terça-feira, 14 de junho de 2011

Da legitimidade da realeza: Roberto Carlos como emblema da nacionalidade [1\3]

Esse é um artigo que eu escrevi para uma revista acadêmica, já aprovado e publicado em breve. Segue com algumas adaptãções para o formato blogueiro.
1. O entre-lugar da realeza
Roberto Carlos é o cantor de maior sucesso do Brasil. Sua popularidade é incontestável, atestada por seus impressionantes números de vendas – é o mais vendido do Brasil - e por sua ampla difusão no contexto popular, sendo, por exemplo, um dos raríssimos casos de um intérprete que possui um programa de rádio dedicado inteiramente a sua obra. E não apenas em uma, mas em diversas cidades brasileiras, especialmente no nordeste. Tudo o que se refere a sua difusão e penetração na cultura popular - desde o início de sua carreira, mas especialmente quando, a partir dos anos 70, decide investir no gênero romântico - assume dimensões continentais.
Por outro lado, e talvez na mesma proporção de sua ampla difusão, é notório o sentimento de rejeição em torno de sua figura. Circula por aí uma anedota bastante emblemática, relatando que, certa feita, um dos medalhões da MPB (um dos grandes) foi questionado sobre o que ele achava do Roberto Carlos, no que ele teria respondido que este era o nosso melhor compositor de música ruim, arrancando risos. Risos entre pares, evidentemente. Para muitos críticos, formadores de opinião em geral e artistas com direito a voz (uma seleta parcela) no interior do debate estético, RC é o maior representante da música de entretenimento, cujas principais características são sua baixa qualidade e ampla difusão.
Para essa linha de pensamento, RC é artista menor porque faz música de massa, mera reprodução do que já existe, dos mecanismos de auto-reprodução do sistema capitalista no plano cultural. Artistas desse calibre, se é que podemos considerá-los enquanto tal, são incapazes de elaborar uma obra consistente e com força estética - apesar de sua inegável importância comercial, posto que seu alto índice de vendagem sustenta o investimento da gravadora em artistas que vendem menos a curto prazo, mas possuem um público fiel que a médio ou longo prazo recuperam o investimento. Ou seja, esses grandes vendedores de porcarias musicais de toda sorte seriam uma espécie de estepe que sustentaria a produção estética dos artistas de verdade.
A princípio, fragilidade da obra desses produtores de cultura de massa estaria em dois aspectos principais. Primeiro, porque são simplesmente reprodutores das modas ditadas pela indústria do entretenimento, incapazes de propor uma linguagem que traga em si um projeto de racionalidade identificável em cada uma de suas partes, sem condições, portanto, de criar em sua obra algum sentido de totalidade. Segundo, e intimamente relacionado com o primeiro aspecto, porque esse modismo ditado não pelas necessidades internas do material musical, mas por ditames mercadológicos externos, não tem força para captar a dinâmica da sociedade brasileira, não está organicamente relacionado com nosso processo social, ancorado como está no princípio de fragmentação capitalista, de tendência universalizante. A fragilidade da canção de massa seria, pois, de dupla mão. Uma de ordem interna, da organização dos elementos, e outro de ordem externa, no plano da inorganicidade com a matéria histórica, posto  que o valor de troca, em sua inclinação para a negação do substrato material, é o núcleo dessa arte mercadológica. O resultado é uma obra que, além de mal resolvida estruturalmente, não tem nada a dizer sobre nós mesmos, mantendo um caráter meramente ornamental.
O que tentaremos fazer ao longo dessas páginas não é negar a força e radicalidade desse olhar eminentemente negativo – embora acreditamos ser absolutamente necessário acrescentar algum elemento mediador entre o conceito de indústria cultural propriamente dita e seus produtos, tal como o princípio de hegemonia gramsciano, entendendo a cultura de massas também como um campo conflituoso – e muito menos negar o quanto tal percepção, de matriz adorniana, trouxe de contribuições fundamentais para o estabelecimento de um olhar mais crítico sobre a cultura. Entretanto, ao procurarmos retirar a carga excessivamente negativa imposta sobre RC (eleito como símbolo maior da cultura de massas nacional), procurando desvendar as motivações e reduções ideológicas implícitas nesse movimento, estaremos inevitavelmente empreendendo um exercício de relativização da negatividade desse conceito. Porque é importante deixarmos claro desde o princípio o seguinte aspecto: a “defesa” que aqui se fará do rei não será a mesma empreendida pela indústria fonográfica, quando esta deseja conferir uma carga de legitimidade a algum artista popular, aproximando-o da esfera de maior capital simbólico[1]. Não iremos, pois, aproximar RC da MPB. RC será também considerado aqui como um artista típico da cultura de massas. Só que, além disso, iremos considerá-lo também um grande cancionista, de importância decisiva no interior da história do desenvolvimento da canção nacional, cuja obra estabelece um íntimo diálogo com questões nacionais. Movimento que necessariamente coloca um elemento de tensão tanto na noção de autoria quanto na concepção de nação proposta. Assim como tenciona o par cultura de massa x qualidade estética, geralmente considerado enquanto grandezas inversamente proporcionais.
2. Os mitos da modernidade na canção popular
Desde seu primeiro LP voltado para o rock (Roberto Carlos, 1963), claramente arquitetado por Carlos Imperial na bem sucedida tentativa de criar uma versão nacional do pop rock americano, RC é ao mesmo tempo sucesso de vendas (são desse álbum os grandes sucesso Parei na contramão e Splish splash) e alvo de críticas, que só  tenderam a aumentar com a radicalização do processo político e dos ânimos no âmbito da cultura. Querem acabar comigo\nem eu mesmo sei por que. Acreditamos que por detrás da maior parte das críticas, a noção de importação ocupa lugar de destaque, sendo aquilo que irá retirar definiti vamente sua obra do caminho proposto pela chamada linha evolutiva da música popular brasileira, termo cunhado por Caetano Veloso, já no período Tropicalista, em grande medida visando defender o caráter nacional da Bossa Nova, João Gilberto em especial[2].
