentemente tem uma dimensão política, atravessada, contudo, pelo mercado, como aliás enfatizava o tempo todo o próprio tropicalismo), fazer música com guitarra elétrica passa a ser um privilégio da MPB que, desse modo, torna-se a música pop (desdobramento do padrão rock) por excelência do Brasil, até os anos 80, quando o paradigma da formação nacional começa a ruir. Roberto Carlos é expulso do campo e, imediatamente 'envelhece', passando a trabalhar com materiais marginalizados como serestas, boleros, gêneros de matriz latino-americana, etc... Ou seja, sua passagem para esse campo romântico\brega não se deve apenas a um desejo mercenário do rei para aumentar suas vendas, e sim ao fato de ter perdido a disputa pelo gênero pop para a MPB (durante um tempo, entre 68 e 71, Roberto até tentou integrar-se ao campo aberto pela Tropicália - é quando produz seus melhores discos - mas aí seria para sempre um sócio menor, e não o rei). Diga-se de passagem, ele revolucionou os padrões da música romântica brasileira, introduzindo alguns aspectos propostos pela... Bossa Nova (mais Tom Jobim do que João Gilberto).
Tanto a MPB quanto a Tropicália podem ser compreendidas como participantes ativos de um mesmo processo geral de fundamentação da música pop Brasileira a partir do paradigma da Bossa Nova. Sua oposição não é absoluta, tratando-se antes das tensões decorrentes dos mecanismos de adaptação na disputa por hegemonia, um esquema de adaptação ao mercado fonográfico (em seu interior, contra e a favor), para não ficar pra trás. A disputa foi, efetivamente, vencida, mas a fratura retorna, por assim dizer, pela porta dos fundos: o enigma da majestade do rei - e de tudo aquilo que, com ele, foi marginalizado e, incorporado pelo mercado enquanto tal - é uma das questões mais espinhosas da canção brasileira.
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Voltando a distinção polêmica, nos termos colocados pela Ópera dos Vivos, da Cia do Latão. Construção, do Chico Buarque, para alguns o momento de seu amadurecimento, é seu disco mais Tropicalista (não é a toa que o arranjo da canção Construção é de Duprat, e segue o mesmo esquema dialógico dos arranjos tropicalistas). Significa que ele consegue romper com o conservadorismo tropicalista com as armas do inimigo, ou que ele se vendeu, mas depois entra nos eixos? Tom Zé, aquele do comercial da coca cola, é tropicalista. Quer dizer que o Tom Zé é mais conservador do que parece, ou que a Tropicália é mais a esquerda do que se assume? Os mutantes também são tropicalistas. Em que sentido o som que eles fazem pode ser classificado como uma regressão ao mais mercadológico e comercial da canção? Clube da esquina e Novos Baianos só existem via tropicalismo, ou não? E se desautomatizassemos esses pares de oposição, não seriam mais produtivas as leituras? Ou estaríamos sendo por demais tropicalistas (uma reedição no campo da canção do que no plano intelectual aparece como negativismo marxista versus positivismo pós moderno, enquanto Zizek, Jameson, Stuart Hall, Ramond Willians, Spivak, Judith Butler tão dando risada na nossa cara...)