O principal problema com a produção de RC, dessa perspectiva, é seu caráter de importação direta de modas e procedimentos estéticos que, obedecendo mais ao ritmo das mercadorias que a uma real necessidade de desenvolvimento dos materiais, não leva em consideração nem a necessidade local dessas formas, nem o processo de desenvolvimento estético nacional. Trocando uma moda importada por outra, RC produziria um conjunto de canções descartáveis que só sobrevivem por seu alto teor de exposição, confundindo definitivamente exposição e qualidade, num exemplo perfeito do esquema clássico de funcionamento da Indústria Cultural: repetição, reconhecimento, aceitação[3]. As canções do rei seriam frutos de um processo alienado de produção cultural, não por se utilizar de formas importadas, simplesmente, como queriam alguns críticos como José Ramos Tinhorão, mas por realizar essa operação sem o necessário e complementar processo antropofágico de transmutação desses elementos a partir das necessidades locais. Essa necessidade de transfiguração é um imperativo para as culturas periféricas, com o risco de se produzir uma mera macaqueação, uma moda passageira. Mesmo após o período de importação direta do rock essa característica se manteria em RC, só que agora sofrendo adaptando-se as mais variadas proposições da industria cultural.
Sem negar essa dimensão mercadológica negativa da obra de RC, que em muitos momentos de fato obedece a esse princípio de estandardização reificada, é preciso prestar muita atenção ao seguinte aspecto da questão. De fato, concordamos com a perspectiva materialista, para qual é decisiva a questão de adequação formal à matéria histórica, com riscos de mitificação do material estético em um universalismo reificador. Entretanto, as formas possíveis dessa adequação estão sempre em aberto e, a partir do momento em que se parte para uma definição dos conteúdos tanto do nacional quanto dos respectivos modelos de adequação formal, corre-se o risco de transformar uma perspectiva especificamente ligada a determinado contexto em totalidade. Ou seja, ideologia. Eis o risco do conceito de linha evolutiva, que ainda assim tem a vantagem de apontar para a necessidade de formulação interna da problemática nacional na canção popular, mesmo que indiretamente. Os problemas aparecem justamente quando começa a se estabelecer quem são aqueles que participam da linha, criando uma narrativa linear em que as continuidades interessam mais que as rupturas. Questão essa que será justamente o centro dos debates políticos e estéticos do Tropicalismo. Cria-se um campo de oposições onde quem não participa de tal linha, previamente definida a partir de um olhar retrospectivo, necessariamente produz uma obra sem relevância nacional e potencial estético, dimensões essas que se confundem. Além do que, no caso específico de RC, toda a tradição de música romântica nacional que passa pela modinha, pelo bolero, pelo samba-canção, pela cancione de inspiração italiana, etc, formas que sofrem toda uma série de deslocamentos nacionais no geral desconsiderados a partir do critério de mau gosto e inadequação (sintetizados pelo conceito de brega), é colocada em segundo plano em relação à verdadeira canção brasileira (de qualidade) que passa do maxixe para o samba e para a MPB, na construção narrativa da modernidade brasileira via canção, que cria ao mesmo tempo suas rupturas (MPB) e origens (samba).
É necessário, portanto, desconstruir imediatamente os enunciados negativos sobre a produção de RC, colocando-se a seguinte questão: a partir de que espaço de fala pode ser considerado que RC não é um autor nacional, no sentido estético e ideológico dos termos nacional e autor? E obedecendo a quais ordens de interesses emite-se tais juízos?
2.1 – O mito da Autoria
Os “autores” por excelência.
Como vimos, a recepção crítica de RC passa necessariamente pela questão da importação (bem evidente no período Jovem Guarda, mas que se manteve com a opção do artista pela música romântica de arranjos orquestrais não percussivos, de inspiração americana), e de sua incapacidade de adequar a matéria exterior a uma forma local. Tal exigência tem por pressuposto implícito a ideia de um sujeito que organize esse material e lhe confira novo significado, a partir de um projeto de ordenação estrutural. Uma subjetividade “forte” que faça contraponto artístico às necessidades puramente mercadológicas. Em suma, a estratégia de legitimação dessa posição passa pela afirmação de determinada concepção de Autor (o samba procura legitimar-se a partir de outro princípio, como veremos), que possibilitaria a reordenação dos elementos em uma obra até certo ponto, autônoma. RC, evidentemente, não entra nesse campo de representação, a partir dessa perspectiva que busca destituí-lo do trono.
Entretanto, a questão se complica quando pensamos que, em certo sentido, a própria forma canção brasileira constitui-se a partir de um princípio que não obedece ao de autonomia, relativizando, consequentemente, a própria função Autor, que não pode então ser tomada como critério de valoração estendível a toda produção estética nacional, em especial naqueles casos que não se baseiam no mesmo princípio de composição. Em suma, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, e RC não é João Gilberto. E nem precisa[1].
O estabelecimento desse tipo de racionalidade no campo da canção popular se dá a partir dos anos 50 com a turma da Bossa Nova, e consagra-se com a geração MPB, inaugurando o que se costuma chamar de a modernização da canção popular brasileira. Com sua revolucionária batida de violão [2] e seu modo novo de pensar a matéria musical, João Gilberto inaugura uma nova postura frente à canção, tomada agora como resultante de um trabalho intelectual crítico. Com ela, o como se faz passa a frente do que se faz – ou seja, aquilo que até então estava ao fundo no projeto do cancionista passa à frente. Por isso - eis a nossa hipótese – a MPB, enquanto herdeira do gesto da Bossa Nova, será prioritariamente um modo de fazer, que insere no campo da canção brasileira a noção de autor (no mesmo sentido em que se usa o conceito de cinema de autor, em contraposição ao comercial), que recupera no interior desta uma noção de autonomia possível. MPB é, pois, um conceito amplo que tem a capacidade de comportar quaisquer gêneros existentes, desde que, por detrás de tudo, esteja em operação uma consciência crítica reflexiva. Essa é a raiz da apregoada modernidade da Bossa, e de sua rebenta mais próxima. A instauração de um sujeito reflexivo moderno (que não será o mesmo da literatura, mas com o qual guarda evidentes aproximações), no plano da canção popular.
É importante lembrar, entretanto, que uma das forças da canção popular está justamente no afastamento do princípio de autonomia – eis nossa hipótese - que permite a ela encontrar formas originais de resolução do impasse formal próprio às produções estéticas nacionais. Em linhas gerais, a matriz problemática da questão da autonomia no contexto brasileiro é a de que a condição material subjacente ao desenvolvimento da autonomia estética é a existência de uma subjetividade autônoma, que dá forma e se forma a partir de um projeto de racionalidade social. Trata-se, portanto, de uma forma moderna por excelência. No Brasil, entretanto, as relações sociais regidas pelo princípio da cordialidade[3] se encontram em um patamar ao mesmo tempo moderno e arcaico, cuja característica central consiste no embaralhamento das esferas pública e privada, sujeito e objeto, ordem e desordem, etc. Em última instância, tal regime de indiferenciação coíbe a formação de uma subjetividade reflexiva, matriz da autonomia, posto que o outro não se configura enquanto limite objetivo para o sujeito, mas é justamente aquilo que deve ser “devorado” pela consciência daquele que pode mais. A subjetividade se constitui na negação da alteridade, em que o sujeito não se confronta com outras subjetividades autônomas (na categoria de cidadãos), mas com uma coleção infinita de objetos à sua disposição. A matriz é escravocrata.
A marca dessa dialética profunda entre a norma e seu oposto, o indiscernimento problemático entre eu e outro que jamais encontra síntese – nem se instaura a ordem capitalista de fato, e nem a ela se abandona - estaria fixada nos objetos culturais, sentidos ao mesmo tempo como coisa alheia (por serem importados) e própria (por não haver, por exemplo, outra literatura possível) colocando uma questão de base – o descompasso - com a qual os autores precisam se haver, com o risco de mitificação – o que aparentemente acontece com Roberto Carlos. Eis a matriz das idéias fora do lugar. Daí a impossibilidade de totalização que a literatura e os demais objetos culturais marcados pela noção de autonomia possuem no país, com seu modo de constituição a partir do apagamento concreto do outro, equivalente no plano político ao modo de construção do país[4]. Esse descompasso entre matéria histórica e forma autônoma será o ponto chave de questões formais decisivas em nossa produção estética.
Nossa hipótese é de que a canção ocupa um patamar diferenciado em relação às formas autônomas como a literatura justamente porque seu princípio de constituição não se sustenta na noção de autonomia. A formação da canção no Brasil em seus primórdios deu-se em direção a um princípio heterônomo de constituição, ou seja, uma forma “aberta” em que os elementos externos participam ativamente de seu princípio constitutivo, não sendo possível a delimitação das características de um dado gênero exclusivamente a partir dos seus elementos estruturais internos[5]. O pressuposto formal da canção não é o sujeito burguês, mas justamente aquele outro que se desloca desse padrão, sem contudo negá-lo (pois, para o bem e para o mal, somos ainda burgueses), o que relativiza justamente o problema da importação de modelos, matriz das críticas feitas a Roberto Carlos. A norma da canção é a síncope, o ritmo contramétrico. O maxixe, não a polca. Sua forma é constitutivamente inorgânica, e o cancionista, um malabarista. A inorganicidade é ponto de partida, não resultado.
A grande inovação trazida pela canção brasileira foi, portanto, a criação de uma linguagem estética que guarda em si a possibilidade de que “todos” falem (o mesmo princípio da roda de samba, que se mantém formalmente)[6]. Essa abertura, esse modelo heterônomo de organização do material estético – cujo grande avanço se faz sentir na inclusão decisiva daqueles que tradicionalmente não tem voz – é, segundo nossa hipótese, a principal responsável pela potencial estético da canção popular, base de sua originalidade e força. Modelo que se afasta da concepção de autoria proposta pela MPB, utilizada para desqualificar a produção estética de Roberto Carlos.
Não se trata aqui de definir qual modelo é melhor ou mais produtivo que o outro. Ao contrário, ao demonstrar a existência de modelos distintos de estruturação formal no plano da canção, a questão mais interessante é justamente a impossibilidade de redução de um ao outro, posto que da perspectiva heterônoma do samba, por exemplo, a MPB pode ser considerada uma espécie de retrocesso, o que seria um absurdo. O mesmo acontece com RC. O conceito de autoria não é generalizável para toda a canção brasileira, sendo bem localizado em um momento específico da nossa história, em alguns autores determinados, o que complica a noção de que as grandes obras são unicamente aquelas que compartilham desse princípio de estruturação, ou que só a partir dele seria possível construir um princípio de reordenação local dos elementos formais.

[1] Só a título de curiosidade, um dos primeiros compactos de Roberto Carlos continha uma canção de ataque frontal à Bossa Nova, “Fora do Tom”: “Não sei, não entendi\vocês precisam me explicar\seu samba é esquisito\não consigo decifrar\na escola eu aprendi\e música estudei\mas seu samba ouvi\e na mesma fiquei [...] no tom que vocês cantam\eu não posso nem falar\nem quero imaginar\que desafinação\se todos fossem iguais a você”. Um tom de ataque paródico e mordaz que seria radicalmente rejeitado por Roberto, o bom moço, logo em seguida.
[2] Uma análise profunda dos traços inovadores, assim como das possíveis influências dessa batida pode ser encontrada em GARCIA, Walter. Bim Bom: A Contradição sem Conflitos de João Gilberto. São Paulo, Paz e Terra, 1999.
[3] HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
[4] Toda essa discussão está presente na obra fundamental de Roberto Schwarz. SCHWARZ, Roberto. As idéias fora do lugar. In: Ao Vencedor as Batatas. São Paulo, Editora 34, 2003.