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Se o funk carioca é um gênero que, ao que me parece, consegue dizer mais sobre aquilo que o país se tornou do que o excelente último disco do Chico Buarque, ou a ainda melhor trilogia Cê do Caetano ou o excepcional disco de estreia do Metá Metá. E se, além disso, o gênero causa mais incômodo aos setores conservadores da sociedade (MC Daleste foi morto por sua música, assim como John Lenon e Fela Kuti, e aos que afirmam que ele foi morto pelo posicionamento 'político' e não pelo potencial estético, a rigor, regressivo, pode-se argumentar que uma das complexidades do funk - e do rap, com as correspondentes diferenças de grau - é justamente a promiscuidade entre as dimensões ética, estética e política), gerando um quiproquó valorativo em que esquerda e direita concordam que a Bossa Nova é foda (e é mesmo) e esquerda e direita concordam que o funk é esteticamente 'pobre', ou mal estruturado (em certo sentido é quase uma ilustração didática do caráter regressivo da canção de massa adorniana, em termos de organização dos materiais. E é mesmo). E se ambos os juízos estão, em seus limites, corretos - não se trata de falar que o funk carioca é avançado esteticamente, negando suas limitações - pode ser que o que tenha mudado fundamentalmente seja a própria possibilidade de atribuir valor a partir da relação entre qualidade estética e posicionamento crítico (o fundamento da crítica imanente?). O que não é o mesmo que dizer que de nada serve mais atribuir valor (o mercado sempre atribui valor) mas, antes, que a própria noção do que seja valoração pode ter mudado radicalmente (é claro que isso não é novidade, mas é claro também que a tradição crítica brasileira está devendo em termos de crítica séria da cultura de massas - a mais rasteira - para além dos diagnósticos já conhecidos). Ao menos, essa relação entre forma avançada e crítica radical já não está dada de antemão, sobretudo quando o capital nivela tudo, reproduzindo-se tanto pela crítica mais radical quanto pelas formas mais conservadoras. Nem sempre a qualidade estética é progressista ou menos insignificante por ser foda (mas isso nós sabemos, não é, embora ainda se trate problemas formais em termos de insuficiência de radicalidade) e (aqui é mais complicado de aceitar) nem sempre o que é progressista é o que se precisa no momento para fazer a sociedade avançar em termos progressistas (ainda que as definições precisas sejam, mais do que nunca, necessárias. Afinal, o gigante acordou).

A gata do Laerte

Qnd é que a genialidade migrou pros quadrinhos, a ponto do cartoon ser hoje um dos tipos de arte mais avançadas do país? Um série de tiras de cortar o coração do Laerte, tratando um tema difícil com uma sensibilidade incrível. Gênio!

Publicado originalmente em TRABALHO SUJO.


O Senhor dos ané(a)is


 
Esqueça Grande Sertão: veredas. A grande saga homoerótica da literatura do século XX é O senhor dos an(a)éis. Nunca queimar o anel foi tão celebrado e tratado como um feito tão heroico (Brokeback Mountain passou muito longe disso), capaz de salvar toda humanidade, apesar de seu alto custo em termos pessoais. Um dos trunfos do filme é alegorizar o superego castrador do Hobbit em uma figura repulsiva marcada pela dualidade: a função de Smeagol é evitar a todo custo que Frodo queime seu anel com Sam. Para isso, procura o tempo todo causar discórdia entre o casal. Seu grande trunfo, inclusive, não poderia ser mais explícito: o gesto mais radical de Smeagol pra evitar que o senhor Frodo enfim queime o anel é atirá-lo diretamente para uma ARANHA enorme, cabeluda. Mas o amor vence, e o guerreiro Sam salva a mocinha mais uma vez.

Quando enfim, consumado o ato, e tudo volta à normalidade, Sam arruma um casamento qualquer pra obedecer as convenções homofóbicas da época (é interessante que do quarteto de Hobbits, só ele precise se casar). Frodo imediatamente cai em depressão profunda, até que decide morrer. É o fim da Sociedade do Anel.
 