[5] Veja essa discussão com relação ao maxixe em MACHADO NETO, Carlos Gonçalves. O Enigma do Homem Célebre: ambição e vocação em Ernesto Nazareth (1863 – 1934). Tese de doutorado apresentada ao departamento de Letras da USP.
[6] Princípio estético tornado possível principalmente por conta de três princípios básicos de constituição – e aqui seguimos as indicações fornecidas pelo trabalho seminal de Luis Tatit: o desenvolvimento de uma linguagem baseada no princípio de estabilização do modo de dizer do português brasileiro em uma forma estética que não perde de vista seu lastro entoativo; a não-institucionalização do saber necessário para o domínio dos procedimentos destinados a confecção da canção, responsável por seu alto grau de penetração e organicidade em um país marcado pelo profundo afastamento da sociedade do campo dos saberes formais; e o grau de desenvolvimento dos meios de produção da sociedade e o desenvolvimento da indústria fonográfica, responsável pela possibilidade de gravação do registro oral diretamente, sem a necessidade de formas de mediação escritas.

[1] Como aliás, é um movimento comum na trajetória de RC. No final dos anos 60, a partir do dilema colocado pela canção engajada de aproximação com o popular, alguns artistas da MPB procuraram se apropriar do poder comunicativo do artista, tentando uma espécie de diálogo por meio da questão negra, a partir da então emergente Black music nacional, que tem em RC – um branquinho do Espírito Santo - um dos seus pioneiros, ao lado de Erasmo. Mais contemporaneamente, com a dissolução do projeto central da MPB (que é também a realização de uma de suas vertentes, comandada por Caetano Veloso) e a consequente dissolução dos limites estritos de seu público consumidor, tenta-se uma nova aproximação entre a popularidade do cantor e outros nichos consumidores, como o público jovem (o bem sucedido acústico MTV) e a classe média MPB (o disco em que RC e Caetano – o mais pop dos artistas da MPB – cantam Tom Jobim).
[2] Nessa linha evolutiva estariam envolvidos todos aqueles artistas que contribuíram para a formação da canção brasileira, uma forma estética que comporte em si, esteticamente formalizadas, as contradições do processo histórico local. É dessa forma que explica-se como João Gilberto, mesmo fazendo uso de procedimentos estrangeiros em seu processo de composição, conseguia manter a excelência da sua obra, posto que tais aspectos eram ressignificados no interior de um sistema conectado com o sistema cancional brasileiro, atualizando-o. É nessa medida também que a própria obra de Caetano Veloso, radicalizando o procedimento, encontrava uma justificativa formal e política, em um momento histórico em que essas questões eram avidamente discutidas.
[3] ADORNO, Theodor. O fetichismo na música e a regressão da audição. In: Os Pensadores – Adorno. São Paulo, Nova Cultural, 1999.

Da legitimidade da realeza: Roberto Carlos como emblema da nacionalidade [2\3]

2.2- O mito da Origem
Mas existem outros lugares legitimados na música popular a partir de onde a produção de RC pode ser considerada inautêntica. O samba, por exemplo, não partilha do princípio de autoria – Sinhô, um dos responsáveis pela difusão em massa do gênero, lançava um politicamente incorreto “samba é que nem passarinho, de quem pegar primeiro” – tal como colocado pela MPB. Muito da força do samba está na criação daquela forma heterônoma que falamos acima, estabelecendo formas de fixação da fala que mantêm o esquema de improvisação da roda de samba, aberto a todos aqueles que tiverem capacidade de versar. Nesse esquema, mantido até hoje em alguns contextos, cria-se o refrão, cantado coletivamente, e depois é fixada uma grade melódica a partir da qual os participantes podem criar versos, relacionados com o tema proposto. Mesmo quando um samba desse é fixado em uma gravação, os elementos derivados da oralidade são mantidos, sendo no mínimo arbitrário considerar que está presente ali uma subjetividade racionalizadora em sentido forte, por melhor e mais bem estruturado que esteja o samba em questão. Aliás, boa parte dos esforços dessas gravações consiste em manter o clima de espontaneidade, improviso e criação coletiva. A autoria dissolve-se, assim como a idéia de obra. Claro que nem todo samba é assim – boa parte da obra de Paulinho da Viola, por exemplo, caída pro choro, não é.
Entretanto, outro mito sustenta o lugar de legitimidade do samba, que sobrevive a partir da definição de suas origens. O mito de Origem do samba está na base mesma de sua constituição enquanto gênero. Desde que o samba principiou a ser gravado, recebendo maior atenção, o debate sobre qual seria o mais verdadeiro, ou autêntico ou brasileiro, está colocado. Sinhô em disputa com Pixinguinha e os grupos dos baianos para defender que o samba era genuinamente carioca. Noel Rosa (depois defendido pelo jornalista e sambista Almirante) defendendo que o samba era fruto de um processo cultural de toda sociedade carioca, em oposição aqueles que afirmavam que o samba verdadeiro (como Vagalume e Wilson Batista) eram aqueles realizados em rodas de samba, nos morros. Mais contemporaneamente, o embate será entre aqueles sambistas ligados as escolas e blocos do Rio de Janeiro, que ganharam destaque mercadológico a partir dos anos 80 (Zeca Pagodinho, Fundo de Quintal) e aqueles grupos de São Paulo e outras regiões do Brasil, que a partir dos anos 90 adotaram um formato mais pop para misturar com a levada de samba, influenciados sobretudo pelo sucesso do grupo Raça Negra.
Ou seja, o samba, desde seu nascimento até os dias de hoje, coloca em questão e levanta polêmica em relação às suas origens, em busca por legitimidade: variação do maxixe, dos batuques de candomblé, da África, do Rio, da Bahia, do morro, da cidade, cozinha em destaque, harmonia em destaque? Podemos dizer que esse movimento é inerente aos gêneros heterônomos em geral, posto serem estes indefiníveis do ponto de vista meramente estrutural. Não é possível definir o gênero a partir de formas, estilos ou instrumentação, porque todos esses elementos são cambiáveis e definíveis a partir de um processo social em permanente disputa. Dessa perspectiva, o samba é muito mais um lugar, formado a partir de inúmeras variantes que envolvem status, performance, melodia, harmonia, instrumental, agentes, momento histórico, etc... em constante movimento de redefinição. O que é samba genuíno hoje pode não ter sido (Zeca Pagodinho) ou pode deixar de ser, ou pode ainda suscitar debates eternos sobre seu verdadeiro lugar. O que existe é um conjunto heterogêneo de estilos e formas que compartilham e trocam elementos de composição, buscando espaço de legitimação.
Toda busca de definição pelas origens do samba comporta um componente ideológico de afirmação no interior de um campo. Por exemplo, quando a partir dos anos 30, o paradigma do Estácio foi eleito como uma matriz rítmica mais legítima para representar o samba (afastando-se do maxixe para se aproximar da marcha) em escala nacional, uma série de outros formatos (samba-raiado, samba de lenço, samba-chula, samba de bumbo, samba-rural) foram expulsos do interior dessa configuração - a partir de então considerada mais legítima - e relegados ao plano do folclórico. Por outro lado, esse mecanismo de definição ideológica do que seja o samba autêntico, é absolutamente imprescindível para que o gênero possa existir enquanto tal. Por mais abertas que sejam tais negociações, e por mais que, no limite, uma definição restritiva definitiva seja contrária ao próprio formato de constituição do estilo, é inevitável que se realize esse movimento, definidor não do formato samba, mas do seu “lugar”. O que faz o disco de estréia de Chico Buarque, composto só de sambas, não ser obra de um sambista, e o que faz uma compositora que flerta todo o tempo com a MPB como Clara Nunes ser vista como tal depende dessas definições, que não são nem meramente mercadológicas e nem absolutamente definíveis.
Sendo assim, a afirmação de que o samba é um gênero mais legítimo que a importação de RC se torna dificilmente sustentável. Afinal, não existe um único samba, mas diversos sambas em disputa por legitimação e espaço. O samba não possui uma origem única, o Brasil, porque este é um espaço também híbrido de constituição, renegociado a cada momento, apesar de não existir para além desse movimento de negociação que é ideologicamente concreto. E se a idéia de origem é fruto dessas negociações, como dizer que o autor mais difundido do país, maior nome do estilo musical que mais vende discos no Brasil (Amado Batista, claramente carlista, também ocupa o topo da lista de vendas), é menos popular, ou legítimo, que o samba? Como afirmar que o samba é mais propriamente nosso se ele cria a noção de um “nós” na exata medida em que se constitui, assim como RC? O quadro se complica.
3 - Nobreza indigesta: Roberto Carlos e o Brasil
O que procuramos realizar até agora foi uma espécie de mapeamento dos lugares a partir de onde são construídos dois dos principais discursos de desqualificação do rei - que não são os únicos, digamos desde já - operação que acaba por relativizar a própria noção de importação, matriz principal dessas críticas. Notamos como a noção de autoria se complica na forma canção brasileira. E vimos como a ideia de uma marca de origem a conferir legitimidade às obras é complicada, ainda mais em países de matriz colonial, como no contexto brasileiro, posto que, nesses casos, o próprio conceito de nação é já uma adaptação importada. Entretanto, afirmar que o estilo de RC é tão adequado ou “próprio” quanto outros não significa eliminar a questão da adequação à matéria local. Existem sim, inúmeros exemplos de formas mal estruturadas por não atentaram para as contradições locais, resultando numa espécie de pastiche mal elaborado. E não só no plano da canção, evidentemente. Todas as deficiências técnicas do Romantismo literário, por exemplo, podem ser compreendidos a partir dessa chave.
A questão não é, pois, a inexistência do problema, e sim o modo como ele é re-articulada no mecanismo de desqualificação de RC, ou seja, a partir de onde se inscreve essas críticas e em nome do que elas são feitas. Nesse caso, a leitura é fruto de uma tomada de posição e de uma construção ideológica que definem quais são os elementos que devem ou não participar do conceito de nação, e quais devem ser excluídos ou dissimulados, ocultando aspectos por assim dizer menos “interessantes” de nossa constituição. O movimento é perverso, pois além de excluir elementos importantes do conceito de nação, tal exclusão é feita a partir de uma transferência de culpa para os produtores: a obra de RC é ruim porque não consegue formalizar certos aspectos locais. Na verdade, o movimento é o oposto, primeiro definindo-se o que é o local, para em seguida classificar como ruins não aqueles que de fato não dão conta da matéria histórica, mas os que não cabem naquele conceito prévio. Um jogo de cartas marcadas.
No caso da crítica que acompanhamos, os únicos elementos admitidos no padrão de qualidade são ou o sujeito moderno crítico e reflexivo, de classe média, representada pela MPB, ou o sujeito tradicional, preservado intacto a despeito dos avanços perversos da civilização ocidental massificadora, representado pelo samba autêntico. Princípio que não à toa mantém uma forte relação com o paradigma do nacional desenvolvimentismo, a ideologia por excelência do Brasil enquanto nação moderna. Toda a cultura produzida pela maioria absoluta da massa urbana nacional é descartada como produto alienado e sem valor, mero consumo a-crítico de lixo importado. Ou ainda, como uma recepção passiva dos ditames do Capital. Ocorre uma inversão perversa, muito comum em um país de maioria iletrada, em que a cobrança por consciência crítica se transforma em mecanismo de dominação e de negação da... crítica – a partir do momento que as regras de tal consciência são definidas e impostas de cima para baixo. É possível existir arte de qualidade sem crítica e sem raízes profundas? Arte sem qualidade é arte? É possível entretenimento genial? Todo compositor brasileiro tem de ser, necessariamente, um complexado, como afirma Tom Zé, para ter algo a dizer sobre nós, enquanto sujeitos e enquanto país?