O texto-piada acima rendeu uma discussão breve no facebook. Uma das críticas, feita pelo amigo de um amigo, é a de que era uma análise vulgar. Segue então a resposta que escrevi.
Primeiro que eu concordo com seu amigo, se por vulgar ele estiver entendendo uma análise rasa, empobrecida. De fato, eu acho que esse misto de 'análise' com piada não se sustenta enquanto proposta analítica do filme, por ser muito redutora. É muito pobre e, nesse sentido, vulgar. E menos ainda com relação ao Grande Sertão, muito superior, mas aí o rebaixamento foi pura provocação (mas... penso também que uma análise séria de gênero do Grande Sertão, que considere o feminino ou a pulsão homoerótica evidente ali como um elemento disruptor de padrões discursivos hegemônicos, pode apresentar conclusões interessantes).
Agora se por vulgar ele estiver recolocando em pauta essa divisão que vc apontou, entre vulgar e não vulgar, aí eu concordo integralmente com vc: para pensar a cultura de massa, é preciso descondicionar o discurso saindo de qualquer variação do dualismo alto x baixo com o qual o discurso hegemônico procura enquadrar o popular (bom x mal gosto; vulgar x elevado; atrasado x progressista). Engraçado que eu tava lendo justamente sobre isso hoje, o como a reencenação desse dualismo é o modo de contenção do poder disruptor do popular, capturado em categorias de gosto, valor, cânone.
Enfim, se vulgar se refere ao alcance analítico da leitura, eu concordo com seu amigo. Agora se está se referindo a um critério metodológico, aí eu concordo com você.
Agora, duas outras coisas. Por mais que seja mais piada que análise, eu acho que capta algo do movimento geral do filme, que é interessante. De fato, é como se o filme tivesse uma dupla ambientação: a parte masculina, ativa, das guerras, e a saga homoerótica dos hobbits. No livro do Tolkien, isso tem a ver com certa valorização da burguesia inglesa, os heróis da nova era. Já no filme, penso ter a ver com uma fragilização do macho presente na ideologia dominante em hollywood, presente em incontáveis níveis, e que marca a passagem a partir dos anos 90 para a forma cínica contemporânea.
O outro ponto que é interessante é um lance bem pós estruturalista, porque tem a ver com tradução. Eu não faço ideia se termos como 'queimar o anel' e 'aranha cabeluda', que são "conceitos" chaves da minha 'interpretação', em inglês tem a mesma conotação sexual! Se não, é como se fossem pontos da sacanagem que só poderiam estar visíveis para quem não compartilha da linguagem de quem produziu a história. Ou seja, só faz sentido no ponto cego da linguagem, mas não deixa de ser 'verdadeira' porque o filme, de fato, tem algo de gay. Derrida adoraria isso...
Abraços mano! Compartilha com o seu brother.

PASTOR QUE FAZIA CURA GAY É PRESO POR ABUSO SEXUAL DE DOIS HOMENS.

Tem uma piada dos trapalhões que é a seguinte: Didi é um dentista, e na frente do consultório tem uma placa grande, onde pode se ler algo do tipo: TRATAMENTO: COM DOR 1000 cruzeiros. SEM DOR 5 cruzeiros. Então o Dedé chega todo animado e pede pra fazer um tratamento sem dor, logicamente. Daí que o Didi chega com uma broca do tamanho de um trem e com um boticão de tirar dente de elefante e parte pra cima do Dedé a seco, sem nenhuma anestesia. Dedé começa a berrar, desesperado. Então o Didi solta, fenomenal: _ Não grita que com dor é mais caro!

Pois algo dessa inversão que se torna ainda mais perversa (e violenta) por ser profundamente cômica está presente também nesse outro caso de cura gay. Da até pra imaginar uma resposta cínica do pastor: _“Mas como é que eu vou saber o quanto de gay o paciente já desenvolveu se não fizer os testes necessários”? A inversão cínica, que tem a estrutura de uma piada, é a base em que se realiza a perversidade, ainda mais cruel por ser uma grande piada de mal gosto, como percebe o Comediante do Watchmen, ou o Coringa de Piada Mortal. Não se trata de dizer, de modo conservador, que o pastor ataca gays porque é um homossexual enrustido - como se o problema da discriminação fosse resolvido quando os sujeitos enfim reconhecessem a integralidade do gênero ao qual pertencem - mas atentar para o quanto que qualquer construção de gênero possui um fratura interior determinante que precisa ocultar-se representando essa insuficiência como imagem de um Outro que em sua fantasmagoria confirma a integridade do EU. Ou seja, é justamente porque as identidades são fundamentalmente fantasias, ou ausências estruturantes, que elas são 'positivadas' por meio de estruturas sociais, ideológicas, políticas, institucionais, etc. A discriminação participa e dá forma a esse processo para benefícios de pastores que confirmam a superioridade social de sua posição hétero no momento mesmo em que abusam sexualmente de outros homens, mulheres ou crianças.