A imagem de país que surge não apenas das canções, mas do conjunto completo da figura de RC, não passa pelo samba, pelo batuque, ou por uma base percussiva qualquer – dado estético praticamente eleito como símbolo de nossa singularidade. RC se constrói na antinomia do samba – seu oposto. No rio do samba e carnaval, ele é o cristo de braços abertos, impotente e resignado, ameaçadoramente presente mas sem conseguir impor-se de fato. No sertão do baião, cultura popular e jagunçagem, ele é o catolicismo fervoroso, Padre Cícero. Nas minas dos causos populares e mistérios pagãos, ele é a religiosidade cristã sufocante de “Crônica da casa assassinada”.
Roberto vai ser o porta-voz da família brasileira, o cantor de suas desilusões, seus amores, e suas fraturas. E isso nem o samba (pela associação com a marginalidade) nem a MPB (por seu status bem pensante de tendências progressivas, crítico) podem ser. A família brasileira é conservadora, zelosa protetora da moral e dos bons costumes. RC é expressão de sua educação sentimental: jovens casadoiros, mocinhas recatadas, a TFP e seus conflitos, que não são poucos, a despeito da esquerda. Para entendê-la, é preciso entender RC. Nelson Rodrigues constrói um painel brilhante da sociedade brasileira – ainda que fora de moda tanto entre progressistas quanto entre reacionários - e das suas mesquinharias cotidianas a partir de um olhar lançado, não necessariamente à esquerda, sobre a família brasileira.
A família brasileira é o mais aceito e o mais marginalizado, o mais difundido e o mais recalcado, é o que não se confessa por ser o mais característico. Até a família brasileira se envergonha da família brasileira. Deve-se excluir da reflexão sobre o nacional aquilo que lhe é mais característico, só porque desagradável? Ou ainda, aquilo que nos desagrada não é capaz de propor questões relevantes, ou produzir uma obra consistente? Ocultar essa faceta no mínimo leva a uma miopia crítica, e no limite perpetua mecanismos de exclusão baseados não em reflexão, mas em um sistema de manutenção de status quo. Entender não é sinônimo de justificar, mas não se muda a estrutura mais sólida da sociedade sem a observar de perto, sem ouvir sua voz, sem observar, de dentro, suas fissuras. Qual a imagem da família brasileira na obra de RC? Não muito alegre, pra dizer o mínimo.
RC fez a opção por ser rei. O rei não é aquele que se destaca, mas o que se confunde com a própria norma social. Sua declaração de princípios é “só vou gostar de quem gosta de mim”. Bom católico, bom moço, sem defeitos. Sempre igual, sujeito tornado estátua, a figuração encarnada da própria norma. Não à toa desenvolveu Transtorno Obsessivo Compulsivo, não à toa repete figurinos, repertórios e especiais de fim de ano, roubando a cena do Papai Noel. Também seu som foi tornando-se mais massificado ao longo do tempo. Repetição. Estilo de interpretação, de acompanhamento, sempre o mesmo. Repetição. Um rei brasileiro só pode ser a encarnação do conservadorismo tipicamente nacional. Basta pensar em nossa outra figura real, o maior jogador do mundo, que cinde a própria personalidade por não conseguir condensar em uma só imagem o conservadorismo tacanho do Edison com brilhantismo malandro de Pelé, faces da mesma moeda.
Para merecer a coroa real e se tornar o cantor de maior sucesso do país, RC teve de confundir sua figura com a do brasileiro médio, apegando-se a imagem do cidadão comum. E este não é o malandro, aquele que se dá bem subvertendo a ordem em favor de si próprio. Malandragem fica bem em novela, mas todo mundo sabe que na vida real vira caso de polícia. Não é também o cidadão esclarecido bem pensante, afinal, pra ser isso é preciso, pelo menos, saber ler. O Brasil é um país de pobres diabos com complexo de vira-latas, homens-livres em situação de precariedade absoluta. Em suma, RC é rei porque é a figuração máxima do agregado, aquela figura brilhantemente retratada por Machado de Assis na personagem de José Dias, e conceituada no trabalho de Roberto Schwarz. Figura própria em um contexto onde imperam as relações de favor – mecanismo de regulação social que se coloca no lugar do sistema simbólico que instituiria a lei que garante cidadania para todos, fazendo com que esta lei permaneça como que a disposição da subjetividade dos mais poderosos – basicamente é um modo de ser social em que a pessoa anula a própria subjetividade (que já não tem mesmo valor em um sistema cujo acesso à categoria Sujeito é negado) para poder brilhar a partir da luz do outro - sujeito satélite, vazio e brilhante. Vir-a-ser eu a partir da auto-anulação. Não se trata aqui do confronto oblíquo com a norma, como no caso da malandragem. Dado um contexto em que reivindicação social é sinônimo de caso de polícia, uma das formas de existência é submeter-se de bom grado aos caprichos dos poderosos, como faz José Dias e Roberto Carlos. Afinal, quem é mais poderoso do que a imensa massa de consumidores de canção popular?
O que se exige de RC é, pois, a exigência inconfessável feita aos agregados: anule-se em troca de reconhecimento. Exigência que não é só dos poderosos, mas de todos os que têm a possibilidade de decidir sobre o destino do outro – o público é a mais cruel e exigente alteridade. RC acata as regras do jogo, e isso faz dele o rei, mas ao mesmo tempo impede que ele seja reconhecido enquanto sujeito, enquanto Autor e enquanto símbolo do país. Logo ele, que o simboliza tão bem em sua impossibilidade de reconhecimento dessa representação. E não queremos com isso reforçar o argumento de que a obra de RC é fraca por não ter “identidade”. Ao contrário, essa posição de auto-anulação do agregado vai ser dramatizada em todas as suas fraturas como em nenhuma outra produção estética nacional. Só que talento de agregado não pode ser reconhecido, tem que confundir-se com a voz do povo, tomar forma como coisa natural, despojada e sem grandes pretensões. A construção da voz do pobre coitado, cujo valor consiste na aparente ausência de qualquer valor que não o da sinceridade e despojamento.
Eis o dilema de RC, a matriz da tensão que sustenta sua obra e sua figura. Ao aderir ao lado conservador da sociedade brasileira, sendo seu porta-voz, ele vai alcançar ampla aceitação (realeza) popular. No entanto, a condição dessa aceitação vai ser sempre ocupar a posição de “coitado”, jamais tendo reconhecida sua importância estética ou histórica no interior do cancioneiro nacional. Será sempre o “melhor compositor de música ruim”. Ele é aclamado não porque se destaca, mas por ser mais um qualquer, um Zé-ninguém, o rei dos Zé-ninguém. A desqualificação inerente à figura do agregado impede que RC seja reconhecido por aquilo que representa: o criador da linguagem romântica moderna brasileira, e o pai da música pop nacional. Um agregado não se destaca. Não pode exibir marcas de sofrimento pessoal, tem de concordar com tudo e sorrir sempre. Não pode perder uma perna e nem usar roupa escura, negativa. Um agregado é uma coisa triste de se ver. E pode menos ainda ser tornado símbolo nacional, ou modelo de boa arte, por seu forte conteúdo derrotista, de auto-negação. E é isso o que se exige do pobre no Brasil, a negação de sua identidade. Excluir RC do panteão dos grandes artistas nacionais (na acepção mais ampla) é pretensamente um gesto de recusa ao conservadorismo. Mas o que existe de conservador nesse gesto de dizer o que é e o que não é o Brasil? O que cabe e o que não cabe em seu conceito? Não falar de RC é negar a reflexão sobre essa exigência que aqueles que estão no topo da pirâmide – inclusive os que fazem crítica musical – fazem aos pobres, a sua parcela de responsabilidade. RC é espelho invertido e incômodo. Um pobre ousado que supera as dificuldades colocadas por sua situação a partir de sua revolta é algo que faz bem para o ego dos culpados. Um pobre destruído pelas atitudes e compromissos das elites é sempre uma coisa triste, e por isso, veementemente recusado pelo narrador. O destino Macabéa.
Mas é fundamental ouvir o que os agregados têm a dizer. Enxergar o país a partir de sua ótica vai colocar novas questões, apresentar um país diferente, novos personagens. Essa posição vai culminar em toda uma linhagem que irá cantar aqueles que não têm voz no campo da canção – as mulheres e os deficientes, por exemplo, esses últimos no geral encarados como tema ou delicado demais, ou de mau gosto. RC também tem relação íntima com os primórdios do movimento da black brasileiro, sendo um dos primeiros (depois do Erasmo) a apostar no gênero. Sendo sua obra a atualização da música brasileira para a linguagem pop internacional, catalisando todo o processo, nada mais natural que apresentar vertentes dos dois gêneros pop de maior sucesso no planeta na época: o rock n’ roll e o R&B americano. Além disso, RC vai ser o cantor brasileiro mais escutado na América latina, outro espaço que normalmente não se integra à idéia padrão de nacionalidade. Percebe-se que é outro o país que se insinua caso passemos a vê-lo a partir da ótica carlista.

Da legitimidade da realeza: Roberto Carlos como emblema da nacionalidade [3\3]

Considerações finais: quem já foi rei nunca perde a majestade
O artigo acabou por se concentrar nos aspectos ideológicos envolvendo a recepção da obra de RC, procurando desmitificar alguns aspectos da recepção negativa de sua obra. Se assim procedemos foi por acreditar que nesse caso a análise dos princípios discursivos que sustentam algumas das críticas direcionadas a ela poderia revelar dados importantes não só do posicionamento do cantor, mas, principalmente, do próprio sujeito que realiza a crítica, no geral menos baseada em princípios estéticos que em posicionamentos ideológicos. Mas é certo que nossa posição a favor da produção carlista parte também de certa recepção estética de sua obra, que convém deixar pelo menos assinalada nessas palavras finais, uma vez que não caberia nos limites desse artigo um trabalho analítico mais exaustivo.
A importância histórica de Roberto Carlos é pouco assinalada pela crítica especializada – ainda que de uns anos para cá esse quadro venha se alterado, sobretudo em alguns meios jornalísticos. De fato, tal como os Beatles no Reino Unido, RC foi quem consolidou a música pop em território nacional, criando a versão brasileira do gênero. Foi ele o responsável por dar forma a um modo de dizer nacional que não passava pelo samba, nem pelos antigos boleros, nem pela dicção MPB, nem por algum modelo de regionalismo. É diretamente pop, desterritorializado e, ao mesmo tempo, profundamente local, como vimos em termos gerais. Só que no Brasil a classe média tem verdadeiro pavor de tudo relacionado com cultura pop de entretenimento – daí se explica inclusive muito da baixa qualidade média da produção nacional nessa área – sendo incapaz de estabelecer algum juízo crítico que escape de sua própria esfera de valores.
De fato, negar\minimizar a importância decisiva de RC é uma forma de negar a própria música pop nacional, o que leva a um curioso movimento. Alguns artistas claramente vinculados ao pop, só que dotados de algumas das qualidades apreciadas pelos defensores do bom gosto, são imediatamente re-alocados em outra posição, confortavelmente mais próxima da MPB. Nomes como Alceu Valença, Zé Ramalho, Lenine, Zeca Baleiro, Cazuza, Herbert Viana, Carlinhos Brown, Chico César, Djavan são apenas alguns exemplos dessa migração para pólo mais respeitável, afastados do pop e do rei. Inclusive o próprio RC tem experimentado uma migração nesse sentido, num curioso movimento de afastamento de si próprio. Edson\Pelé? Como se não pudesse existir música pop de qualidade.