PASTOR QUE FAZIA CURA GAY É PRESO POR ABUSO SEXUAL DE DOIS HOMENS.


MINESSOTA, EUA — Um pastor de Minessota foi preso na última quinta-feira acusado de abusar sexualmente de dois homens durante sessões de “aconselhamento para se libertar de tendências homossexuais” em uma organização cristã anti-gay. De acordo com o jornal local “Kare 11”, o reverendo Ryan J. Muehlhauser - casado e pai de dois filhos - responde a oito acusações criminais por abuso sexual de rapazes que passavam pela “terapia” indicada pelo pastor. Ele pode pegar até dez anos de prisão por cada um dos crimes.
Os abusos teriam ocorrido em datas diferentes: de outubro de 2010 a outubro de 2012, e entre março e novembro deste ano. Uma das vítimas disse a polícia que continuou as sessões mesmo depois do abuso porque acreditava se tratar de um aconselhamento espiritual. Além de ser consultor na organização cristã anti-gay Outpost, Muehlhauser atuou como pastor na Igreja Cristã Lakeside, em Minnesota, por 22 anos.
Em seu site, a organização negou que o pastor fizesse parte da equipe de “cura”. Após o incidente, a Outpost passou a se definir como uma organização que “ajuda as pessoas feridas emocionalmente e sexualmente a encontrarem a cura e restauração por meio da relação com Jesus Cristo.”
“A Outpost está profundamente triste com as alegações sobre Ryan Muehlhauser. Somos fundamentalmente contra o abuso sexual e existimos, em parte, para ministrar aos que sofreram essa violência. Ryan não é e nunca foi um membro de nossa equipe, e nem era um pastor que recomendávamos. Os dois jovens que sofreram esta atrocidade continuam conosco e queremos ajudá-los da maneira que formos capazes. Nossa tristeza e as nossas orações vão para todos os que foram sexualmente violados.”

Leia mais sobre esse assunto no Globo 

Vovô Chico dando aula de preliminares pros funkeiros

Naquele que é o mais explicitamente sexualizado gênero musical contemporâneo no Brasil, o funk carioca, o sexo é tratado como em um filme pornô, ou em uma aula de aeróbica, mal conseguindo ocultar sua profunda fragilidade e a ausência assombrosa daquilo que afirma possuir - seu didático reino de pirocas, xotas e cus pretende a todo custo evitar o confronto com o real da inexistência monstruosa da relação sexual (pra seguirmos Lacan). A pornografia é uma tragédia para a psique masculina, ainda que a sexualização agressiva da matéria social seja talvez o que de mais relevante o funk tem a nos dizer sobre a sociedade contemporânea. A linguagem do funk é a forma por excelência da sociedade atual.

Diante disso, o que o vovô Chico pode nos ensinar? Se você pretende que uma mulher te ame com o corpo (que é muito mais profundo e eterno que o amor da alma) é preciso perder-se nas preliminares, até que se torne o lugar do gozo. Essa é talvez a mais bela canção sobre as preliminares da MPB (e não são poucas). Aqui o velho Francisco consegui bater o Wando e se equiparar a Roberto Carlos, o que não é pouca coisa. Perto dessa sabedoria cunilingual, o didatismo agressivo e condicionador dos funkeiros fica parecendo o sexo desesperado de um bando de moleques com ejaculação precoce. O que é uma pena, pois o potencial estético do gênero é tão grande quanto o do rap, só lhe faltando talvez um pouco mais de tencionamento ideológico.