Diretamente relacionado ao desenvolvimento do pop brasileiro, RC é também o responsável direto por desenvolver a moderna música romântica nacional. Ele é a própria personificação do modo de cantar o amor no país depois da transformação da indústria fonográfica nos anos 50-60, que alteraram radicalmente os padrões de audição do público. Ele é o responsável por trazer o corpo ao primeiro plano na canção romântica, a partir da pulsação rock, o que se mantém depois que ele muda para uma linguagem menos jovem, pela presença constante da figurativização, que assegura a credibilidade do lastro entoativo no conteúdo passional. Podemos dizer que boa parte da canção passional brasileira que não foi direcionada pelos conteúdos temáticos e enunciativos da Bossa Nova, tais como sertanejo, pagode, Brock, brega, pop, forró universitário, etc, teve que se haver com a proposta de dicção estabelecida pelo rei, e sua forma moderna de cantar o amor.
Além desse lugar de destaque em um momento decisivo de transformação do gosto musical brasileiro, a obra de RC possui passagens de grande força estética. Se em muitas fases de sua carreira o cantor aponta para uma estandardização de seus conteúdos, criando uma obra que se repõe a si própria como uma espécie de auto-caricatura (especialmente a partir dos anos 70, onde ainda assim é possível encontrar algumas gravações antológicas como Emoções em sua versão original. Mas nunca mais um álbum inteiro de qualidade), existem alguns discos e canções que se inscrevem tranquilamente entre as grandes composições nacionais. Pelo menos três de seus discos estão entre os melhores e mais importantes do país. Em ritmo de aventura (1967) é um dos discos seminais da história do rock nacional, um dos últimos rebentos da fase Jovem Guarda, que terminaria na sequência, definindo rumos e tendências posteriores, sendo um dos melhores álbuns do gênero no país. O Roberto Carlos de 1969 é um dos mais melancólicos, tristes e belos discos locais, com o rei já migrando para o estilo romântico que o caracterizaria, mas ainda sem definir-se por completo. O resultado é um disco que transita pelo soul, funk, R&B, música instrumental (raríssimas em seu repertório) e até uma canção de amor bem inusitada, das melhores do estilo. Sua estupidez, em versão mais bem acabada que a de Gal Costa. E o Roberto Carlos de 1971, um álbum síntese do passado e do futuro da canção, contendo também estilos diversos. O romantismo forçado que aponta para os excluídos em Amada, amante, R&B, funk, balada rock e paródia de gêneros que saíram de moda. Como dois e dois, Debaixo dos caracóis, Todos estão surdos, Você não sabe o que vai perder e Eu só tenho um caminho já bastariam para colocar o disco entre os melhores de nossa história. Mas além dessas, tem Detalhes, que vale um comentário a parte.

Essa canção é um marco, dessas que definem os rumos que as coisas irão tomar a partir dali. Gostando-se ou não, é impossível ficar indiferente. Não trataremos aqui do acerto da interpretação original, altamente precisa no trabalho de transmissão das nuances interpretativas, e nem sobre o refinamento do arranjo, que sublinha e acompanha o sujeito enunciativo sem sobrepor-se ou sobrecarregá-lo com informações excessivas. Sem poder realizar uma análise minuciosa com diagramas, detendo-se sobre cada uma das partes[1], trataremos de alguns mecanismos mobilizados pela canção para criar uma relação de compatibilidade entre melodia e letra.
Rapidamente, podemos dizer que o sentido geral da letra está inscrito nos versos “Detalhes tão pequenos de nós dois \ são coisas muito grandes pra esquecer”. Todas as experiências vivenciadas pelo objeto desejado (a mulher não nomeada) irão remeter aos detalhes de sua experiência amorosa anterior, ao momento de conjunção com o sujeito enunciador. Cada momento vivido comporta uma carga de negatividade provinda da disjunção atual de sujeito e objeto. Em cada detalhe inscreve-se a negatividade da disjunção passional, estabelecendo um jogo entre a concentração espacial desses momentos cotidianos (detalhes pequenos) e o prolongamento temporal da ausência do sujeito (coisas inesquecíveis). Um embate entre concentração e distensão, portanto, que será reiterado ao longo de toda a letra, com os mais variados exemplos.
No plano melódico, a questão será, portanto, trabalhar com essa relação entre concentração e distensão (lembrando que, para o método semiótico aqui considerado, o principio que permite o estabelecimento da relação entre melodia e letra é que ambas são formas de dar sentido ao tempo, a partir de relações de ordem tensiva). Tentemos investigar o processo sem soar demasiadamente técnicos. O mecanismo melódico de concentração é o mais facilmente verificável: a canção opera com uma grade melódica invariável, ao longo de suas seis estrofes, sem distensão no refrão, num esquema que se divide em dois momentos, os primeiros concentrados no plano inferior da tessitura (Não adianta nem tentar \ Durante muito tempo), e os seguintes iniciados no plano superior, realizando uma curva descendente (Detalhes tão pequenos \ São coisas muito grandes \ E a toda hora vão estar). É essa reiteração a principal responsável pela sensação de invariabilidade que a canção consegue transmitir, a inevitabilidade da lembrança expressa em todos os detalhes que, independente de quais sejam, remetem à mesma falta original.
E como se resolve melodicamente o sentimento de falta, de disjunção, que se repõe em cada um dos detalhes? Com uma série de procedimentos propriamente passionais, como a distensão final dos tonemas, que sustentam as vogais, dando uma noção de continuidade (nem tentaaaar\me esssqueceer), nos saltos melódicos, que remetem a uma fratura disjuntiva (de ↑talhes tão pequenos) e na gradativa sequência descendente final, que segue até atingir o mesmo campo melódico do início (você vai ver↓), para recomeçar a narrativa. O resultado é uma canção em que seus elementos constitutivos estabelecem uma estreita relação de compatibilidade a partir de elementos até certo ponto simples, e que atinge resultados tão ou mais primorosos que modelos mais complexos que se perdem na relação com o todo. Detalhes é uma pequena pérola do cancioneiro nacional, e Roberto Carlos, um de seus ourives.

[1] Uma análise minuciosa pode ser encontrada em TATIT, L. Dicção de Roberto Carlos. In: TATIT, Luis. O cancionista: composição de canções no Brasil. São Paulo, Edusp, 1996. Porém com sentidos um pouco diferentes aos estabelecidos neste ensaio.